MACABÉA – À PROCURA DE UMA ESTRELA

Deus descansou no sétimo dia, mas Clarice Lispector preferiu descansar no oitavo romance. O livro é A Hora da Estrela, último romance que ela escreveu e o último publicado em vida da autora, tendo em vista que Um sopro de vida (compilação de fragmentos) – o nono romance a ser publicado –, apareceu postumamente, em 1978.

A Hora da estrela foi publicado no dia 26 de outubro de 1977. No dia 9 de dezembro, partia Clarice. Em sua única entrevista televisionada, concedida em janeiro de 77 à TV Cultura, ela menciona o livro, que afirma ter acabado de completar. Diz que o livro é "a história de uma moça, tão pobre que só comia cachorro quente. Mas a história não é isso, é sobre uma inocência pisada, de uma miséria anônima."

Na mesma entrevista, Clarice diz que usou como referência para Macabéa a sua própria infância no nordeste brasileiro, além de uma visita a um aterro onde nordestinos se reuniam em São Cristóvão. Ela diz ter sido neste aterro que ela capturou "o ar meio perdido" do nordestino na cidade do Rio de Janeiro. Outra inspiração para a trama do livro foi uma visita que Clarice fez a uma cartomante. Na época, ela imaginou como "seria engraçado se na saída, ela fosse atropelada por um táxi depois de ouvir todas coisas boas que a cartomante previra.”

MACABÉA – À PROCURA DE UMA ESTRELA

Imagine a namorada ouvir isto do namorado, mesmo sendo um ele “cabra safado” que nem Olímpico:

– Você, Macabéa, é cabelo na sopa. Não dá vontade de comer. Me desculpe se eu lhe ofendi, mas sou sincero. Você ficou ofendida? (pág. 60)

Ora, quem não ficaria?

E Macabéa – bem, Macabéa “pôs-se sem ou menos ou menos a rir. Ria por não ter lembrado de chorar." (pág. 61)

E ficaram rindo, ela e o namorado... Afinal, pensou Macabéa: “tristeza também era coisa de rico, era pra quem podia, pra quem não tinha o que fazer. Tristeza era luxo.” (pág.61)

Mas, dentro da moça, houve uma explosão: no dia seguinte, comprou um batom novo, vermelho, diferente do batom cor-de-rosa que usava. E pintou-se o tanto que pôde no banheiro da firma onde era datilógrafa. Queria ficar parecida com Marilyn Monroe. Mas Glória, sua amiga – amiga não, apenas colega de trabalho! – riu-se dela:

– “... ser feia dói?” (pág. 62)

Macabéa reage:

"– Nunca pensei nisso, acho que dói um pouquinho. Mas eu lhe pergunto se você que é feia sente dor." (pág. 62)

Mas depois tudo passou, e Macabéa acabou entregando, ao ser interpelada por Glória por que tomava tanta aspirina:

"– Eu me doo o tempo todo. (...) Dentro, não sei explicar." (pág. 62)

...

Mas voltemos ao começo da história, ou seja, àquele final de tarde chuvoso de maio quando Macabéa e Olímpio se encontram pela primeira vez e ele pergunta:

“– E se me permite, qual é mesmo a sua graça?

– Macabéa.

– Maca, o quê?

– Béa, foi ela obrigada a completar.

– Me desculpe, mas até parece doença, doença de pele.” (pág. 43)

E na segunda vez que se encontraram, chovia. E na terceira também. A ponto de o rapaz, “irritado e perdendo o leve verniz de pintura que o padrasto a custo lhe ensinara”, dizer-lhe:

“– Você também só sabe mesmo é chover!” (pág. 44)

E aquela “espécie de namoro” ia seguir nesse chove não molha, até Olímpico trocar Macabéa por Glória, sua colega de trabalho. Afinal, Glória era “carioca da gema”, e, mais que isso, seu pai era dono de um frigorífico. E Olímpico, assassino, “criado por um padrasto que lhe ensinara o modo fino de tratar pessoas para se aproveitar delas e lhe ensinara como pegar mulher” (pág. 44), “tinha uma grandeza demoníaca” (pág. 45), queria por que queria ficar rico. Macabéa, pobre retirante nordestina, o que poderia lhe oferecer, já que ganhava menos de um salário mínimo? A ele, que também era retirante nordestino e trabalhava como operário, embora mentisse dizendo à moça que era metalúrgico?

E, com o fim do “romance”, já sabemos: Macabéa comprou o batom vermelho e pintou-se toda.

Um dia, querendo compensar o roubo do namorado, Glória convidou Macabéa para lanchar em sua casa. No dia seguinte, uma segunda-feira, ela passou mal, não se “sabe se por causa do fígado atingido pelo chocolate ou por causa do nervosismo de beber coisa de rico (...) Mas teimosa não vomitou para não desperdiçar o luxo do chocolate.” (pág. 66)

E, pela primeira vez na vida, foi ao médico. E então soube-se com começo de tuberculose, ela que “tinha acesso de tosse seca de madrugada” (pág. 31) no quartinho que, depois da morte da tia que a criara, passou a viver com cinco outras moças.

Guardou a doença em segredo. Não contou para Glória. Esta, ainda cheia de remorso por lhe ter surrupiado o namorado, certa feita lhe disse que ela arranjaria outro namorado. E a aconselhou a ir numa cartomante. E até lhe empresta dinheiro pra isso.

Macabéa ouve o conselho da outra.

A cartomante diz “que um dinheiro vai lhe entrar pela porta adentro em horas da noite trazido por um homem estrangeiro”. E mais: “Ele é alourado e tem olhos azuis ou verdes ou pretos (...) é ele quem vai se casar com você." (pág. 77)

Macabéa enche-se de esperança. Paga a consulta e vai embora feliz, mas, ao descer a calçada, é atropelada por um carro. Começa a garoar. Junta-se uma multidão em volta dela – ela em que ninguém nunca prestara atenção – para certo desespero no narrador "fictício", Rodrigo S. M., que a certa altura de sua narrativa escreve: “Sim, estou apaixonado por Macabéa, a minha querida Maca, apaixonado pela sua feiura e anonimato total pois ela não é para ninguém.” (pág. 68)

Rodrigo é Clarice disfarçada, e, “matando” Macabéa, concede à sua personagem a “hora da estrela”, jogando em nossa cara uma verdade que insistimos em não enxergar: “a hora da estrela é a nossa morte, pois, nesse momento, o ser humano deixa de ser invisível às pessoas, que percebem que ele existe apenas quando já não existe mais”.

E é assim mesmo, infelizmente.

Obra utilizada: A hora da estrela, editora Rocco, 1998.

Hélio Sena
Enviado por Hélio Sena em 25/07/2012
Reeditado em 26/01/2024
Código do texto: T3797440
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