NUDEZ, AMOR E ÓDIO: O ENCONTRO DO HUMANO COM O ANIMAL EM CLARICE LISPECTOR


 
“Os homens seriam em princípio esses viventes que se deram a palavra para falar de uma só voz do animal e para designar nele o único que teria ficado sem resposta, sem palavra para responder.”
Jacques Derrida

 
 
Encarcerados em nossa dor, em nossa solidão, sentimos muitas vezes, o desejo de transpor o humano e de chegar o mais próximo possível da animalidade, quebrar todas as barreiras das convenções sociais, deixar que os nossos sentimentos mais primitivos aflorem e, dessa forma, nos transportar “dos confins do homem, à passagem das fronteiras entre o homem e o animal.” (DERRIDA, 1995, p. 14).
Entretanto, quando nos deparamos com a simplicidade e a naturalidade com que os animais se relacionam e a maneira enigmática como eles nos olham, recuamos perturbados com esse olhar. É como se o animal nos visse por dentro e nos despisse da hipocrisia e da empáfia que nos faz sentir superiores aos outros seres. É diante do olhar desse ser desnudo por natureza que percebemos “o limite abissal do humano: o inumano ou o a-humano, os fins do homem, ou seja, a passagem das fronteiras a partir da qual o homem ousa anunciar a si mesmo, chamando-se assim pelo nome que ele acredita se dar.” (DERRIDA, 1995, p. 31).
Em “O animal que logo sou”, Jacques Derrida assinala como é difícil para o ser humano desprender-se do pudor e deixar de sentir um mal-estar ao expor a nudez de seu sexo a um animal que o observa imóvel. A leitura desse texto do referido filósofo permitiu-me dialogar com o conto “O búfalo” de Clarice Lispector, cuja protagonista, “a mulher do casaco marrom”, após ter sido desprezada pelo homem amado, revolta-se e resolve visitar um jardim zoológico, com o intuito de aprender com aqueles animais encarcerados a verdadeira lição de ódio.
Embora o tempo da narrativa seja marcado pela primavera, quando toda a natureza explode em flores e se prepara para receber a vida — portanto, época ideal para o amor —, a mulher pretende encontrar entre os animais a fórmula do ódio. No entanto, a primeira cena com a qual se depara é a de um leão e uma leoa que se tinham acabado de amar. A mulher fica desapontada: “mas isso é amor, é amor de novo” (LISPECTOR, 1965, p. 123) e prossegue em sua busca pelo ódio, vagando de jaula em jaula, sentindo-se também encarcerada em sua dor “[...] Com os punhos nos bolsos do casaco, olhou em torno de si, rodeada pelas jaulas, enjaulada pelas jaulas fechadas”. (LISPECTOR, 1965, p. 123).
Deteve-se diante da girafa, mas aquele ser exuberante era um convite à contemplação, nada podia ensinar-lhe sobre o ódio, pois desfilava imponente e ingênua a leveza de sua liberdade, isenta de preconceitos e preocupações. A mulher sente-se confusa, perdida em seus próprios sentimentos.

[...] sem conseguir encontrar dentro de si o ponto pior de sua doença, o ponto mais doente, o ponto de ódio, ela que fora ao Jardim Zoológico para adoecer. Mas não diante da girafa que mais era paisagem que um ente. Não diante daquela carne que se distraía em altura e distância, a girafa quase verde.”
(LISPECTOR, 1965, p. 123)


É interessante destacar o valor expressivo do adjetivo verde, cor que representa o desabrochar da primavera, da renovação da natureza, da água, da vida, cor da esperança, da longevidade e da imortalidade, em contraste com o marrom, cor da terra, do outono, das folhas caídas. De acordo com  o Dicionário de Símbolos (LEXIKON,1978, p.202-203), na Idade Média, o marrom representava o luto. No conto em estudo, essa cor também pode nos remeter ao estado de tristeza e angústia em que se encontra a personagem, ou seja, o luto após constatar que fora abandonada por seu amor.
O hipopótamo, exibindo com humildade a sua carne roliça, sua nudez, destituído da capacidade de pensar, também não pode ensinar-lhe a receita do ódio, deixando-a desorientada. O fato de esse animal ser desprovido de raciocínio a deixa desapontada, com uma espécie de despeito por perceber que não pode fugir de sua dor, diante de um ser que traz consigo “tal amor humilde em se manter apenas carne, tal doce martírio em não saber pensar...” (LISPECTOR, 1965, p. 124), já que os pensamentos, as lembranças e as mágoas a atormentam.
A nudez dos macacos, a liberdade e a leveza com que se amam e brincam despertam-lhe a ira. Afinal, por que o ser humano, que é dito inteligente, tem de viver escondido, maquiado por vestes e máscaras materiais e morais e não se permitem viver plenamente a sua subjetividade? Portanto, ela inconscientemente inveja “o mundo que não via perigo em ser nu”. Se pudesse,

[...] ela mataria aqueles macacos em levitação pela jaula, macacos felizes como ervas, macacos se entrepulando suaves, a macaca com olhar resignado de amor, e a outra macaca dando de mamar. Ela os mataria com quinze secas balas: os dentes da mulher se apertaram até o maxilar doer. A nudez dos macacos... Ela mataria a nudez dos macacos. (LISPECTOR).

Todavia, o olhar que o macaco de braços descarnados abertos em crucifixo lançou sobre ela deixou-a perplexa. Aquele macaco crucificado em sua velhice e doença, preso numa jaula – ele que nascera para a liberdade – segue o seu destino, saltando nu, olhando absorto para frente, sem o menor vestígio de ódio. Enquanto ela, crucificada pela compaixão, “um sentimento que ela não viera buscar”, foge assustada e implora: “Deus, me ensine somente a odiar!” (LISPECTOR, 1965, p. 123). Percebe-se que a mulher, embora esteja à procura do ódio, não consegue ser indiferente ao sofrimento daqueles animais que, resignados, se mantinham presos como se fossem bandidos.
Ao abandonar a jaula dos macacos, a mulher de casaco marrom pensa no homem responsável por sua angústia, o homem “cujo crime único era o de não amá-la” e ela, numa atitude de denegação diz: “Eu te odeio”. No entanto, sabe que não é tão simples assim odiar quem se ama: “não sabia sequer como se fazia. Como cavar na terra até encontrar a água negra, como abrir passagem na terra dura e chegar jamais a si mesma?”! (LISPECTOR, 1965, p. 123). Ou seja, como matar seu verdadeiro eu feito para o amor, água cristalina e renascer nas águas negras do ódio?
Talvez, conseguisse com o elefante a receita do ódio. Todavia, aquele animal enorme, que poderia esmagar alguém com uma só pata, revelava-se dócil ao se deixar conduzir a um circo para a distração das crianças. A mulher parece sentir-se envergonhada ao ver que aquele animal tinha todos os motivos para odiar e atacar as crianças, futuros adultos que aprisionarão seus descendentes e, no entanto, mantém-se sereno.
A mulher do casaco marrom tenta encontrar no camelo o ódio que procurava, mas detém-se, observando o olhar de quem mastiga a comida sem nenhuma pressa. Aquele ruminar, talvez, fosse um ensinamento para que ela pudesse, por meio do silêncio interior, ter a oportunidade de reelaborar pensamentos, sentimentos e atitudes, exercitando o perdão, a paciência e a resignação. Diante da simplicidade do animal ela se emociona e chora.
Ao deparar-se com a jaula do quati, a personagem se sente desnudada pelo olhar penetrante e silencioso do animal. Entretanto, ela que fora àquele lugar em busca do ódio, não consegue odiar o quati, porque intimamente sente que ele adivinhava-lhe a angústia. A reciprocidade de seus olhares forma uma imagem especular, invertendo a posição que ambos ocupam e “por um instante lhe pareceu que ela estava enjaulada e que o quati livre a examinava”. (LISPECTOR, 1965, p. 124).
Subitamente, deu-se conta de que a prisão era o seu destino – ”a jaula era sempre do lado onde ela estava” (LISPECTOR, 1965, p. 124) – ou seja, nenhum daqueles seres enjaulados estava tão preso quanto ela, naquela sua obstinação pelo ódio. É no encontro com o quati que se dá o momento epifânico: o encontro com um sentimento que, embora fosse ainda uma promessa de ódio, trazia-lhe algo novo – o desejo incontrolável de matar. Contudo, esse momento é interrompido, quando ela foge dominada pela vergonha de se ter deixado flagrar pelo olhar do animal:

[...] Então, nascida do ventre, de novo subiu, implorante, em onda vagarosa, a vontade de matar – seus olhos molharam-se gratos e negros numa quase felicidade, não era o ódio ainda, por enquanto apenas a vontade atormentada de ódio como um desejo, a promessa do desabrochamento cruel, um tormento como de amor, a vontade de ódio se prometendo sagrado sangue e triunfo, a fêmea rejeitada espiritualizara-se na grande esperança. (LISPECTOR, 1965, p. 124).

Percebe-se nesse trecho que a mulher se desnuda diante do animal, a sua “máscara” cai e ela se sente fracassada em seu objetivo, enganando a si mesma, pois sabe que o seu maior desejo é amar e ser amada, ainda que não saiba como recomeçar.
A esperança de encontrar em algum animal o reflexo de si mesma, o ódio que só ela podia sentir, porque amara demais e fora rejeitada, aos poucos vai se esvaindo ali naquele zoológico, onde cada animal aprende com a natureza a lei do amor, da paciência e do perdão. Todavia,  a dor, a decepção e a angústia eram fortes demais, para perdoar aquele homem que a preterira. E ela se desespera:

[...] Mas onde, onde encontrar o animal que lhe ensinasse a ter seu próprio ódio? o ódio que lhe pertencia por direito mas que em dor ela não alcançava? Onde aprender a odiar para não morrer de amor? E com quem? O mundo de primavera, o mundo das bestas que na primavera se cristianizam em patas que arranham, mas não dói... oh não mais esse mundo! não mais esse perfume, não esse arfar cansado, não mais esse perdão em tudo o que um dia vai morrer como se fora para dar-se. ”. (LISPECTOR, 1965, p. 125).


 
O último animal a ser visitado é um búfalo negro. A mulher observa atentamente a jaula daquele animal. Talvez, por conhecer tão de perto a agressividade humana, através de séculos de exploração e maus-tratos, ele pudesse ensinar-lhe a odiar. É diante do búfalo que a epifania se dá de fato. Por três vezes o búfalo a observa de longe, mas se afasta dando-lhe as costas, enquanto ela vai entrando em êxtase, numa espécie de vertigem em que se desfaz a fronteira entre humano e animal. Nessa vertigem, ela se sente duplamente possuída: pelo homem e pelo búfalo. O primeiro ela ama, mas quer odiar e o segundo ela odeia, mas lhe implora amor. Já que o amor do homem fê-la sofrer, resta-lhe acreditar na sinceridade do animal. “Eu te amo, disse ela então com ódio para o homem cujo grande crime impunível era o de não a querer. "Eu te odeio, disse implorando amor ao búfalo” (LISPECTOR, 1965, p. 126), haja vista que ele, por não ter as faculdades do pensamento e da linguagem, poderia satisfazer o seu desejo mais primitivo, sem envolvimento amoroso.
Indiferente aos apelos da mulher, o búfalo mantém-se de costas até o momento em que ela abandona seu lado humano e se aproxima do animal, ao sentir escorrer dentro de si o mesmo “sangue negro”, que os unia e os separava.

Enfim, provocado, o grande búfalo aproximou-se sem pressa. Ele se aproximava, a poeira erguia-se. A mulher esperou de braços pendidos ao longo do casaco. Devagar ele se aproximava. Ela não recuou um só passo. Até que ele chegou às grades e ali parou. Lá estavam o búfalo e a mulher, frente a frente. Ela não olhou a cara, nem a boca, nem os cornos. Olhou seus olhos. E os olhos do búfalo, os olhos olharam os seus olhos [...]. Lentamente a mulher meneava a cabeça, espantada com o ódio com que o búfalo, tranquilo de ódio, a olhava. (p.126)


O filósofo Jeremy Bentham (1748-1832), contrariando a tese do logocentrismo, isto é, a tese sobre o animal desprovido de logos, privado de poder ter o logos, indaga: os animais podem sofrer? Segundo Derrida (2002, p. 55), a hipótese de Bentham de poder e não poder sofrer que define o humano e o animal revela que “Poder sofrer não é mais um poder, é uma possibilidade sem poder. Uma possibilidade do impossível.” Para ele, é na Possibilidade da impossibilidade que está o modo primordial de pensar

[...] a finitude que compartilhamos com os animais, a mortalidade que pertence à finitude propriamente dita da vida, à experiência da compaixão, à possibilidade de compartilhar a possibilidade desse não-poder, a possibilidade dessa impossibilidade, a angústia dessa vulnerabilidade e a vulnerabilidade dessa angústia. (DERRIDA, 2002, p. 55).

Nesse sentido, não há saída para o ser humano. Embora seja dotado de inteligência, de linguagem, de ser capaz de inventar máquinas para auxiliá-lo em suas atividades, de poder usufruir do conforto, resultado de suas invenções e trabalho, não é capaz de evitar o próprio sofrimento, nem sequer de prolongar a vida. Portanto, o homem se angustia diante dessa condição vulnerável que o iguala aos animais.
De acordo com a citação de Derrida, no conto em estudo, a mulher do casaco marrom se vê invadida pelo olhar do búfalo e compartilha com ele a angústia e a dor de existir. A diferença é que a mulher pode expressar-se e, por meio da linguagem, chora, xinga, reclama, ataca e se defende. Enquanto o búfalo  segue em direção à morte, sem dar-se conta disso. É a vulnerabilidade de ambos encarcerados no não-poder de que nos fala Derrida.
Gostaria de salientar que, por falta de tempo hábil, não tive a pretensão de esgotar todas as possibilidades de interpretação do texto. Espero que, a partir deste trabalho, outros estudiosos possam aprofundar a leitura de “O Búfalo” e “Um animal que logo sou", dois textos surpreendentes e fascinantes.

BIBLIOGRAFIA
.
DERRIDA, Jacques. O animal que logo sou. São Paulo: Editora da UNESP, 2002.
LEXIKON, Herder. Dicionário de Símbolos. São Paulo: Cultrix, 1990.
LISPECTOR, Clarice. O búfalo. In Laços de família. Rio de Janeiro: Editora do Autor,
Lídia Bantim
Enviado por Lídia Bantim em 24/06/2013
Reeditado em 28/02/2018
Código do texto: T4355447
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2013. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.