De Clarice para Fernando

Talvez por já ter trocado tantas cartas (e e-mails) com amigos ao longo das últimas três décadas (desde que fui embora da minha cidade natal, aos 12 anos), eu tenha uma queda especial pelas obras literárias pautadas nas correspondências. Uma delas, em especial, mexeu muito comigo: “Cartas perto do coração”, lançada há mais de 12 anos, quando li pela primeira vez.

Esse livro traz parte de uma correspondência ativa durante 24 anos entre os queridos escritores Clarice Lispector e Fernando Sabino. Ela, com seus textos pautados numa complexa e profunda teia existencial, foi uma importante referência literária na minha adolescência e início da vida adulta. Ele, a quem tive o prazer de ver e ouvir aqui mesmo em Viçosa, no fantástico projeto “Grandes Escritores”, traz uma literatura politicamente engajada, mas extremamente serena e leve.

Na apresentação da obra, lançada pouco antes de Fernando Sabino completar 80 anos, o escritor mineiro ressaltou que sua correspondência com Clarice Lispector foi uma verdadeira reformulação de valores para ambos. “(...) descobríamos o mundo, ébrios de mocidade. Era mais do que a paixão pela literatura, ou de um pelo outro, não formulada, que unia dois jovens ‘perto do coração selvagem da vida’: o que transparece em nossas cartas é uma espécie de pacto secreto entre nós dois, solidários ante o enigma que o futuro reservava para o nosso destino de escritores”, disse Sabino, que deu seu nome ao principal espaço cultural da Universidade Federal de Viçosa (UFV).

Publicadas na íntegra, as cartas remontam a um período que vai de 21 de abril de 1946 a 29 de janeiro de 1969. O início desse contato mostra dois jovens que, praticamente, tinham acabado de cruzar a casa dos 20 anos; uma época de muito investimento nos projetos pessoais e profissionais e também de muita insegurança diante do mundo e dos próprios conflitos.

Clarice, que escreveu seu primeiro romance (“Perto do Coração Selvagem”) aos 17 anos, Fernando (que aos 20 e poucos já era redator do jornal Folha de Minas, em Belo Horizonte), tiveram a juventude e a maturidade andando juntas. Impressiona a fluência de suas cartas, que cruzavam o Atlântico às vezes da Suíça (Clarice Lispector) para os Estados Unidos (Fernando Sabino); noutras dos Estados Unidos (Clarice) para o Rio de Janeiro (Sabino). Em todas elas uma rica troca de impressões sobre literatura, cinema e as tantas inquietudes literárias ou não.

“Cartas perto do coração” traz o lado real de quem conheceu a fama através da ficção. O livro revela as linhas e entrelinhas de dois escritores que deixaram uma rica obra atemporal. Se a própria Clarice muitas vezes se pegava tomada pela obscura sensação do não ser, Sabino traz um tipo de fortaleza talhada na lucidez. Não uma lucidez meramente racional, mas aquela que nasce da inexplicável força espiritual.

Quem, como eu, tem esses dois escritores como partes fundamentais da formação literária e existencial, eu recomendo uma leitura cuidadosa dessa obra. A dica vale para os leitores das novas gerações, que talvez ainda não tenham sido apresentados a esses dois ícones da nossa literatura.