Olavo Bilac e José Paulo Paes - literatura infantil, do pragmático pedagógico ao estético literário

A literatura infanto-juvenil, ao longo de sua história, passou por complicações no que diz respeito ao valor atribuído pela crítica a esse tipo de produção. Um dos motivos que levam a essa “marginalização da Literatura Infantil” (HILLESHEIM, 2006) tem como um dos motivos a sua preocupação essencialmente pedagógica pragmática. Consequentemente, o caráter estético desses textos é frequentemente questionado.

A esse respeito, o volume 7 da Revista ACB (2002) traz a visão otimista da professora doutora Clarice Fortkamp Caldin.

O literário e o pedagógico estão imbricados na literatura infantil desde seus primórdios. A escola, ao priorizar o didático em detrimento do lúdico em textos para crianças, transforma a leitura em função pedagógica. Entretanto, arte e educação podem ser parceiras na fruição literária, se a escola fornecer às crianças os estímulos adequados à leitura. (Caldin)

Consequentemente, tais complicações também se aplicam à poesia voltada a crianças.

Em A Poesia que chega às escolas, Maria da Glória Bordini discorre sobre a relevância que se dá ao desenvolvimento psicobiológico das crianças, situando os textos que lhe são destinados de acordo com as suas faixas etárias. Ocorre que, segundo a autora, há uma forte presença da poesia de origem folclórica nos poemas dedicados às crianças nas primeiras faixas etárias – fato explicado por ela sob a noção do espaço familiar – visto que a poesia erudita não consegue atingir esse público leitor. Em um segundo momento, quando as crianças migram da esfera familiar à escolar revêem as histórias antes contadas pelos seus pais – agora lidas em uma linguagem erudita, nos escritos de autores reconhecidos, o que pode acarretar em um desgaste formal e temático. Com o intuito de se aproximar do mundo infantil, os eruditos acabam por infantilizar a linguagem de seus trabalhos e se afastar do gosto do público-leitor. A exceção se encontraria então no bom poema, capaz de estar imune a esse desgaste.

¹ Pesquisa a respeito de um tema da literatura infantil para a segunda unidade da disciplina Literatura Infanto-Juvenil, abril de 2011 

Poder-se-ia dizer que, nesse caso, a poesia infanto-juvenil perdura enquanto seus textos, ao mesmo tempo em que afetam leitores de diferentes idades, conseguem manter com eles algum tipo de intercâmbio significativo, no plano do prazer ou no da autoconsciência. (BORDINI)

O contexto social brasileiro do século XIX é fator primordial para o desenvolvimento da poesia destinada a crianças. O Brasil busca passar a imagem de país em processo de modernização, motivada por elementos como a abolição da escravatura, a migração de milhares de pessoas do campo para a cidade: a transição da base rural para a urbana. A ideia de família burguesa começa a se consolidar e a imagem da criança – já trabalhada por filósofos desde o século XIX – surge como preocupação especial.

Nesse contexto de mudanças, a criança passa a ter a função de representar um papel perante a sociedade, ser o “alvo de interesse dos adultos”, sem direitos políticos ou reivindicatórios.

Como decorrência, se a faixa etária equivalente à infância e o indivíduo que a atravessa recebem uma série de atributos que o promovem coletivamente, são esses mesmos fatores que o qualificam de modo negativo, pois ressaltam, em primeiro lugar, virtudes como a fragilidade, a desproteção e a dependência. (LAJOLO; ZILBERMAN, 2007)

A escola surge como órgão responsável por dar à criança a bagagem necessária para que ela enfrentasse o mundo, estando na interseção da infância e a sociedade. Passa a ser obrigação de toda família, não só as burguesas, matricular os filhos nas escolas. A nova instituição que surge, necessitará de material com que possa ensinar / ”adestrar” seu objeto de preocupação.

A produção cultural cresce, acompanhando o desenvolvimento urbano, responsável este por configurar a existência do que Lia Cupertino Duarte denomina “virtual público”. Essa denominação deve-se ao fato de que, até 1890 apenas 15% da população brasileira sabia ler e escrever. Frente à necessidade de alfabetizar e educar as crianças nos parâmetros da moral cívica, os primeiros autores do gênero surgem.

Entre os primeiros autores brasileiros de poesia para crianças, podem ser lembrados:

Francisca Júlia, Zalina Rolim e Presciliana Duarte de Almeida. Mas o grande “modelo” do gênero foi, sem dúvida, Olavo Bilac, que publicou o seu livro Poesias infantis, em 1904, e assim acabou criando uma legião de admiradores, a julgar pelas inúmeras reedições até os anos 1950/1960. (Neusa Sorrenti)

A literatura sob esse viés utilitário (pragmático) baseia-se no adestramento social do infante, a partir do estabelecimento de valores aplaudidos pela burguesia, sob a intenção didático-moralista.

Em muitos textos, a criança era premiada se bem comportada e castigada se agisse de forma contrária ao que dela se esperava. Decorrentemente, os poemas funcionavam como cartilhas educativas, com apologias à criança passiva, obediente, desvitalizada. (ANDO; SILVA)

A lírica infantil do poeta Olavo Bilac utilizou o autoritarismo na linguagem – o uso do imperativo – e a doutrinação – prescrição de virtudes, não sendo a sua preocupação o valor estético de suas obras, mas a configuração de uma “ideologia alicerçada na educação moral e didática”, como o próprio autor deixa perceber no prefácio do livro Poesias Infantis:

O que o autor deseja é que se reconheça, neste volume, não o trabalho de um artista, mas a boa vontade com que um brasileiro quis contribuir para a educação moral das crianças de seu país (p. 294).

Para atingir seu objetivo, o poeta se vale de alguns recursos como a antropomorfização de animais, de acordo com “virtudes” que se quisessem próprias da criança.

Forte e meigo animal! Que bondade serena/ Tem na doce expressão da face resignada!/ Nem se revolta, quando o lavrador, sem pena,/ Para o instigar, lhe crava a ponta da aguilhada. (“O boi”. p. 311-312)

Outro ponto crucial na lírica de Olavo Bilac é a preocupação com o estabelecimento de uma língua nacional erudita (originária do parnasianismo) ressaltada na linguagem de seus poemas, complementada pela exaltação da terra pátria. A convergência entre a preocupação com a educação cívica, a língua nacional e a exaltação à terra, é sugerida no poema “A pátria” do escritor.

A PÁTRIA

Ama, com fé e orgulho, a terra em que nasceste!

Criança! não verás nenhum país como este!

Olha que céu! que mar! que rios! que floresta!

A Natureza, aqui, perpetuamente em festa,

É um seio de mãe a transbordar carinhos.

Vê que vida há no chão! vê que vida há nos ninhos

Que se balançam no ar, entre os ramos inquietos!

Vê que luz, que calor, que multidão de insetos!

Vê que grande extensão de matas, onde impera

Fecunda e luminosa, a eterna primavera!

Boa terra! jamais negou a quem trabalha

O pão que mata a fome, o teto que agasalha...

Quem com seu suor a fecunda e umedece,

Vê pago o seu esforço, e é feliz, e enriquece!

Criança! não verás país nenhum como este:

Imita na grandeza a terra em que nasceste! (11)

A execução do projeto educativo confiado a esse texto dá-se pela via das exortações diretas, feitas através do modo imperativo: amor à pátria, comandado de forma absoluta no primeiro verso, a que se seguem nove outros onde a “terra em que nasceste” se particulariza em seus elementos constituintes, naturais e exuberantes: céu, mar, rios, florestas, já fartamente decantados pela lírica romântica. (LAJOLO; ZILBERMAN)

A poesia voltada para crianças de Olavo Bilac hoje recebe de um lado elogios principalmente com relação à linguagem, “uma poesia lapidar e cintilante, admiravelmente bem escrita, mas percorrida subterraneamente por uma corrente forte de lirismo” (Lajolo; Zilberman) e por outro críticas severas.

[...] uma linguagem completamente imprópria à infância, com seu tom retórico, seu discurso pedante, com a profusão de verbos no imperativo (vê, deves, ama, pede), com uma sintaxe arrevesada (aqui recebes da virtude o exemplo), com um vocabulário precioso (implume, maternal, fatigado) ou ligado a uma semântica moralista (virtude, exemplo, pura, justo) e pessimista (lágrimas, ausente, velho, fatigado, chorar). [SILVA, Maurício. Sobre o poema “A casa”]

Vale ressaltar a receptividade dos escritos de Olavo Bilac, segundo historiadores, foram bem recebidos pelo público, muito lidos nos fins do século XIX e início do século XX a julgar pelas várias reedições de Poesias infantis (1904) até os anos 1950/1960.

Conforme atestam estudos de Lajolo e Zilberman (1984) e Arroyo (1990), dos anos 20 aos 50 houve tentativas de emancipar a poesia infantil brasileira do utilitarismo, a partir de influências da Semana de Arte Moderna, no plano cultural; de revoltas, no plano

político; do movimento da Escola Nova, no plano educacional. No entanto, somente a partir dos anos 60, o gênero incorporou as conquistas da poética moderna, contribuindo para isto a expansão de instituições voltadas para a literatura infantil. (ANDO; SILVA).

Segundo o escritor e ilustrador de livros infantis, Luís Camargo, O livro O menino poeta (1943), de Henriqueta Lisboa (1904-1985), afasta-se do descritivismo e da narratividade características de Olavo Bilac, privilegiando o lirismo e utilizando largamente a metáfora, mas sem romper com o paradigma moral e cívico. Não contendo em seu prefácio recomendação de leitura para escola, teria aberto caminho para uma poesia infantil “livre de compromissos pedagógicos”.

Muitos autores caracterizam o período de 1960/1970 como sendo o momento em que a literatura infanto-juvenil passa a se preocupar com o caráter essencialmente literário. Há contradições no que diz respeito a incluir a década de 1960 nesse período de preocupação estética, visto que se trata de um período de grande conturbação política, de oposições entre a burguesia agrária e a burguesia industrial, da influência do capitalismo internacional sobre o Brasil (por isso mesmo os críticos ditos de esquerda defendem a década de 60 como o início do período de produção literária voltada para crianças de maior qualidade). Isso acarretaria na reflexão e denúncia de problemas sociais, o que continuaria a empregar à literatura um caráter pragmático. Entretanto, é válido lembrar que os poemas que foram compilados para o lançamento de A arca de Noé de Vinícius de Moraes na década de 1970 já circulavam na década de 60.

Quem melhor do que o poeta perceberia e colocaria em prática as diversas operações e potencialidades da linguagem? Cabe a ele, devido à sua extrema sensibilidade e trabalho árduo com a palavra, ordená-la no que se refere ao seu som e significado, mantendo à coerência do texto. Além do aspecto semântico, é fundamental para a construção do texto poético, o domínio fonológico, responsável pelos sons e seus possíveis efeitos, pois ambos podem gerar significados. A seleção vocabular, com vistas a construir certas imagens e a transmitir determinadas emoções, não se restringe apenas ao sentido das palavras, respeita as variações de uso e também o aspecto sonoro. Os sons, aliados à carga semântica dos termos e ao lugar da palavra no verso (sintaxe), estabelecem novas significações para o conjunto de vocábulos do poema, de modo que a interação entre os diferentes níveis do texto torna-se mais complexa do que parece. (Flávia Broccheto)

José Paulo Paes representa muito bem o poeta que sabe brincar com a linguagem, brinca com as palavras para brincar também com os conceitos a respeito do mundo real relacionando-o com o imaginário. Tem o cuidado de organizar os sons, mexe com aliterações e assonâncias, rimas externas e internas, considerando o domínio fonológico e sua relação com o sentido. Trabalha as relações paradigmáticas e sintagmáticas. Sempre visando o caráter lúdico, dá ao poema um caráter vivo, tão ativo como é qualquer criança saudável. É justo essa preocupação da correspondência com a criança que diferencia os poemas do autores como ele.

Eu vi um ângulo obtuso

Ficar inteligente

E a boca da noite

Palitar os dentes.

Vi um braço de mar

Coçando o sovaco

E também dois tatus

Jogando buraco

Eu vi um nó cego

Andando de bengala

E vi uma andorinha

Arrumando a mala.

Vi um pé de vento

Calçar as botinas

E o seu cavalo-motor

Sacudir as crinas.

Vi uma mosca entrando

Em boca fechada

E um beco sem saída

Que não tinha entrada.

É a pura verdade,

A mais nem um til,

E tudo aconteceu

Num primeiro de abril

(“Pura verdade”. J. P. Paes)

O texto composto em primeira pessoa auxilia o leitor no processo de identificação com as novidades apresentadas pelo eu-poético, de modo que aquele se assume também como o ser que descobre as incoerências reveladas. [...]O ilogismo sugerido pela palavra contribui para o ludismo da poesia e pode ser considerado um recurso instigante para a imaginação infantil, assim como as brincadeiras lingüísticas próprias da criança. (Flávia Brocchetto)

Algumas considerações

A partir da pesquisa feita pode-se concluir que hoje há uma produção de literatura infantil de qualidade estética inegável. Apreende-se que a origem folclórica dessa produção ou o seu caráter inicialmente pedagógico não justifica a sua exclusão dos parâmetros literários pela crítica. Por outro prisma, percebe-se que um trabalho de pesquisa sobre a literatura infanto-juvenil abre uma amplitude de leques de temas, desde o aspecto histórico ao literário e ao pedagógico.

É precisamente na conjunção das esferas pedagógica e artística que se situa a poesia infantil, na medida em que se afirma, a um só tempo, como instância própria do complexo instrutivo do ser humano e como manifestação estética, inscrevendo-se de forma singular e irredutível no complexo universo infantil. (SILVA, Maurício)

 

Bibliografia

HILLESHEIM, Betina. Entre a literatura e o infantil : uma infância. 2006. 135 f. Tese (doutorado em Psicologia) Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2006

ANDO, Marta Yumi; SILVA, Rosa Maria Graciotto. A imagem da criança nas líricas infantis de Olavo Bilac e de Vinicius de Moraes. Artigo. Universidade Estadual de Maringá, Paraná.

CALDIN, Clarice Fortkamp. A leitura como função pedagógica: o literário na escola. Revista ACB, Vol. 7, No 1 (2002)

SORRENTI, Neusa. _____A poesia viva na escola – Poesia e escola. Salto para o futuro, boletim 20, out. 2007

ALBINO, Lia Cupertino Duarte. A literatura infantil no Brasil: origem, tendências e ensino.

LAJOLO Marisa; ZILBERMAN Regina. Literatura infantil brasileira: História e histórias. Ática. São Paulo, SP - 2007

SILVA, Maurício. Poesia infantil contemporânea: dimensão lingüística e imaginário infantil. Universidade de São Paulo, 2006, vol. 12

RAMOS, Flávia Brocchetto. A brincadeira na poesia infantil. Universidade de Caxias do Sul. Disponível em: <http://www.ucm.es/info/especulo/numero29/brincade.html>. Acesso em abr. 2011

CAMARGO, Luís. Literatura: A Poesia Infantil no Brasil. Disponível em: <http://www.culturainfancia.com.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&cacat=118:artigos-e-teses&id=338:a-poesia-infantil-no-brasil&Itemid=158>. Acesso em abr. 2011

Jucely Regis
Enviado por Jucely Regis em 20/03/2012
Reeditado em 27/03/2012
Código do texto: T3564816
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