Ecos da infância em "Spinosa sem saída 'de Luiz Alfredo García-Roza
 
"O que seduz o leitor do romance é a esperança de aquecer sua vida gelada com a morte descrita no livro"".
Walter Benjamin


          Nossa proposta é desenvolver uma breve análise literária do escritor contemporâneo Luiz Alfredo García-Roza que apresenta um estilo singular dentro da narrativa policial. O romance que será analisado é Espinosa sem saída, no qual pretendemos encontrar pontos de interseção entre a literatura policial e a psicanálise.
          Além de um gênero atraente que agrada a muitos leitores, a opção pelo policial tem uma motivação clara para García-Roza: “[...] o fato de o seu cerne ser constituído por um conjunto de questões que considero fundamentais: sobre a morte, o assassinato, a sexualidade...” (Revista Ler, 2004, p. 28).
         Nesse sentido, nosso estudo pretende não só estabelecer uma conexão entre o romance policial em estudo e a teoria psicanalítica mas também verificar algumas peculiaridades no estilo de Luiz Alfredo García-Roza cuja obra enfoca os conflitos psíquicos do homem urbano, a paisagem e a vida metropolitanas, a relativização do crime, o medo de ser atacado pelo outro, enfim, a forma como o homem contemporâneo reage ao cotidiano dos grandes centros urbanos.

     Espinosa sem saída, conta a história do assassinato de um indigente que tem apenas uma das pernas, em um beco sem saída, sob forte temporal, numa ladeira que faz divisa entre a cidade e a mata, no bairro de Copacabana, Zona Sul do Rio de Janeiro. O delegado Espinosa, da 12ª DP, homem íntegro e dedicado às atividades policiais, ao contrário do que se espera num homicídio como esse, em que a vítima não tem importância alguma para a sociedade, resolve não arquivar o processo e, auxiliado pelo jovem detetive Welber e o inspetor Ramiro, homens de sua inteira confiança, prossegue de maneira obstinada com as investigações, a fim de elucidar o mistério.
     Concomitantemente às investigações, surge um outro homicídio, desta vez, em Ipanema, também na Zona Sul carioca. Trata-se de uma psicanalista famosa e bem-sucedida na carreira que é, misteriosamente, assassinada em seu consultório. As características do segundo crime levam o delegado a supor que este esteja relacionado ao primeiro. Envolto nessa teia de mistérios, Espinosa encontra-se sem saída, num verdadeiro cul-de-sac.
     Na tentativa de encontrar conexão entre os dois crimes, o delegado se depara não apenas com as duras diferenças sociais do Rio de Janeiro, sobretudo com o complexo universo que é a alma humana, haja vista que os dois crimes envolvem surtos psicóticos, traumas de infância e perversões sexuais. Com isso, García-Roza evidencia a profunda ligação entre as investigações do detetive e o trabalho do psicanalista.
          O narrador onisciente conduz o leitor junto com as personagens a um verdadeiro passeio pela cidade do Rio de Janeiro, mais precisamente, a Zona Sul. Nesse passeio, podem-se observar os contrastes que compõem a geografia da cidade maravilhosa em que, de um lado, estão as praias, as paisagens belíssimas, o luxo, as coberturas, os grandes clubes e, do outro, a visão feia e triste das grandes favelas, da miséria, da prostituição e da violência, onde milhares de pessoas sobrevivem em condições subumanas. Segundo o próprio escritor:

Copacabana é um cosmos plenamente habitado, cheio de gente. Não apenas turistas e gente rica, mas também por uma vida extremamente rica, com o seu submundo muito complexo. Quem vê as ruas de Copacabana não o nota ao primeiro olhar, mas ele está lá.” (In Revista Ler,2004, p.30).

O trecho abaixo mostra-nos um pouco esse contraste:

Ramiro e Welber saíram do clube pelo caminho mais longo, percorrendo toda a extensão do ancoradouro, olhando os veleiros e lanchas, admirando a beleza da paisagem da enseada de Botafogo, com o Pão de Açúcar quase ao alcance da mão.[...] ─ É que ele está acostumado com o sol e o mar, sua visão não está familiarizada com a escuridão das noites chuvosas ─ disse Welber. ( p. 47)

    
 O romance em estudo está dividido em três partes.Cada uma introduzida por uma espécie de prólogo, cuja função é fazer um flashback da vida do protagonista, a fim de que o leitor estabeleça uma relação entre os acontecimentos narrados e o comportamento futuro da personagem Aldo Bruno. Ele é um arquiteto que só conseguiu estabilidade e reconhecimento profissional, após se casar com Camila, uma psicanalista famosa, de família tradicional, excelente situação financeira e, consequentemente, prestígio social.
     No primeiro prólogo, temos um episódio de violência envolvendo um menino, supostamente de classe média, que é agredido fisicamente por um menor abandonado, sem que haja alguma defesa ou resistência por parte da vítima. É interessante observar que nenhuma personagem desse episódio é nomeada pelo narrador. Esse recurso estilístico de que o autor se utiliza eleva as personagens à dimensão do universal — cada personagem representa todos os homens, mulheres e crianças da humanidade contemporânea — Com esse recurso García-Roza conduz o leitor a uma reflexão sobre a insegurança e o medo que estão presentes em todas as camadas sociais das grandes cidades. Podemos associar essa atitude agressiva ao chamado fenômeno bullying que, segundo Cléo Fante,


é uma forma de violência que resulta em sérios prejuízos não somente em ambiente escolar, à sociedade, através das atitudes de seus membros. As relações desestruturadas por meio de condutas abusivas e intimidadoras incidem na formação de valores e na formação do caráter, o que refletirá na vida do indivíduo, no campo pessoal, profissional, familiar e social. É uma dinâmica psicossocial expansiva que envolve um número cada vez maior de crianças e adolescentes, meninos e meninas reproduzem a vitimação de outro(s) ( FANTE, 2008).

   
  Vale destacar que, enquanto a criança é espancada de maneira covarde, um homem assiste à cena, passivamente, da janela do seu apartamento, tenta gritar, mas não consegue. Tal comportamento de aparente indiferença perante a dor do outro nos remete ao conceito de "atitude blasé" cunhado por Georg Simmel, cuja essência consiste "no embotamento do poder de discriminar.” (Simell, 1967, p.18)
Essa atitude blasé representa, para Simmel, um dos principais traços do homem urbano que, massacrado pela corrida desenfreada pelo dinheiro e bens de consumo, vai se distanciando das relações afetivas.


Esse estado de ânimo é o fiel reflexo subjetivo da economia do dinheiro completamente interiorizada. Sendo o equivalente a todas as múltiplas coisas de uma mesma forma, o dinheiro torna-se o mais assustador dos niveladores. Pois expressa todas as diferenças qualitativas das coisas em termos de “quanto?” O dinheiro, com toda a sua essência de cor e indiferença, torna-se o denominador comum de todos os valores; arranca irreparavelmente a essência das coisas, sua individualidade, seu valor específico e sua incomparabilidade (SIMMEL, 1967, p.18/19).

    
 Com o anonimato das personagens, García-Roza deixa claro que, nas grandes metrópoles contemporâneas, a subjetividade não interfere no social e que todos os seres humanos, independentemente de idade ou condição sócio-cultural, sentem-se perplexos e impotentes diante do medo causado pela violência e a criminalidade.      Embora o menino não seja nomeado, o narrador nos fornece indícios de que se trata do protagonista da história, o arquiteto Aldo Bruno, um homem atormentado por um trauma de infância que o leva ao homicídio e, posteriormente, ao suicídio.
     No segundo prólogo, o menino já adolescente, mas ainda sob efeito do trauma causado pela agressão sofrida na infância, volta a sentir-se acuado pelo medo do mesmo menor que o agredira. Assim, vê-se paralisado, dominado pelo fantasma daquela cena que ficara recalcada em seu inconsciente. Tendo em vista que, segundo Freud, “a essência do recalque consiste simplesmente em afastar determinada coisa do consciente, mantendo-a à distância “.(JORGE, 2005. P.26).

     Diante de uma ameaça de reencontro com o agressor, o menino mais uma vez não reage. E, como não consegue verbalizar o que está sentindo, aparecem-lhe os sintomas, para externar esse sentimento de pavor recalcado. “Na escola teve diarréia e febre” (p.102). Vejamos o que diz Lacan a respeito do sintoma neurótico: “[...] O sintoma neurótico desempenha o papel da língua que permite exprimir o recalque” (LACAN,2002, p.75).
     Aqui, o narrador nos leva a crer que o menino, dominado pelo choque traumático que sofrera na infância, passou a identificar em cada jovem pobre que visse na rua, aquele que o agredira tão brutalmente, na infância. Nessa passagem da narrativa, o agressor já é nomeado, chama-se Nilson. A partir de então, o menino agredido já tem um nome marcado para endereçar o seu ódio e o seu desejo de vingança, sentimentos que o acompanharão por toda a vida. Como podemos comprovar no trecho abaixo:


Sentiu imediato mal-estar e foi invadido por um medo incontrolável. Parou no lugar em que estava e permaneceu imóvel durante alguns segundos, tempo suficiente para ter certeza. Era ele. Crescera e ficara mais magro, mas a cara era a mesma, o rosto de uma impassibilidade fria que se confundia com maldade, era indiscutivelmente o mesmo ( 2006.p 101). A partir daquele dia, teve a mais absoluta certeza de que aquela situação viria se repetir ao longo de sua vida. Soube, tempos depois através de colegas, que o nome dele era Nilson (p.102).

    
 Desde então, Aldo Bruno adquire uma estrutura frágil e insegura. Ele é, segundo a própria mulher, “’um deprimido crônico” (p. 2006, 112); um homem em constante desamparo, incapaz de tomar qualquer decisão. As atitudes da personagem diante das várias situações que se lhe apresentam são características da neurose, “afecção psicogênica em que os sintomas são a expressão simbólica de um conflito psíquico que tem raízes na história infantil do sujeito e constitui compromissos entre o desejo e a defesa.” (LAPLANCHE & PONTALIS, (2008, p.2960). Embora apresente também, surtos de psicose e perversão, ambos decorrentes do trauma vivido.
     Vejamos a definição de trauma, segundo Laplanche e Pontalis:

"Trauma é um acontecimento da vida do sujeito que se define pela sua intensidade, pela incapacidade em que se encontra o sujeito de reagir a ele de forma adequada, pelo transtorno e pelos efeitos patogênicos duradouros que provoca na organização psíquica.” (LAPLANCHE & PONTALIS,201, p.522)
     De acordo com a definição psicanalítica, podemos constatar a presença desse transtorno psíquico ao longo da vida do arquiteto Aldo Bruno que, motivado pelo medo do outro, simbolizado pelo crime e a agressão, desenvolve uma neurose com tendências à psicose. Assim, com a ideia fixa de que está sendo perseguido pelo agressor de sua infância, Aldo transgride a lei e mata, por engano, Elias do Nascimento, um homem que morava em Maricá e vinha com frequência ao Rio, à procura de tratamento médico. Por não ter familiares ou conhecidos na cidade, morava nas ruas, enquanto continuava sob tratamento. No nível do narrador, trata-se de Nilson - o menino envolvido no episódio de agressão, na infância da personagem. Um recurso do escritor que, além de garantir verossimilhança à cena, deixa evidente o transtorno psíquico da personagem.

[...] e não tinha a menor dúvida de que o antigo agressor mantivera, o tempo todo, o olhar firme sobre ele... e o reconhecera. Talvez tivesse esperado, tal como ele próprio, desde o primeiro confronto, quase quatro décadas antes, por um confronto final e definitivo. [...] Imaginou que ele pudesse ter se escondido do outro lado do carro, ou mesmo que tivesse se afastado ladeira abaixo. Impossível. Um homem com a determinação dele não fugiria ao confronto depois de esperar tantos anos na chuva. [...] Quando uma nova sequência de raios iluminou a área, viu Nilson a poucos metros de distância. Sem hesitar, apontou o revólver e apertou o gatilho. O som do tiro diluiu-se em meio ao barulho das trovoadas ( p.145 -146) [...].

    
 Vale lembrar que, de acordo com os transtornos psicóticos de Aldo Bruno, o episódio de agressão na infância pode ter sido apenas fruto de seus delírios, conforme podemos observar nas passagens abaixo:
"Tinha tomado vinho durante o jantar, e o assunto principal à mesa fora a onda de assaltos e a violência urbana. Isso, acrescido de um pouco de sono e de uma noite de tempestade, podia despertar fantasmas adormecidos e ideias delirantes. Não era a primeira vez que esse tipo de alucinação acontecia. Em situações traumáticas e sob emoção intensa, já acontecera de ele ter visto coisas que não eram verdadeiras. Acontecera algumas vezes na infância e se repetira na adolescência.Na idade adulta, porém, aquela era a primeira vez. Só que agora havia um fator extra: a arma do porta-luvas"(p.146 – 147) "[...] e o delegado tinha certeza de que Aldo Bruno disparara seu revólver debaixo daquela tempestade pensando estar atirando em Nilson... Se é que Nilson algum dia realmente existiu". (p.210)


     García-Roza, ao abordar a psicose traumática, nos mostra um retrato da sociedade contemporânea que sofre com a síndrome do pânico, o TOC (transtorno obsessivo compulsivo) e outros males psíquicos, além de várias outras patologias, causadas pelo medo da miséria, da delinquência e do crime. Para representar o medo, o autor escolhe o mendigo, cujas muletas aparecem como metáfora, não apenas do sem-teto e suas deficiências sociais: a pobreza, a miséria e a indigência, mas também representando o desequilíbrio entre as camadas sociais.
     O terceiro prólogo trata dessa questão traumática, enfatizando bastante os surtos psicóticos do arquiteto, as visões fantasmagóricas e o desequilíbrio que o conduziram ao homicídio, num ambiente sombrio em que a escuridão e a tempestade podem ser vistas como uma metáfora da confusão de ideias do arquiteto. As passagens abaixo confirmam esse fato:


" [...] A luz que incidia sobre o paredão negro da rocha criava um estranho balé de samambaias e chorões que balançavam ao vento. No meio da cena que se transformava incessantemente, uma forma imóvel se destacava, a menos de três metros da frente do carro. A luz que escorria pelo vidro tolhia quase que totalmente sua visão... [...] O homem de muletas na chuva era Nilson. Nenhuma dúvida quanto a isso. O mesmo rosto comprido, o mesmo olhar frio e desafiador o encarava, confrontando-o, mais de trinta anos depois do primeiro confronto. [...] o homem de dentro do carro não conseguia desviar o olhar daquele fantasma nem conseguia engrenar a marcha e afastar-se dali. [... ] Era o momento perfeito que fantasiara durante três décadas e meia. Lembrou-se ainda do revólver no porta-luvas, o que o tornava senhor absoluto da situação. Apesar de tudo isso, estava tomado pelo terror, paralisado diante daquele espectro" ( p.144).

Identificamos em todo o romance várias marcas de surto psicótico envolvendo Aldo Bruno. Todas as vezes, em que é submetido a um interrogatório, ainda que informalmente, sobre os crimes de que está sendo suspeito, ele é acometido de crises de amnésia:

Não era a primeira vez que Aldo entrava numa espécie de pânico silencioso acompanhado de fuga ao confrontar uma situação ameaçadora. "[...] o episódio do assassinato funcionara como um disparador de um estado de pânico cuja causa real devia ser outra que ele próprio desconhecia ou estava ocultando" ( p.110).
[...] Eu não consigo dizer nada sobre um acontecimento tão pouco usual como sair no meio de um temporal para pegar o carro numa rua sem saída em plena madrugada (p.53).
[...] Não se lembrava de nada do que acontecera depois. Lembrava-se do dia seguinte, mas não se lembrava da noite depois de ter descoberto o corpo. Mas, sobretudo, e isso é que o perturbava, não se lembrava de nada anterior à descoberta do corpo. Não se lembrava sequer de abrir a porta do consultório ( p.149).


     
Ousamos inferir que essa amnésia do arquiteto seja um recurso originado pelo inconsciente (um sintoma), como uma fuga, uma maneira de evitar o desprazer, aquilo de que ele não quer lembrar-se. Observemos o que diz Freud a respeito desses esquecimentos:

Esta necessidade de evitar o desprazer é percebida mais claramente no que se refere ao esquecimento de impressões e experiências" - Fato que já fora observado por muitos escritores antes que a psicanálise existisse. "A memória revela sua parcialidade mostrando-se pronta a impedir a reprodução de impressões comprometidas com uma emoção angustiante, se bem que este propósito não possa ser alcançado em todos os casos. (FREUD,1996, p.171)

     
Além dos surtos psicóticos que acometem a personagem Aldo Bruno, o romance também aborda outro assunto de interesse da psicanálise, as perversões sexuais que envolvem o assassinato da psicanalista Camila Bruno. Tal homicídio tem como suspeito em potencial o marido da vítima que, dentro da estrutura perversa, teria assassinado a mulher, utilizando-se da substância química flunitrazepam, comercializada sob o nome de Rohypnol, mais conhecida popularmente como “Boa noite cinderela” e, depois, esconde quaisquer vestígios do crime, inclusive desnuda a mulher, para não fornecer pistas à polícia. Esse mesmo comportamento da personagem está presente no caso do sem-teto, quando Aldo se desfaz da arma utilizada. Vejamos esta passagem:

Duas coisas ocupavam especialmente o foco da atenção de Espinosa. A primeira era a convicção de que as duas mortes estavam relacionadas; a segunda era por que razão Camila Bruna fora encontrada inteiramente nua no seu consultório... [...] Seria um tipo de exibicionismo post-mortem? Não há limite para a perversão sexual, pensou Espinosa (p.152).

    
 É importante salientar a relevância da escolha profissional do protagonista para delinear-lhe o perfil. Assim, como um bom arquiteto, Aldo Bruno é um homem meticuloso que projeta todos os seus planos e ações antes, durante e depois de cometer os homicídios.
     A obra de García-Roza, deixa transparecer o retrato da vida na sociedade contemporânea e demonstra que os elementos que caracterizam o gênero policial vêm sendo ultrapassados, assim como  os enredos refletem uma série de questões sociais, políticas, éticas e psicanalíticas. Em Seus romances, há sempre um crime, um detetive, uma investigação, um assassino. Entretanto, o crime jamais é solucionado e o detetive não está preocupado somente em identificar o criminoso, mas também em juntar elementos que possam salientar a personalidade desse assassino. Com esse recurso de subversão ao gênero o autor leva o leitor a refletir sobre o meio social em que vive. Desta forma, García-Roza transcende o gênero policial, que faz parte da cultura popular, e deve ser visto como um escritor de grande qualidade literária.

     Do ponto de vista linguístico, um aspecto curioso é a escolha onomástica do delegado. O próprio escritor afirma que é uma homenagem ao filósofo Espinosa, visto que o delegado presente em seus romances apresenta características que se assemelham às do grande pensador:

"Ora, Espinosa é um pensador sem igual. Ele é um dos grandes gênios da filosofia, um homem de uma coerência e de uma consistência espantosas. E sobretudo, um ser humano absolutamente invejável, de uma integridade ética notável, a toda a prova. Espinosa reuniu sempre, para mim, o máximo da racionalidade e o máximo da sensibilidade. Ele conseguia ser intenso e íntegro ao mesmo tempo, o que é raro, raríssimo. Então, o delegado Espinosa é uma homenagem ao filósofo, sim porque é também um homem íntegro. Apesar de ser um burocrata, um policial pertencente ao Estado, um homem de gabinete e de estar ligado à polícia que é atingida pela corrupção, ele é um sujeito íntegro. Ele, de alguma maneira, diz que é possível ser íntegro". (García-Roza in: Revista Ler, 2004, p.29)

     Apesar da luta obstinada do delegado para encontrar o culpado pelas mortes do sem-teto e da psicanalista Camila e, mesmo tendo fortes indícios de que o arquiteto seja o autor do primeiro crime e possa estar envolvido também no segundo, Espinosa nada consegue provar. Aqui está uma das características do detetive noir, um homem cheio de falhas e limitações como qualquer ser humano que vive numa cidade violenta como o Rio de Janeiro e é obrigado a desconfiar não só do bandido, mas da própria polícia. O detetive noir, ao contrário do de enigma, não pretende ser o dono da verdade:

"Para Espinosa, ficara a dúvida de como Aldo viera a saber das práticas sexuais da mulher. Achava que fora através de denúncia anônima. Suspeitava ainda que Mercedes ou Antonia eram quase duas pessoas distintas. Uma, a paciente sensual e amante de Camila; outra, a arquiteta, colega e amante de Aldo Bruno". (GARCÍA-ROZA, 2006, p. 209). "[...] Espinosa achava provável que Aldo algum dia viesse a saber o que realmente acontecera naquela rua sem saída. Mas Espinosa não era psiquiatra, seu interesse não era o distúrbio emocional de Aldo Bruno, e sim o fato de ele ter matado duas pessoas" ( p. 210).

     Em todos os romances de García-Roza, o perfil do investigador é traçado a partir de elementos do mundo material, como o apartamento e os objetos nele presentes, cuja melhor metáfora é a da estante feita de livros. Essa estante a qualquer momento poderá cair. Essa metáfora reforça a ideia de que Espinosa está na contramão da polícia atual. Portanto, sente-se fragilizado para manter suas características de policial honesto e incorruptível. Em seu livro “No país do presente”, Flávio Carneiro fala dessas características de Espinosa.

"Assim como sua estante, a vida do detetive se sustenta num equilíbrio instável, a começar pela própria condição de policial numa cidade como o Rio de Janeiro, onde não se sabe precisamente quem é o bandido e quem é o mocinho. Tendo plena consciência que o inimigo pode estar na mesa ao lado. Espinosa sabe que há poucos colegas em que pode confiar [...]" ( CARNEIRO,2005,p.222)

     Nos romances policiais de enigma, a personalidade do detetive não tem a menor importância, o que importa é o restabelecimento da ordem social, por meio da extirpação do crime. O melhor exemplo desse tipo de narrativa são os romances escritos no século XIX, por Edgar Allan Poe, em que o detetive Dupin sempre desvenda o mistério. Entretanto, no contexto social de Espinosa, o detetive não pode mais ser o grande detentor da verdade, porque não há uma ordem a ser restabelecida, nem uma verdade concreta e absoluta. Numa cidade como o Rio de Janeiro, da qual o delegado não pode ter uma visão totalizadora, porque tudo muda a todo instante, essa verdade só pode ser captada de forma parcial, só lhe resta a dúvida. Logo, o mistério jamais é desvendado por completo, tudo é relativizado.
     No epílogo de" Espinosa sem saída", o delegado interroga Aldo Bruno, principal suspeito dos dois crimes. Espinosa faz a sua versão da história, partindo de uma certeza subjetiva e acusa o arquiteto de ter assassinado o sem-teto e a própria mulher. Aldo Bruno permanece em silêncio, tem um surto psicótico e é internado num hospital psiquiátrico:

"Aos poucos a agitação motora foi diminuindo até ceder lugar a um estado de torpor acompanhado de tempos em tempos por murmúrios que os três policiais, mesmo com esforço, não conseguiam compreender. A partir desse momento deu mostras de extremo cansaço, deitou a cabeça sobre os braços cruzados e não emitiu mais nenhum som. Foi recolhido por uma ambulância para ser tratado num hospital psiquiátrico" (p.208).

     Antonio Quinet, tecendo considerações sobre o Código Penal Brasileiro e a inimputabilidade penal para doentes mentais, defende com muita propriedade a responsabilidade desses criminosos, à luz da psicanálise:

"Para a psicanálise, o sujeito é sempre responsável por sua posição subjetiva, seja ele neurótico, psicótico ou perverso. Ele é responsável por seus sintomas. Freud utiliza a expressão “escolha da neurose” para designar a implicação do sujeito em sua posição sexuada, sua responsabilidade por seus atos, inclusive os atos falhos, que são sempre bem-sucedidos em dizer o desejo do inconsciente. Assim, o sujeito é responsável pelo seu gozo em todas as suas manifestações sociais e sexuais, subjetivas e objetivas, individuais e coletivas. Por outro lado, se o psicótico está estruturalmente fora do discurso, isto não quer dizer que a sociedade deva avalizar essa posição isolando-o das instituições civis. O ato pode ser uma tentativa de fazer laço social: ser julgado e receber a pena que compete a todo cidadão que infringe a lei"(QUINET,2006, p. 202,203).

     Não obstante o esforço de Espinosa de construir um enredo para os crimes de que acusa o arquiteto, com início, meio e fim, nada consegue provar e a dúvida permanece. A escolha do título por García-Roza faz com que o leitor perceba que Espinosa é um detetive sem saída, fato que ocorre em todos os romances do referido autor cuja figura do delegado representa o homem pós-moderno, perdido num labirinto de dúvidas do qual parece não achar a saída.

     Por fim, gostaríamos de ter contribuído, de alguma forma, para despertar o interesse do leitor pela obra de García-Roza e demonstrar a ligação existente entre a ficção policial e a Psicanálise, tendo em vista o profundo conhecimento do autor nessa área. Durante nossa análise, tivemos o imenso prazer de acompanhar Espinosa num passeio pelas ruas de Copacabana e sentir com ele a solidão e o saudosismo diante da paisagem modificada; dividir com ele as preocupações com a violência urbana, a injustiça social, a ética nas estruturas públicas e tentar, assim como ele, entender e aceitar a fragilidade das relações afetivas do mundo contemporâneo. Afinal, num mundo em que o dinheiro fala mais alto, “quanto menos investir no relacionamento, menos inseguro vai se sentir quando for exposto às flutuações de suas emoções futuras” (BAUMAN,2004, p.37) .

Referências bibliográficas:
BAUMMAN, Zigmunt (1998) – Amor líquido – Sobre a fragilidade dos laços humanos. Rio de Janeiro – Jorge Zahar Editor

CARNEIRO, Flávio Martins (2005). No País do Presente: Ficção brasileira no início do século XXI.Rio de Janeiro. Rocco.

FREUD, Sigmund. (1996). Edição Standard Brasileira das Obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Vol.XIII – Totem e Tabu e outros trabalhos. Rio de Janeiro. Imago Editora.

FREUD, Sigmund (1996) – edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud:– vol. XXI –O Futuro de uma Ilusão, O Mal-Estar na Civilização e outros trabalhos (1927 -1931) . Rio de Janeiro, Imago Editora.
GARCÍA-ROZA, Luiz Alfredo (2006). Espinosa sem saída. São Paulo: Companhia das Letras.

JORGE, Marco Antonio Coutinho. (2005) Fundamentos da Psicanálise de Freud a Lacan . As bases conceituais. Vol. 1 – 4ª Ed. Rio de Janeiro. Jorge Zahar Editor.

LACAN, Jaques. O Seminário, livro 3: as psicoses (2002) – 2ª Ed – Rio de Janeiro – Jorge Zahar Editor.
LAPLANCHE, Jean (2001). Vocabulário de Psicanálise – Laplanche e Pontalis. 4ª Ed.São Paulo: Martins Fontes.

MAROUZEAU, J. (1959). Précis de Stylistique Française. Paris: Masson ET Cie.

QUINET, Antonio. (2006). Psicose e laço social – esquizofrenia, paranóia e melancolia. Rio de Janeiro – Jorge Zahar Editor

SIMMELL, Georg (1967) O fenômeno urbano – A metrópole e vida mental. Tradução: Sérgio Marques dos Reis. Rio de Janeiro, Zahar editores.

Revista Matraga vol.II nº 4/5 (jan.;ago.1988) – Rio de Janeiro, UERJ: IL
Lídia Bantim
Enviado por Lídia Bantim em 23/04/2013
Reeditado em 20/06/2017
Código do texto: T4256073
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