MEMÓRIAS E FANTASIAS

Prefácio

Ternura – essa é a palavra que me vem à mente! É sexta-feira, começa a entardecer, o número de veículos aumenta. Meu trajeto passa pela Avenida Paulista e vou, de quarteirão em quarteirão, bem devagar. Outra palavra insinua-se entre meus pensamentos – encantamento –, mas isso ainda é pouco. Tenho uma companhia nesse trajeto; uma companhia invisível, mas muito agradável. Os textos de Guidina Giancoli pintam cenas vívidas diante de mim; cenas desta cidade amada por muitos, a cujos encantos, embora peculiares, até mesmo Caetano se rendeu. No começo da avenida, lembro de Ontem e Hoje, pois ali está o Hospital Santa Catarina (teria sido esse?). A brilhante escritora convive tão bem com as palavras, de forma que nos envolve na atmosfera de seus contos, de suas fantasias, como se fossem nossas também. É possível vê-la, deslocando-se na neblina das manhãs paulistanas, a caminho do colégio ou na viagem de bonde para ir à costureira, ao cabeleireiro... – o destino não importa ; é a viagem que conta. E não é assim a vida? – murmura a voz interior – fazendo eco à mensagem da autora.

Com tanta habilidade Guidina Giancola tece suas tramas, mistura as memórias e as fantasias, que leva o leitor a visitar e revisitar os trechos por onde passou e, no caso dos paulistanos, por onde passamos... Procuro pelos ipês floridos, já que é primavera. Que é deles? Esparsos, escondidos nos jardins dos casarões que restaram, embora provoquem raios amarelos na avenida da imaginação. Presentes, porém, continuam o os pombinhos do Trianon, o Dante, a rua Augusta, a igreja da Consolação, bem como o Martinelli, o Viaduto do Chá, a Praça da República...

Um toque de realidade traz à cena outra faceta importante destes contos e crônicas de Memórias e Fantasias. Por mais que se escreva e se descreva a cidade, sua evolução, como foi e como é, sempre há alguma coisa nova a ser descrita, registrada, “gravada”, fatos que compõem o acervo da história da cidade, que cada qual enfoca por um ângulo diferente. Esse é um dos aspectos determinantes para atrair o leitor deste livro.

Mas o talento da autora não para nesse aspecto. Ela mostra a alma e a esconde; revela e resguarda, com competência, habilidade, belas metáforas, utilizando com maestria as denotações, em que a cena corriqueira leva à mudança de plano – “Cadê meu gato real, personagem imprescindível deste momento meu?” (Lembrança); – Onde o brilho de um olhar iluminando a hora? (Fascinação). Se a lingua não fornece os elementos de que precisa para expressar o que sente ou deseja, utiliza a licença poética (seus textos são poéticos!) e cunha termos próprios e originais.

O plano exterior e o interior surgem e ressurgem invariavelmente mesclados, entrelaçados. Na escrita, nada é gratuito. A narração é pretexto para a crítica, o sonho, as emoções, as reminiscências. A composição nos conduz a uma “casa dos espelhos”, onde Guidina Giancola olha a si mesma, incluindo-nos em sua miragem. Ela relata com extrema sensibilidade situações pelas quais todos passamos, nas quais podemos nos ver refletidos, sobre as quais podemos refletir, como o faz em O Espetáculo de Todos os Dias, com evidente nostalgia, ou em Psicanálise, com refinado senso de humor. Por entre esses planos, fluem outros aspectos igualmente relevantes; o da experiência, cultura, amor às artes; da noção de limites, da compreensão dos conflitos… – “Seu preço também era bom. Assim mesmo parece que a época não era própria para certas coisas (supérfluas?), pois havia a guerra na Europa e a repercussão já se fazia sentir aqui.” (O Piano); – “Soube mais tarde que esse local fora adaptado como um pequeno hotel para hospedar estrangeiros que aqui chegavam, saindo de seus países onde havia a ameaça de uma nova guerra, que infelizmente aconteceu tempos depois.” (Vivências).

Guidina Giancola, entanto, não é saudosista, nem está presa ao passado. Naquilo que nos apresenta, tem senso acurado do presente, da atualidade, do conhecimento de que o momento é agora e o caminho é para frente. O texto final, a respeito de um conto de Tchekov, traz uma reflexão pertinente a respeito da questão. Tudo muda, mas continua paradoxalmente semelhante: – “Por que brincou assim o personagem de Tchekov? Por que continuam a brincar assim, com o coração das meninas em flor, os rapazes de todo mundo? Tristes indagações sem respostas, indagações sempre presentes onde quer que se esboce um sentimento fatal para a armadilha do coração” –.

Por essas razões, certamente não as únicas, recomenda-se a leitura de Memórias e Fantasias. Leitores percorrem caminhos de entendimento diferentes, contudo, quaisquer que sejam, podemos assegurar a fruição de momentos em que o ato de ler será um prazer verdadeiro.

Nilza Azzi (Nilza A. Hoehne Rigo)

Academia Campineira de Letras