O resgate de Carmen Cinira por Humberto de Campos

O RESGATE DE CARMEN CINIRA POR HUMBERTO DE CAMPOS

Miguel Carqueija

Lendo o livro de crônicas “Sombras que sofrem”, numa edição de 1960 da Cia. Editora Nacional, de São Paulo (volume VI das obras desse autor) deparei na crônica XIII com uma singela homenagem a uma jovem poetisa dos anos 20 e 30, Carmen Cinira. Humberto de Campos, que foi membro da Academia Brasileira de Letras e, em certa época, um dos mais lidos escritores nacionais, faleceu em 1934, com apenas 48 anos. Os literatos brasileiros morriam habitualmente cedo até a primeira metade do século XX. Alencar também ficou nos 48, mas Álvares de Azevedo e diversos outros nem aos 30 chegaram. Escritores e artistas eram com freqüência ceifados pela tuberculose, por exemplo. Este o caso de Carmen Cinira, que H.C. pouco conheceu e mais soube após a morte da moça.

Carmen não parece ter sido muito conhecida, mas era muito sensível, a julgar pelos dois textos que H.C. transcreveu e, graças a ele, chegam a 2012. Ei-los:

VIDA

Carmen Cinira

Vida, que és boa para tanta gente,

e a tanta gente embriagas de prazer:

para mim foste má, foste inclemente,

e deixaste-me exausta de sofrer!

Quando às vezes recordo, tristemente,

as agonias do meu pobre ser,

tu me causas pavor... de tão descrente,

alegro-me, ao pensar que vou morrer!

Caiba ao Destino a culpa de ter sido

a minha mocidade um só gemido;

mas, sei que o meu faminto coração,

na morte que, bem sinto, virá breve,

há de achar o carinho, que não teve,

e a paz, que tanto mendigou em vão!

Humberto de Campos comenta:

“A sua alma havia-se tornado, de há muito, profundamente religiosa. Para esquecer os sofrimentos que a Vida lhe oferecia no seu cálice, elevava-se até aos pés do seu Deus, e a ele se entregava neste”

CREDO

Creio em Deus, que gerou, sob a magnificência

de um mistério estupendo, a terra e o mar profundo;

creio em Deus, que revela a singular essência

na perfeição da flor, nas grandezas do mundo.

Creio em Deus, que retrata a enorme sapiência

nas leis universais, na luz do sol fecundo;

creio em Deus, que demonstra a sua onipotência

na fé que purifica e alenta o moribundo...

Deus, que fez o perfume, as flores, a amplidão,

desde o céu constelado à relva de veludo;

Deus, que o morto levanta, e é carinho e perdão...

Deus, o fanal do Bem, que chama o pecador,

que fez a criatura e que, acima de tudo,

fez a música, o sonho, e os milagres do amor!

Quanto a Humberto de Campos, no mesmo livro ele fala dos sofrimentos que o assaltaram desde 1928, com a perda de uma vista, o enfraquecimento da outra, as dores, as dormências, mas com tudo isso ainda trabalhava e sustentava os filhos.

Era um homem simples e que se compadecia com o sofrimento da humanidade. Este, aliás, o assunto dominante do livro “Sombras que sofrem”.

Humberto de Campos é outro nome que os brasileiros atuais precisam conhecer e reconhecer.

NOTA: reeditei este texto para colocar o nome de Cinira como co-autora, ainda que ela já houvesse morrido quando eu nasci; é porque dois poemas completos de sua autoria acham-se aqui transcritos.