EM PASSO FUNDO, COM ADONIRAN

    Quando cheguei a Passo Fundo, no início dos anos 80, vinha como tábua rasa. Após uma rápida passagem por Santa Maria, ainda não tinha desenvolvido uma visão do que seria meu "estar no mundo". Foi em solo passo-fundense que descobri a militância política, a poesia, os bares, as passeatas, os shows, as longas discussões sobre a iminência de mudar as já ultrapassadas estruturas sociais de antanho e de hoje. Envolvi-me com a literatura e o Bar Antônius, que ficava na Capitão Eleutério, foi o cenário onde lancei o meu primeiro e sofrível livro de poesias, financiado em 12 vezes por uma editora local. Essas noites no Planalto Médio me foram singulares e inesquecíveis. Os barzinhos ficavam repletos de estudantes e de pessoas que apreciavam as madrugadas, regadas a cerveja e música, em rodas de cantoria que acordavam o dia seguinte, com músicos como Ita Arnould, Tonico e Preto.

     Minha maior surpresa nesses saraus de insones foi a expressividade popular de Adoniran Barbosa. Sua musicalidade, seus refrãos carregados de oralidade e onomatopeias, suas frases recortadas da linguagem de tipos populares soavam estranhas e familiares ao mesmo tempo. O drama da roda de samba que não vingou, o amante que precisa sair mais cedo para não deixar sua mãe preocupada, o "banquete" da marmita na obra, os lugares paulistanos imortalizados em canções inesquecíveis, o amor da arraia miúda, que se esvai por entre a perda de uma foto esmaecida da amada Iracema, entre outros temas, transportaram minha alma interiorana e gaúcha para recantos nunca antes sequer imaginados, mas agora entrevistos graças à verve mágica de um menestrel dos arrabaldes.

    Adoniran Barbosa foi um gênio por saber dar voz aos que não tinham tempo, na luta pela sobrevivência, para falar de si mesmos. Ele próprio foi um rebento parido para o mercado cultural com muita pertinácia e luta incessante. Foram muitas as áreas em que atuou, sempre na contracorrente. Não é pouco para quem precisou romper o arraigado senso comum de que São Paulo não rimava com samba.

    Neste 2010, que agora já se prepara para ser mais um número no currículo da humanidade, os centenários de Adoniran Barbosa e de Noel Rosa foram marcos de remissão obrigatória. O país seria menos Brasil sem eles e mais injusto. A alegria e a crônica do cotidiano deram a tônica em versos antológicos que foram estribilhos de incontáveis gerações, incluindo as nossas.

CORREIO DO POVO
ANO 116 Nº 89 - PORTO ALEGRE, TERÇA-FEIRA, 28 DE DEZEMBRO DE 2010
Landro Oviedo
Enviado por Landro Oviedo em 09/01/2013
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