NEM TUDO ERA POLÍTICA NA ESPANHA DE SIRA QUIROZA*: havia Arte

Leonardo Lisbôa

Academicismo – Vanguarda – Manifesto Antiartístico

A Espanha de 20 e 30 do século XX, que serviu de pano de fundo para o romance de Maria Dueñas não era só espaço recendente de conflitos políticos e diplomáticos.

A Espanha desse período foi pátria de cinco nomes que fizeram Arte. Um deles, pelo seu romantismo pretenso político seria fuzilado na Guerra Civil, Frederico Garcia Lorca, poeta. Os demais iriam se projetar em Paris e no mundo levando a bandeira dos seus estilos artísticos e através de suas artes emitindo opiniões políticas que decerto influenciariam os perceptíveis.

Estamos falando

.de Pablo Picasso, que denunciaria a destruição de Guernica, com seu quadro homônimo;

.de Joan Miró, que afirmaria que “gostaria de saber desenhar e pintar como as crianças” em uma referência a que as escolas interrompem a espontaneidade artísticas do infanto direcionando os seus coloridos, apresentando-lhes modelos e criticando seus desenhos espontâneos contribuindo para a fala que permeia a maioria dos adultos: “eu não sei desenhar e não entendo nada de arte”;

.de Luis Buñel que se tornaria cineasta e cujo primeiro filme trouxe tantas falas trocadas entre os produtores, amigos e opositores.

.e de Salvador Dali; expressão do surrealista e que dada a sua genialidade e excentricidade era ímpar e acima da sentimentalidade, mas que se apoiaria em Elena Diakonoff ou Hélène Dimitrovnie Diakonova ou simplesmente Gala, como seu ex-marido, Paul Eduard, a apelidara.

A relação de Salvador Dali (como todas as suas relações íntimas) com Gala era a expressão física, viva e material do Surrealismo como nos descreve Pierre Ajame:

“Salvador e Gala estão sozinhos. O estado nervoso de Dali parece agravar-se. Durante seus passeios, ‘imagem errante de dois loucos’, ele se lança ao chão e beija seus sapatos, ela vomita... O desejo torna-se monstruoso, mas ele não ousa. É virgem (talvez tivesse até conhecido algumas prostitutas durante as noites passadas com Buñuel nos cabarés madrilenhos) e se considera impotente. Sua sexualidade limita-se à masturbação que, aliás, praticará durante toda a vida, mas a idéia de possuir uma mulher – mais claramente: de penetrá-la – o faz temer ‘a sorte do louva-deus macho (que) sempre me pareceu ilustrar meu próprio caso diante do amor’” (p.45).

Não podemos esquecer que enquanto esta efervescência ocorria na Espanha das Oligarquias e Aristocracia, o Brasil do coronealismo também seria abalado. Na arte pela chamada “Semana de Arte Moderna de 1922” e na política pelo “Tenentismo”, o crescimento da classe operária e o Golpe de 1930, chamada pela historiografia tradicionalista de Revolução de 1930. Surgindo no poder e permanecendo por 15 anos “O Pai dos Pobres” e a “Mãe dos Ricos” na figura dual de Getúlio Vargas. E que lá, no país de Dali, havia a “Falange”, aqui tivemos o ‘Integralismo’” (Portanto dois países de continentes diferentes e de mesmo imaginário coletivo: latinos).

A vida daqueles cinco seria marcada pelo tangenciamento entre Dali, Picasso e Miró; e pela intersecção entre Dali, Buñuel e Lorca. Estas combinações sociais seriam dariam a tonalidade direcionada sempre por Dali segundo seus interesses e maneiras de ser.

O jovem Salvador Felipe Jacinto Dali Y Domenech terá, por sua vez a vida marcada pelas presenças masculinas de seu pai Salvador Dali Y Cusi, tabelião em Figueras e pelo amigo da família, o pintor Ramon Pichot. Do pai se tornará praticamente inimigo e com o referido pintor tomará conhecimento do fauvismo, cubismo e impressionismo (estilo este repudiado por Dali). As figuras femininas que marcarão sua infância e adolescência serão: a frágil mãe, Felipa; a irmã Ana Maria e a Madrasta, Catalina.

Dali nasceu em 11 de maio de 1904 e sua educação primária e secundária foi medíocre. Não se interessava por nada que não fosse ARTE. “Fora da Escola, sua paixão não conhece freios. Pinta paisagens de Cadaquès, a praia de El Llané, membros da sua família, garrafas de arenito, peras, auto-retratos e até mesmo curiosas composições de um cubismo muito aplicado. Em resumo, pratica suas escalas com um rigor que seu comportamento desmente. É que, no fundo, também no modo de ser, ele pratica suas escalas. Durante toda a sua vida, saberá manejar a extravagância do comportamento e a extrema disciplina no trabalho” (AJAME, p.13).

Dali é averso ao academicismo, que domina a Espanha conservadora, e ridiculariza o impressionismo. Portanto é mordaz com Monet, Cézanne, Renoir e taxa Turner como um dos piores pintores. Salvador não entende a razão daquelas manchas, espessas e informes, que se afastadas do olhar, tem algum sentido que logo é esquecido. Dá-lhes um desconto por este estilo não ser aprendido nas escolas da época.

Quanto ao cubismo “não lhe parece certamente um fim em si mesmo, mas um bom exercício. Decompor o espaço e reestruturá-lo segundo regras não provêm de nenhum cânone ensinado”. (AJAME, p. 15).

Esta sua birra por aquilo que pudesse ser produzido a partir do ensinamento e aprendizado, e que não fluísse de si mesmo lhe proporcionará a produção do “Manifesto Antiartístico”.

Na juventude preferia os artistas enfáticos e pretensiosos chamados naquela Espanha de “Pompiers”, especialmente Mariano Fortuny.

Com tudo isto ele introduzirá a noção de valores pictóricos como inspiração (fruição), genialidade e mistério. Ele sabia que um artista pompier pode ter ou pretender a alguma dessas três noções, mas jamais os três valores reunidos em sua obra.

Apesar de sua aversão à Arte escolada, seu pai o matricula na Escola de Belas Artes de Madri. Ele vai morar na ‘Residência Universitária’ chamada por aqueles que ali moram de “Colina dos Choupos”. Este lugar de morar contribuiu de forma mais enfática para sua formação do que a ‘Escola’ em si. Uma vez que preferia ficar em seu quarto exercitando, experimentando à assistir as aulas que ele achava de grande inutilidade e gostava de discutir ideias artísticas com seus amigos, além das noitadas com Frederico Garcia Lorca e Luis Buñuel.

“...Sozinho no quarto, passa do cubismo ao ingrismo sem renunciar as suas próprias fantasias e sem nunca seguir os caminhos demarcados do ensino oficial... Algumas semanas são suficientes para que se torne o catalisador de todas as imaginações e logo o arauto e o herói de todas as contestações”. (AJAME, p.17).

Tudo isto é compreensivo uma vez que com quinze anos já havia exposto telas no Teatro Municipal de Figueras, capital de Ampurdan, e abordava crítica de arte na revista ‘Studium’.

Se a genialidade de Salvador Dali já se fazia tão cedo e se ele era avesso à formação acadêmica, pergunta-se: Por que ele se matriculou no curso de Belas Artes em Madri?

Três razões são possíveis. Para satisfazer aos desejos do pai que queria o filho com um título acadêmico. Depois, segundo Pierre Ajame, “é possível pensar que Dali segue os cursos para ter certeza de não reter nada”. (p.17). E porque, sem ter a intensão previa disto, o estar na “Colina dos Choupos” seria importante para sua expressão como pessoa e como artista:

“A residência é um local mítico, aberto a todas as correntes de pensamento, acolhedor para os visitantes, onde reina uma camaradagem brincalhona entre jovens que compartilham estudos, refeições e discussões, numa atmosfera intelectual intensa: a política, a arte, o sexo, o álcool, tudo é pretexto para intercâmbio, mas também para badernas e zombarias”. (AJAME, p.16).

Entretanto, quanto à realidade histórica da Espanha, Salvador toma uma posição política: manter-se neutro. Não se posiciona a favor dos republicanos, dos parlamentaristas e nem dos monarquistas de direito divino. Sua aparência extravagante poderia significar sua rebeldia, que faz com que acabe sendo expulso da Escola de Belas Artes e que o torna ARTISTA, mas não representava nenhuma subversidade política.

Salvador exprime sua opinião dizendo que Lorca, ao ser fuzilado na Guerra Civil Espanhola, o tenha sido mais por motivos românticos do que por razões realmente políticas. Afirma ele em seu diário: “Eu, que fui seu melhor amigo posso testemunhar diante de Deus e diante da história que Lorca, poeta cem por cento puro, era consubstancialmente o ser mais apolítico que jamais conheci”. (AJAME, p.26).

Dali tem um relacionamento afetivo com Lorca, mas nunca deixará isto ultrapassar o limiar da sexualidade.

Como o pintor tinha um foco, sua arte, abandonará esta amizade deixando Lorca seguir seu destino que culminará em sua tragédia: o fuzilamento do poeta como republicano em 1936.

Entre os dois notórios, pintor e poeta, surge uma simbiose que faz de Lorca um desenhista e de Salvador Dali um escritor. Lorca lhe homenageia com “Ode a Salvador Dali” e este lhe retribui com “um texto mágico, ‘São Sebastião’, publicado em L’Amic de lês Arts... uma espécie de poema em prosa muito louco e erudito...”. (AJAME, p.24). Apesar de tantos confetes, Dali criticará o lirismo de Lorca depois que o pintor decide seguir o quê era realmente seu objetivo.

Antes de ser expulso da Escola de Belas Artes de Madri, Salvador Dali organiza uma exposição na galeria Dalmau, em Barcelona. Isto faz despertar a atenção de Picasso e de Miró sobre o jovem artista. Era o início de contatos importantes que faz sobressair o seu nome no Mundo das Artes. E isto se confirmará em outra grande exposição em Barcelona, “trata-se do famoso Salão do Outono que marcará seu verdadeiro lançamento”. (AJAME, p.25)

Quanto a Picasso manterá uma relação longa de estima e veneração permeada de desconfiança, ciúmes e palavras tortas.

Quanto a Miro, uma vez que o artista é onze anos mais velho que Salvador, desperta o senso de camaradagem e entusiasmo. Dali homenageia o artista de senso alegre e até cômico.

Salvador Dali admira os artistas que verdadeiramente criam sem passar pela fase de copistas e escolas de Belas Artes. E juntamente com os críticos de arte catalães, Luis Monranya e Sebastia Gasch propõe o ‘Manifesto Groc’ ou ‘Manifesto Amarelo’ ou ainda ‘Manifesto Antiartístico’. O artista tem que buscar a arte que nasce de si e não copiar dos outros, não tentar pintar aquilo ou aquele estilo que não é o seu, que não foi criado por si e nem aprendido em alguma escola. “Ser Antiartístico consiste em criar uma arte ‘de acordo com sua época’ e, portanto, lançar ao mar toda referência cultural que possa enferrujar o mecanismo do novo pensamento. Ser antiartístico é denunciar a falta absoluta de juventude entre os jovens – a fatos novos, das palavras, do risco do ridículo...” (AJAME, p.30).

Ainda na “Colina dos Choupos”, na Residência Universitária, a amizade de Dali com Lorca causa constrangimento a Luis Buñuel, que inicialmente prefere ser visto apenas como um colega.

Com o afastamento de Lorca, porém, Dali e Buñuel se aproximam e produziram um filme “Um cão Andaluz”. Dali dá provas de sua cultura cinematográfica e não resiste ao prazer de se fazer de mestre para o rude Buñuel.

Os dois amigos viverão momentos de rixas e de tréguas. Luis Buñuel em “Meu Último Suspiro” escreve sobre Salvador Dali: “Quando penso nele, apesar de toda as lembranças da nossa juventude, apesar da admiração que uma parte da sua obra me inspira ainda hoje, é impossível para eu perdoar seu exibicionismo ferozmente egocêntrico, sua aliança cínica com o franquismo e principalmente sua aversão declarada à amizade”. (AJAME, p.35).

Parece que Dali se leva apenas pela sua paixão pelo Surrealismo deixando “sua curiosidade (que) ultrapassa o campo da pintura: interessa-se igualmente pela poesia, pela fotografia, pelo cinema e pelas posições políticas do movimento”. (AJAME, p.35).

Depois do Surrealismo vem Gala (ou Gala vem antes do surrealismo?), a mulher que pontua sua vida em uma relação louca, que só pode ser Surreal e ímpar. Ela era a amante, a empresaria e o louva-deus fêmea que poderia lhe devorar.

*Um Protagonista do Romance de Maria Dueñas.

REFERÊNCIAS:

a) BIBLIOGRÁFIA:

1) AJAME, Pierre – As Duas Vidas de Salvador Dali. Ed.Brasiliense. S.A. – SP – 1986.

2) DUEÑAS, M. – O Tempo Entre Costura – SP. Ed. Planeta do Brasil, 2010.

b) FILMOGRAFIA:

1) Poucas Cinzas – Direção: Paul Morrison.

L.L., Bcena, 21/10/2011

Leonardo Lisbôa
Enviado por Leonardo Lisbôa em 21/10/2011
Código do texto: T3290753
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