Eu, papai e a Literatura

Aprendi com meu pai a reconhecer minha ignorância sobre certas coisas e verdadeiras obras de Arte, a qualidade artística de qualquer trabalho e/ou como conquistá-la; desde a apresentação de uma sinfonia, ou a invenção de uma nova receita alimentar, à feitura de um verdadeiro ser humano.

Formado em Literatura Inglesa, mas leitor assíduo em quatro idiomas de obras filosóficas clássicas, contemporâneas e de muitos estilos literários; crítico de arte várias vezes publicado na Revista Convivium (SP), quando meu primeiro revisor literário, papai se surpreendia com minhas ideias. Reclamando de minha “aversão” adolescente aos livros, ele me perguntava como eu escrevia aquelas coisas lendo tão pouco. E mesmo que eu ainda não escrevesse corretamente, enquanto conhecidos meus diziam que eu escrevia somente para reproduzir o que lera em muitos livros.

Em relação aos meus primeiros exercícios literários, embora eu e meu pai conversássemos sobre muitas coisas – estando eu com ele mais na qualidade de ouvinte do que de debatedor, tendo-lhe eventualmente lhe dado um conselho ou outro, pedido e acatado por ele – papai serviu para me dizer que, ao ler, eu deveria ler com atenção e devagar, imaginando que, talvez, com minha pressa geminiana, eu não pudesse perceber detalhes importantes das obras que lia: desde como as palavras são escritas até onde quando utilizar os sinais de pontuação de forma a dar ao (bom) leitor o mapa das oscilantes emoções vivenciadas por seus narradores personagens, o que todo autor presa em compor para apreciação e admiração de todo bom leitor.

Como faz um compositor ao escrever suas partituras, um bom escritor e um bom leitor sabem que cada sinal gráfico literário corresponde a um valor rítmico-tônico melódico-harmônico emocional, os quais apontam como o leitor deve proceder para, quando ler em voz alta, atuar o que lê fazendo virem à tona as vidas das personagens através da sua – também competência dos melhores contadores e contadoras de histórias.

Quando estive recentemente no Leme, na cidade do Rio de Janeiro (RJ), sob a coordenação do ator e crítico literário Eduardo Tornaghi, tive o prazer de ouvir as mais intensas interpretações de poemas de autores nacionais como nunca poderia conceber se os lesse sozinho. Confesso que aplaudi mais, não o poeta que escrevera o texto, mas o ator que o interpretara a torná-lo intensamente mais valioso, vivo.

Dessa forma, imagino que você só possa entender melhor o propósito da Literatura depois que for capaz de, como se diz, mergulhar numa história da mesma forma como mergulharia num mar desconhecido. E isso você só consegue se tiver nas mãos um bom texto (tanto em sua forma quanto em seus conteúdos) e a capacidade leitora interpretativa de um ator, cujo trabalho é abrir-se à incorporação de personagens que, de preferência, nada devem ter a ver com sua personalidade ou seu caráter pessoal. Pois quanto mais o ator afastar-se de si mesmo, a conseguir interpretar alguém que seja sua absoluta antítese, mais seu primeiro Oscar se aproximará dele.

Sei que isso é exigir demais da maioria de pessoas sem nenhuma prática ou interesse no desenvolvimento de leituras. Mesmo alguns atores não têm tanta capacidade de interpretar um texto a desenvolver seu personagem sem o auxílio de um diretor. Quando na qualidade de avaliadores de talentos, entretanto, preza-se pela observância de certos níveis de competências, em qualquer ramo de atividade, ao reconhecimento da melhor representação de primor nas apresentações de trabalhos de profissionais ditos detentores de determinado conhecimento.

Entre “juízes” da estética, contudo, quem detém o poder de reconhecer diferenças entre uma obra de Arte de uma tentativa a ela não pode usar seu conhecimento para humilhar quem ainda não conseguiu realizá-la – embora muitas vezes sejam mestres mal interpretados durante esclarecimentos; e mesmo que a parte destrutiva de uma crítica construtiva seja imprescindível quando a servir pretensamente de estímulo a fazer o aprendiz conseguir atingir seu ideal. E mais difícil será aceitar sugestões a melhoramentos se neófitos tiverem tido experiências críticas apenas entre seus concorrentes invejosos (que tendem deliberadamente a se esforçarem para por defeitos nas coisas e nas pessoas, mais do que reconhecerem suas virtudes); não como eu, que experimentei me submeter a avaliações constantes de um mestre-pai que, como o meu, prezava por sua capacidade de compreender e ensinar o que se pode melhor compreender de nós mesmos, de outras apresentações da Vida e do valor das representações artísticas que muitos fizeram e fazem dela e de si mesmos ao longo da História.

Pelo caminho, e mesmo para um necessário exercício de autoconhecimento de potencialidades e dificuldades, mais cedo ou mais tarde, inevitavelmente, muitos são forçados a reconhecer suas incompetências; nem que seja somente para si mesmos – como fiz muitas vezes eu e como ainda hoje faço, ao longo de meu desenvolvimento humano e profissional. Porque reconhecer incompetências não dói quando você descobre que tal procedimento é uma demonstração de que damos importantes passos à frente na conquista de certos necessários saberes.

Entre escritas artísticas, entretanto, influenciadas por correntes estéticas revolucionárias da Música e das Artes Visuais, escritores têm ganhado prêmios valiosos ao redor do mundo apresentando experimentos artísticos literários de conteúdos e formas variadas, muitas delas contrariando francamente tradicionais oficialidades gramaticais em benefício do desenvolvimento de exercícios “libertários” de expressão literária – de resto, reivindicação suprema de todos os artistas.

Mesmo realizando decomposições gramaticais – como a invenção ou fusão de termos e tempos verbais inexistentes, ou abreviações de pontuações, supressão de letras maiúsculas e palavras em páginas e páginas que, muitas vezes, têm o propósito de nada comunicar, entre outras estripulias estéticas – há ainda alguma regra a observar, tanto no fazer de pintores abstracionistas como entre escritores, quando se tenciona fazer experimentos dadaístas, por exemplo; ou como querem poetas concretos, que usam outros recursos gráfico-visuais na composição do poema em auxílio a fazê-lo dizer algo além do que somente suas palavras podem dizer – sendo mesmo impossível que qualquer recurso da comunicação, poético ou não, possa ser capaz de fazer sentir alguém certo cheiro que nunca sentiu.

Entre as regras a desconstruções observáveis, por exemplo, não se pode comprovar que um artista escritor compôs intencionalmente sua obra – um dos quesitos importantes em avaliações criativas – prezando pela estética da abreviação se escreveu num trecho de seu livro “vc ñ gst d sair cmg” (para usar o formato que jovens internautas usam em comunicações) e, quando foi usar novamente a abreviação, usou “vê” para “você”, “cmig” para dizer “comigo” e o “n” sem o til para dizer ”não”. Como foram escritos da primeira vez, os termos devem prosseguir sendo como foram primeiro concebidos; não porque "Deus", preocupado com a manutenção dos pontos das vírgulas em Seu texto sagrado ordenou que assim será ou deva ser - contrariando Sua decisão de conceder-nos o livre arbítrio e, consequentemente, o direito a livres expressões - mas também para tornar o texto visualmente limpo e de leitura agradável. E se a intenção de certa obra literária for causar desagrado, tudo nela deverá provocá-lo, sendo mesmo possível que haja possibilidade de que seu autor, num ou noutro momento, dê sinal de respeito a regras gramaticais na composição de seu texto.

Se isso importa a alguém além de mim, sou absolutamente contra a utilização de meias palavras em textos produzidos a pretendidos entendimentos em terras de maus entendedores, na Internet ou em qualquer outro meio de comunicação escrita. Mas, como artista, seria absurdo estar fechado à aceitação de certos recursos formais inusitados, quer na Literatura ou em qualquer outra manifestação artística; desde que identifique, nas obras de seus autores, algum indício de intencionais harmonias a me dizerem que o caos que tal obra queira referendar não é o resultado expressivo do trabalho de nenhum débil mental.