Narrativas num contexto hipertextual digital: Como o hipertexto atua na narrativa Um estudo em Vermelho de Marcelo Spalding

UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA

CENTRO DE COMUNICAÇÃO E EXPRESSÃO

ESTUDOS DE TEORIA LITERÁRIA I: VERTENTES CRÍTICAS NO SÉCULO XX

PROFESSOR JORGE HOFFMANN WOLFF

DIEGO EMANOEL DE OLIVEIRA

Narrativas num contexto hipertextual digital: Como o hipertexto atua na narrativa Um estudo em Vermelho de Marcelo Spalding

A narração é algo inerente à humanidade, desde que há comunicação há a narração de fatos. A transmissão de conhecimento oral com o tempo foi substituída (mas não excluída) pela ficção em pergaminhos, papéis e posteriormente em livros. As tecnologias foram usadas de diversas formas para se contar uma história. Quem não se lembra dos antigos discos de contos de fada, ou mesmo os disque-historinhas, um serviço de telefone pago onde a pessoa ligava e ouvia o conto de fada que lhe agradasse. O homem é extremamente criativo, e se em alguma tecnologia há a mínima chance de ser usada para a narração ou qualquer outra expressão artística fatalmente isso acontecerá. Com o aparecimento das mídias digitais, a narração seguiu para essa nova ferramenta. O hipertexto é algo anterior às mídias digitais, mas foi nelas que ele foi popularizado, com as ficções digitais. A ficção digital não é somente aquela que se encontra no meio digital, mas é a que surge e depende dele para ser apreciada.

Mas o que é o hipertexto? Há várias definições do que é o hipertexto, algumas se focam mais no conceito digital, outras não. Landow (1991) afirma que o hipertexto é “uma forma diferente de literatura em que o uso do computador transcende a linearidade, os limites e as qualidades da tradicional forma de escrita de textos”, mas se pensarmos dessa maneira o hipertexto fica restrito ao meio digital, algo que não é verdadeiro. Muito antes dos meios digitais o hipertexto já aparecia em livros como notas de rodapés e referências, para citar só dois exemplos. Mesmo a não linearidade das narrativas já era anterior às mídias digitais. Um livro como O jogo da amarelinha (Rayuela) de Julio Cortázar não precisa seguir sua sequência original, o leitor pode pular capítulos, ou escolhe-los da forma que o agradar. Outro exemplo de não linearidade são os livros jogos de Steve Jackson conhecidos no Brasil como As aventuras fantásticas, em que o jogador/leitor segue a narrativa escolhendo os caminhos e lutas que o herói deve seguir, cada escolha leva o leitor a uma página distinta criando assim uma narrativa quase sempre diferente. É claro que para esse tipo de literatura funcionar, o leitor deve se comprometer com a proposta do livro, seguindo suas escolhas mesmo que elas acabem precocemente com a narrativa, ou seja, a morte do herói. Sendo assim, não há como afirmar que o hipertexto está preso ao digital, mas podemos afirmar de maneira mais ampla que onde há textos há hipertextos. Kristeva (1969 apud Adair Neitzel) afirma que o texto é uma assimilação de outros textos, assim em todos os textos há uma predisposição à intertextualidade de forma explícita ou não, em maior ou em menor grau. Quanto maior for essa intertextualidade presente no texto, maiores serão as chances do hipertexto aparecer de forma explícita. Barthes também aponta para essa pluralidade do texto: “Qualquer texto é um novo tecido de citações passadas. Pedaços de código, modelos rítmicos, fragmentos de linguagens sociais, etc, passam através do texto e são redistribuídos dentro dele visto que sempre existe linguagem antes e em torno do texto" (Barthes, 1987, pág. 49). Mas o que é um hipertexto? Para o que viso alcançar, considero o hipertexto como todo o texto que faça uma referência direta a outros textos, o hipertexto pode ser tanto uma palavra, um gráfico, um link, uma foto, uma seta ou mesmo um vídeo, as possibilidades são tão amplas quanto os do próprio hipertexto.

Um hiperconto é uma narrativa curta, como um conto, mas que faz uso dos hipertextos para aumentar a interação do leitor com o texto, normalmente o fruto dessa interação é a não linearidade, múltiplos desfechos e interação com outras mídias. O primeiro hiperconto escrito foi Afternoon, a story por Michael Joyce em 1987. Para escrever essa narrativa ele se utilizou de um programa específico chamado Storyspace. Naquela época não havia as facilidades que hoje tornam as hiperficções algo que pode ser amplamente divulgado e lido. Atualmente qualquer pessoa com um computador e acesso a internet pode escrever um hiperconto com as ferramentas dispostas em blogs e redes sociais, basta criatividade para tanto.

Não podemos cair no erro de pensar que só pelo fato de um conto estar no meio digital aquele conto é automaticamente um hiperconto. O meio digital serve muito bem como forma de preservação e criação das narrativas tradicionais: que livro impresso hoje não foi concebido primeiro em um computador? As narrativas tradicionais podem ocupar o meio digital, e mesmo as hiperficções não deixam de lado toda a tradição literária que foi concebida ao longo dos séculos, porém para que uma narrativa seja uma hiperficção ela precisa apresentar as características desse novo gênero que surge no meio digital. No Brasil o hiperconto é algo novo e pouco explorado, mas já há passos positivos como o site do doutorando da UFRGS Marcelo Spalding, onde alguns hipercontos estão disponíveis em um só lugar, assim como há também um convite para que novos autores se arrisquem e divulguem seus trabalhos no site.

Agora que os conceitos e a contextualização do que é um hiperconto foram brevemente apresentadas vou me ater à análise do hiperconto Um estudo em Vermelho de Marcelo Spalding. Pretendo verificar como o hipertexto e as outras ferramentas digitais atuam nessa narrativa criando uma não linearidade e uma maior interação do leitor com o texto.

Assim que o leitor entra no conto é requisitado que ele digite seu nome e seu e-mail antes de prosseguir com a narrativa; ao fundo uma trilha sonora acompanha esse processo (infelizmente o arquivo de som não funcionou nos momentos em que eu lia o conto). Essa é a primeira interação do leitor com a narrativa, considerando que nenhuma leitura é passiva, pois o texto (no sentido de palavras a serem lidas), segundo Moor (2001), não possui significados, mas sim a capacidade de evocar significados: sem o homem interagindo com o texto, criando esses significados em um processo cognitivo ativo, ele não passaria de um pedaço de papel. Essa interação faz com que a leitura do hiperconto seja ainda mais ativa para o leitor, pois ele não interage somente pelo seu processo cognitivo.

Depois do nome e e-mail digitado o leitor clica em ‘Entrar’ e começa a leitura. O conto em sua maioria é escrito como se fosse uma troca de e-mails, e começa com uma breve contextualização da sua situação do leitor/personagem. Sua irmã sumiu há três dias; para não criar nenhum tipo de alarde você entra em contato com um detetive particular, que já mantinha contato com sua irmã. Essa é a situação do início do conto, não uma contextualização dos personagens, seus motivos e conflitos, apenas uma breve informação sobre o passado desses dois irmãos. Em seguida segue o e-mail que o leitor/personagem encaminha para o detetive. Nesse primeiro bloco de texto há um hiperlink que leva o leitor para outro site, criando assim o primeiro desvio de linearidade. No conto os pais do personagem morreram no vôo da Air France que seguiu do Rio de Janeiro para Paris; esse primeiro link leva para um site contendo várias informações sobre o acidente.

Essa primeira parte do conto me chamou muito a atenção não por como foi feita, mas pelas possibilidades de como poderia ter sido feita com mais recursos, aumentando ainda mais a interatividade com o leitor. O conto poderia ir diretamente para o e-mail da pessoa, as repostas ainda viriam como acontece no conto, mas o leitor enviaria as mensagens e receberia a continuação dos eventos, tudo em seu e-mail. Isso não excluiria a possibilidade de hiperlinks com sites que enriquecessem a narrativa com esse tipo de contextualização extratextual (fora do texto, mas ligado a ele através do hipertexto). Um conto com essa estrutura é possível, mas dependeria de uma verba maior e um programador para tornar isso possível.

Esse tipo de recurso, o hiperlink, é usado em mais algumas ocasiões durante a narrativa como quebra de linearidade, isso sempre acontece quando é feito referência a algum evento ou personagem de fora do texto, como no caso do vôo da Air France e mais a frente quando são citados os autores Edgar Allan Poe e Carlos Drummond de Andrade. Esses hiperlinks levam o leitor a páginas contendo informações sobre eventos ou sobre pessoas, mas em nenhum momento para outras linhas narrativas; narrativas essas que poderiam, ou não, ter ligação com o eixo principal do conto. Usar esses recursos somente para informações históricas é uma perda de uma grande oportunidade narrativa, pois não há perdas na trama se você deixa de verificar as informações desses hiperlinks. Esse tipo de recurso poderia ser usado para explorar, por exemplo, a relação do leitor/personagem com a irmã sequestrada; dando assim mais personalidade as personagens, pois da maneira como são apresentadas são vazias e sem nenhuma profundidade.

A narrativa possui uma estrutura simples, um início tradicional com a contextualização onde há uma breve apresentação da situação e dos personagens; o corpo da narrativa com duas linhas de eventos que movem a trama; o contato com o detetive, as suposições do que pode ter ocorrido, a combinação do preço pela investigação e a denúncia a polícia. Por último os desfechos, oito no total. Apesar dessas opções de escolha a narrativa pode ser separada em duas, pois não importa que caminho se siga, os acontecimentos são os mesmo, havendo somente uma breve resposta à opção do leitor. Caso a pessoa deseje repetir a leitura do conto procurando fazer escolhas diferentes, ela só irá perceber o impacto dessas escolhas no desfecho do conto, isso devido a como ele está estruturado. Abaixo um exemplo desses acontecimentos fixos, mesmo com escolhas diferentes.

Resposta dada pelo detetive quando o protagonista confirma que a irmã é falsa, e que há a possibilidade dela ter fugido por vontade própria.

De: Sr. Dupin 0

Email: contato@mrdupin.com.br

Para: DIEGO EMANOEL

Assunto: Re: Re: Um estudo em Vermelho

DIEGO EMANOEL, lamento muito, realmente tem gente muito falsa por aí e uma de minhas missões é desmascarar essa gente. Farei de tudo por você, tenha certeza, com toda a discrição e presteza possíveis. E acho que estamos no caminho certo, veja como adivinhei de cara seu problema.

Quanto a valores, você sabe que meu trabalho é muito difícil, ainda mais num caso como esse em que você tem urgência, precisa de muita discrição, moro em outra cidade. Eu terei despesas com hotéis, ônibus, restaurantes, táxis... Por outro lado, uma pessoa tão distinta não pode contratar um qualquer, é preciso alguém como Mr Dupin, alguém capaz de solucionar casos impossíveis sem sair de casa, apenas pela dedução lógica. É verdade, DIEGO EMANOEL, houve um caso em que... Bem, mas não é o caso do seu caso, então contando as despesas que terei mais o valor do serviço, podemos fechar por R$ 600.000,00, sendo metade do pagamento para começarmos os trabalhos e a outra metade depois do caso solucionado. Pense bem, pode ser caso de vida ou morte, e a vida da sua irmã, tenho certeza, vale muito mais do que isso. Resposta dada pelo detetive quando o protagonista fica ofendido pela insinuação que sua irmã possa ter fugido por vontade própria.

De: Sr. Dupin 1

Email: contato@mrdupin.com.br

Para: DIEGO EMANOEL

Assunto: Re: Re: Um estudo em Vermelho

DIEGO EMANOEL, lamento muito, não quis ofender de forma alguma sua família, ocorre que lido diariamente com casos como esse e você não sabe como tem gente falsa por aí.

Quanto a valores, você sabe que meu trabalho é muito difícil, ainda mais num caso como esse em que você tem urgência, precisa de muita discrição, moro em outra cidade. Eu terei despesas com hotéis, ônibus, restaurantes, táxis... Por outro lado, uma pessoa tão distinta não pode contratar um qualquer, é preciso alguém como Mr Dupin, alguém capaz de solucionar casos impossíveis sem sair de casa, apenas pela dedução lógica. É verdade, DIEGO EMANOEL, houve um caso em que... Bem, mas não é o caso do seu caso, então contando as despesas que terei mais o valor do serviço, podemos fechar por R$ 600.000,00, sendo metade do pagamento para começarmos os trabalhos e a outra metade depois do caso solucionado. Pense bem, pode ser caso de vida ou morte, e a vida da sua irmã, tenho certeza, vale muito mais do que isso.

A narrativa de Spalding é estruturada de forma semelhante a uma árvore genealógica. Há um ponto de partida, sendo a introdução e o contato com o detetive, a partir daí se dá origem a ramificações, que são separadas sempre em pares. Não considero os hiperlinks como partes da narrativa, eles exercem uma quebra de linearidade, porém sem nenhuma influência real na ficção do conto, pois são usados apenas para uma contextualização de uma referência. Fazendo-se desnecessário o hiperlink se o leitor já possui conhecimento prévio da referência citada.

O tipo de estrutura na qual o conto foi construído poderia ser facilmente aplicado numa plataforma não digital, assim como os livros de Steve Jackson citados anteriormente. Caso isso ocorresse o conto perderia muito de sua conexão com o leitor, pois o fato do conto simular trocas de e-mails faz do computador o ambiente mais envolvente para a leitura desse tipo de narração. Abaixo há a estrutura de acontecimentos do conto, onde se tornam mais claras duas linhas narrativas em que a ficção de Spalding se desenvolve. É a alteração entre essas duas linhas que dá origem aos oito finais possíveis.

(infelizmente não há como colocar aqui a imagem que mostra a estrutura do texto)

Como se pode constatar pela estrutura acima, várias partes da narrativa se repetem não importando que escolha seja feita. Cada uma das escolhas leva a um final diferente, um desfecho distinto para o mistério da irmã desaparecida. Se o leitor opta logo no início em considerar que a irmã é uma falsa, todos os finais refletem essa escolha, não havia sequestro, tudo era um plano de um casal de apaixonados. Se a decisão é de que não havia nenhuma chance da irmã fugir por conta própria, então todos os finais vão levar de fato a um sequestro. Mas o uso dessa interatividade, do poder de escolha faz deste conto um conto melhor? Não faz. Não estou aqui julgando se de fato este é um conto de qualidade ou não, mas sim afirmando que somente as ferramentas tecnológicas, os hiperlinks e hipertextos não fazem de qualquer narrativa, uma narrativa melhor.

Toda narrativa evoca emoções e sentidos únicos a cada leitura, no entanto essa evocação é guiada pelo autor, que molda o texto escrito a sua vontade para extrair do leitor os significados e emoções que ele (autor) deseja. Não descarto aqui a pluralidade de sentidos, emoções e significados únicos à literatura, o que, de fato, o autor deseja não importa ao leitor. Nem sempre a intenção do autor casa com a leitura feita, porém essa pluralidade está atrelada ao texto, não podendo fugir ao espectro do que foi dito. Sendo assim, essa interatividade, a possibilidade de uma narrativa não linear, não torna a narrativa melhor ou pior, em alguns casos só a torna mais pessoal, como no conto em análise, em outras narrativas a não linearidade pode causar uma ficção fragmentária e labiríntica. Spalding com o uso dessas ferramentas, agora amplamente disponíveis com as mídias digitais, dá ao leitor a possibilidade de tornar essas evocações de sentidos e emoções mais pessoais. O autor ainda molda o texto como antes, no entanto há mais de uma possibilidade para o leitor, o que torna a narrativa mais pessoal, mas não melhor ou pior.

No jogo para Playstation 3 Heavy Rain (Quantic Dream 2010) o jogador toma o controle de quatro protagonistas que estão atrás de um assassino em série, uma repórter, um homem em depressão por ter perdido um filho, um agente do FBI e um detetive particular. Um desses protagonistas é o pai da ultima criança que foi reptada pelo assassino. Esse pai de nome Ethan Mars, já havia perdido seu filho mais velho em um acidente de trânsito, em que ele se considera culpado. Agora com seu segundo filho desaparecido, Mars quer fazer de tudo para encontrá-lo. Em um determinado momento da narrativa do jogo é dada a opção ao jogador de matar ou não matar um traficante de drogas. Atirando no traficante o jogador ganha várias palavras para completar um jogo de forca, que contém o endereço de onde o filho de Ethan está preso. A cena é muito intensa, o peso da narração e das mecânicas do jogo faz com que o jogador entre nesse universo. Matar o traficante pode ajudar a salvar seu filho, mas por outro lado Ethan é apenas um pai, não um assassino e pode haver outras formas de achar sua criança. Heavy Rain coloca o jogador nessa posição de “qual decisão devo tomar?” tornando a narrativa mais pessoal da mesma maneira que os hipercontos podem fazer. A escolha deste exemplo serve para mostrar que esse tipo de estrutura narrativa pode ser encontrado em vários tipos de mídias, não somente no literário. Observando esse tipo de estrutura narrativa não consigo deixar de questionar de onde esse tipo de estrutura surgiu. Infelizmente esse não é o foco deste artigo, mas pretendo futuramente me debruçar nesse assunto.

Assim como Heavy Rain e L.A. Noire (outro jogo fortemente focado na narrativa) e o conto de Spalding fazem parte do gênero policial. Para tentar entender um pouco do motivo da escolha desse gênero por esse tipo de narrativa vou caracterizar brevemente o gênero policial, de onde o mesmo surgiu e verificar se realmente o conto Um estudo em Vermelho se encaixa nesse gênero.

O gênero policial como nós conhecemos hoje teve origem nos Estados Unidos com o autor Edgar Allan Poe. Por esse motivo não é surpresa nenhuma constatar que o detetive de Poe e o de Spalding possuem o mesmo nome. O que tornou o conto Os crimes da rua Morgue a primeira narração policial dos moldes da contemporaneidade foi a ênfase no raciocínio lógico, tratando o crime como um acontecimento científico. Adriana Freitas ainda coloca que:

O temor frente ao desconhecido e o espanto produzido pela resolução de um enigma são traços das narrativas policiais pertinentes, portanto, à própria psicologia humana, conforme atesta o fato, já por muitos apontado, de que essa configuração narrativa está, em germe, em todas as investigações racionalmente conduzidas. É a ficção utilizando-se da razão para extrair prazer: o enigma vira crime e o cientista, detetive. Assim, Edgar Allan Poe trabalhou ficcionalmente, dando a forma literária do conto policial a uma inclinação humana já presente, por exemplo, em Édipo. A raiz profunda, metafísica, dessa narrativa é possível que resida na necessidade humana de eliminar o sofrimento que nos domina enquanto não atingimos a compreensão de uma dada questão.

Adriana Freitas (Romance Policial: Origens e Experiências Contemporâneas, pag. 3 2009)

O gênero policial não teria surgido se a sociedade não houvesse caminhado na direção em que hoje se encontra; capitalista e urbanizada. Sem o surgimento das cidades não haveria o palco das narrativas, afinal o romance policial é um romance urbano. É na urbis onde o crime se dá, os criminosos se ocultam e onde a policia atua. Sem a industrialização da palavra escrita, jornais e folhetins, não haveria a divulgação de delitos, assim excluindo o romance policial.

Através da palavra, o medo se torna uma tortura da imaginação e estabelece uma relação poética entre o leitor e narrador; o mundo com seu caráter ainda selvagem e ameaçador (por mais contraditoriamente urbano e racionalizado que possa parecer) é, dessa feita, uma fonte fundamental de inspiração literária. O romance policial é permeado por esses vários elementos advindos do contato do homem com o outro e com o desconhecido – medo, mistério, investigação, curiosidade, assombro, inquietação, que são dosados de acordo com os autores e as épocas.

Adriana Freitas (Romance Policial: Origens e Experiências Contemporâneas, pag. 5 - 2009)

Considerando as características pinceladas do gênero policial (medo, mistério, investigação, curiosidade, assombro, inquietação), não considero o conto de Spalding um perfeito exemplar de tal gênero. Há alguns elementos emprestados dos contos policiais, o próprio nome Dupin é um claro exemplo de inspiração, mas considerando a narrativa o conto escapa ao gênero criado por Poe. Um estudo em Vermelho possui um mistério, a irmã desaparecida, mas essa característica não é trabalhada de uma maneira que crie medo, curiosidade, assombro ou inquietação. A narrativa não explora em nenhum momento os passos da investigação, excluindo assim uma das principais características do gênero policial. Como característica de gênero (que obviamente pode ser subvertida como tudo no literário) o leitor é jogado num mistério insolúvel, normalmente criado por omissões (local, nomes, armas, circunstâncias), disto surge à crença que o detetive irá desvendar o enigma apresentado em forma de crime. A narrativa segue com o leitor desvendando junto com o detetive os laços dos acontecimentos. Essa estrutura típica do gênero policial é totalmente negada no conto de Spalding.

O gênero policial hoje é ainda muito forte, nos últimos anos ele conquistou um lugar de destaque na mídia televisa com séries como CSI e Law in Order. Mesmo no formato de série, ou na forma de jogo como Heavy Rain e L.A. Noire essa estrutura típica do gênero se mantêm com todas as características citadas anteriormente. Sendo assim o conto em análise, apesar de apresentar semelhanças com o gênero policial, não se enquadra no mesmo.

Outro ponto que põe em questão é que se de fato o conto se enquadra como hiperficção. Como foi mostrado anteriormente, o único motivo desta narrativa fazer parte desse grupo é pela não linearidade de seus desfechos, mesmo assim o conto de Spalding está em uma estrutura muito rígida e fechada, as quebras de linearidade da narração são apagadas e de pouca importância para a proposta do conto. Digo apagadas, pois na tela de fundo preto e letras brancas o sublinhado dos hiperlinks pode passar facilmente despercebido. Então podemos considerar esse conto um hiperconto? Em seu artigo de nome Hipertextos Literários: Cidades Invisíveis, O Jogo da Amarelinha e Tristessa Neitzel afirma que as hiperficções são: “um processo de escrita e leitura que não depende do aparato técnico que dá suporte ao texto, mas sim dos procedimentos narrativos utilizados pelo autor para ampliar o potencial do texto escrito e do movimento de leitura que o leitor efetua.” . Por esse motivo texto impressos como O Jogo de Amarelinha são considerados hiperficções, por todo o movimento que o leitor pode efetuar durante a leitura. Pois o leitor não fica preso ao continuo, o linear, o texto é tramado de uma maneira que convida o leitor a explorar, a buscar novos rumos, assim alterando o progresso narrativo. Mesmo com essa estrutura mais rígida do que o esperado para uma hiperficção, o texto de Spalding se encaixa no que Hayles chama em seu livro Literatura Eletrônica: Novos Horizontes para o Literário de hiperficção de primeira geração, onde se encaixam autores como Michael Joyce, Jay Davi Bolter e John B. Smith.

Um estudo em Vermelho é uma hiperficção embrionária, que ainda está arranhando as possibilidades que o digital traz para o literário. Ferramentas como hiperlinks e múltiplos desfechos são só o início. No entanto isso não anula a validade da proposta para a qual ele foi criado, a de divulgação e incentivo da hiperficção no Brasil. As possibilidades da literatura nas mídias digitais são tão amplas quanto a capacidade humana, e como a curiosidade que move o mundo, inesgotável.