O Mulo- Darcy Ribeiro

Relendo “ O mulo.”... Encontrei Darcy. Filhos dos Montes Claros.

Gustavo Mameluque. Jornalista e Crítico de Arte.

O antropólogo Darcy se mostra completamente inteiro em " O Mulo". Também considerado por muitos literatos brasileiros como um romance regional ele retrata o cotidiano do Sertão das Gerais , de Montes Claros a Cristalina de Goiás. Passa pela construção de Brasília-DF em um tempo de Coronéis, herança próxima dos Coronéis de Brasília de Minas, São Francisco, São Romão e Januária tão bem retratado na obra de Saul Martins e Petrônio Braz ( Antônio Dó e Serrano de Pilão Arcado-respectivamente). Segundo Wanderlino Arruda, escritor montesclarense, Darcy, sem demorar muito será reconhecido, como um dos grandes romancistas brasileiros do Século XX. Será, talvez, lembrado muito mais como romancista do que como o grande sociólogo, político, antropólogo e político questionador que foi. Somente para relembrar: “Assim cheguei a esse poço sem fundo de lembrança, que despejo em cima do senhor. Sou, hoje, um mulo cheio de reminiscências. Eu nem supunha que coubesse em mim, nem em ninguém, tanta lembrança como as aqui recordadas. Com surpresa vi quanta estava em guardada, soterrada, querendo sair, sopitar, sangrar."(1)

Sobre esta obra, Darcy Ribeiro escreveu em seu livro Testemunho (2) “Ao contrário do chamado romance social que exalta humildes mas heróicos lutadores populares, em O Mulo eu retrato o nosso povo roceiro, sobretudo os mais sofridos deles que são os negros, tal como os vi, sempre mais resignados que revoltados. Além da espoliação de sua força de trabalho e de toda sorte de opressões a que são submetidos, nossos caipiras sofrem um roubo maior que é o de sua consciência. O patronato rural se mete em suas mentes para fazê-los ver a si mesmos como a coisa mais reles que há.

Guardo em mim recordações indeléveis das brutalidades que presenciei em fazendas de minha gente mineira e por todos estes brasis, contra vaqueiros e lavradores que não esboçavam a menor reação. Para eles a doença de um touro é infinitamente mais relevante que qualquer peste que achaque sua mulher e seus filhos. Esta alienação induzida de nossa gente, levada a crer que a ordem social é sagrada e corresponde à vontade de Deus, é que eu tomei como tema, mostrando negros e caboclos de uma humildade dolorosa diante de patrões que os brutalizavam das formas mais perversas. Tanto me esmerei na figuração destes contrastes que um pequeno bandido político em luta eleitoral contra mim fez publicar alguns daqueles meus textos de denúncia como se expressassem minha postura frente aos negros. “

“Quem pegará meus papéis de confissão e sairá depois da minha morte em busca do senhor, seu padre (...) não conto com ninguém.”(1). Darcy retoma o tema da velhice, da desilusão do fim de vida, dos nossos raros momentos de reflexão. ““ O mulo” é uma obra de questionamentos, vividas pelo narrador e pelos seus diversos conhecidos de Montes Claros, como muito bem relata Wanderlino Arruda em suas crônicas e pela ocasião do lançamento de” O mulo” em nossa cidade. Inicialmente incompreendido pelos críticos literários e pela quase maioria dos leitores este romance regional vai se mostrando cada vez mais universal à semelhança de” Grande Sertão: Veredas”. Philogônio é a antítese do herói Riobaldo de Rosa. É a antítese de Antônio Dó, na construção de Petrônio Braz e não na construção de Saul Martins.

Darcy, através das falas de Philogônio de Castro Maya e outros nomes se perguntam e perguntam aos leitores mais interessados e analíticos: Se haverá o “perdão” no limiar dos meus dias posso então viver uma vida de maldades e ao final arrepender-me e, passando pela purga, habitar um dia na Casa do Pai? Se não, para que serviria o Cristianismo? E as mortes que pratiquei e que foram “merecidas”? A morte do Lopinho? E a da devassa Emilinha que se dava aos cães em noite de orgia bestial? E quando matei por legítima defesa antecipada? E quando acabei com Dominguinhos-Temido por todas e todos? Estaria fazendo a Justiça com as próprias mãos? Não mais haveria necessidade do Perdão de Deus? E continua provocando, instigando o montesclarense inquieto Darcy. O gênio Darcy. O filho de Mestra fininha e irmão de Mário. O tio de Ucho e Paulinho.O insaciável Darcy. Parece até que antevia os conselhos de Steve Jobs da Apple: “Permaneçam Sedento”. Existem padres santos? A santidade ainda existe nesta terra dos homens? Darcy nos traz um Cel. Maya asqueroso e bruto no seu dia-a-dia. Para ele negro e índio não têm alma. Não é gente. É projeto de Gente. É moinha. De uma certa forma mostra no romance que alguns resquícios deste pensamento conservador e anti-humano criaram raízes no coronelato brasileiro que Gilberto Freyre, tentou escamotear na “democracia racial” de Casa Grande e Senzalas. Havia uma certa harmonia, um certo respeito do Senhor de Engenho para com o negro e especialmente a negra das Senzalas. Negra que se deitava com o Senhor. Negra ama de leite. E viviam em harmonia. Em “o mulo” Darcy quebra, arrebenta está lógica da” Democracia Racial”. E nos traz ainda uma personagem mutante. Como mutante somos. Permeando entre o bem e o mal. Um personagem múltiplo na fala de Wanderlino. Um personagem indefinido para vários resenhistas de “O mulo".

Phylogônio de Castro Maya (Maia com Y) é o seu último nome. Inventado. Criado. Forjado. Engendrado pelo recadastramento da Justiça eleitoral goiana, porém, este nome teve diversos outros nomes: Já foi chamado de ninguém, de coisa, de estrupício, de nada, fuso, qualquer um, Filó, Terêncio Bórgia (que se julgava seu pai) e Terezo. Por fim: mulo.

“Uma madrugada que acordei estremunhado e saí porta a fora, bati com o pé no moleque que vivia enrodilhado ali; Acordando assustado ele me perguntou gritando: Que é seu mulo? Quem é quem? Perguntei eu. Aprendi ali, naquela hora, meu apelido.”(1)

Maya nunca amou verdadeiramente qualquer pessoa. Talvez um amor carnal por Emilinha; mas nem tanto porque a lançou aos negros sedentos. Terminou sem a quem deixar tantas conquistas iniciadas com arrieiro e depois tropeiro em Paracatu, sempre em direção às águas limpas e livres de Goiás. Tornou-se rico de posses, mas pobre de sentimentos nobres. Fazia sua própria justiça, do seu jeito. E narra tudo na fazenda laranjos. Amigos? Talvez um único; Militão. Tão amigo que coube a ele comprar o seu luxuoso caixão em Brasília-DF. Fim de vida amargurado? Arrependido? De alguns pecados. Quais de nós não temos pecados? Quais de nós somos santos? Darcy com toda a sua inquietude e força nas palavras nos impressiona. Romance para ler. E reler. E depois ler de novo. Caliente, quente, para alguns até pornográfico. Existe pornografia em Literatura? Melhor dizendo: Erótico. Sensual. Excitante. Leitura agradável aos olhos.

Darcy na sua integridade ética e revolucionária de sociólogo e antropólogo, de educador, de visionário, de gênio falante, de político, de irmão, de lucidez própria dos grandes homens e dos grandes pensadores define a nação brasileira como” a nova Roma.”(3). Mais forte e criativa do que Roma. Porém também eterna. Nação nova. Livre. Da mistura linda de índios, negros e europeus.

Darcy, no conjunto da sua obra literária (Maira, Mulo, Povo brasileiro) renova a cada dia a sua convicção antropológica e revolucionária de que aqui na “terra brazilis” formou-se realmente um novo gênero humano. Uma nova civilização; mais produtiva, mais generosa, porque aberta à convivência, com todas as raças e todas as culturas. Talvez o mundo e em especial o Oriente Médio devesse ler mais Darcy. Não só isto. Entender Darcy.

“ Ao contrário do que alega a historografia oficial, nunca falhou aqui, até excedeu, o apelo à violência pela classe dominante , como arma fundamental da construção da história”. ( Ribeiro,2006,pg.23)

Darcy que tanto admirava a fé de Mestra fininha talvez tenha convivido muito com Deus sem o saber. E poderia muito bem colocar em suas “confissões” uma máxima do Poeta maior Fernando Pessoa:” Cheio de Deus não temo o que virá, pois venha o que vier, nunca será maior do que minh’alma”. Viva o povo brasileiro. Viva Wanderlino. Viva Dona Yvone. Viva Constantin. Viva João Valle Maurício. Viva Ciro dos Anjos. Viva Cândido Canela.Viva Darcy!!!

Gustavo Mameluque. Resenha – “ O Mulo”

1).Ribeiro, Darcy. O mulo.Belo Horizonte: Leitura, 2007.

2). Ribeiro, Darcy. Testemunho. São Paulo. Ed. Siciliano, 1991, p.10.

3). Ribeiro, Darcy. O povo brasileiro. São Paulo. Companhia das Letras,2006.

Gustavo Mameluque
Enviado por Gustavo Mameluque em 13/01/2012
Código do texto: T3438859
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