ENTRE SANTOS

ENTRE SANTOS

INTRODUÇÃO

No volume II das obras completas de Machado de Assis da Editora José Aguilar, Rio de Janeiro, 1962, contei exatos 124 contos. É preciso ser extremamente criativo para engendrar tantas e inquestionáveis mentiras que atuem ― e continuam atuando desde sua publicação ― como metonímia para refletir nossa verdade social; aliás, um retrato exato dela, ao captar realidades, procedimentos e atitudes individuais, de cuja soma é formada a sociedade.

E esses contos machadianos, tão magistralmente criados, bem como seus romances da fase realista, têm sido um reflexo atemporal de nossa essência. Todavia, ninguém, nem mesmo um Machado de Assis, cria a partir do vácuo intelectual. É preciso, além de talento e dom, muito estudo, muita análise, muita perspicácia, muito poder de observação, muita leitura. E isso nunca faltou a Machado de Assis, que leu, dissecou e digeriu os grandes clássicos, incluindo a Bíblia e muito da Mitologia. Essa gama de conhecimentos num ser profundo e criativo como Machado de Assis só podia dar no que deu: várias obras-primas, quer nos contos, quer nos romances, quer nas crônicas, quer nos poemas.

E uma dessas obras-primas do conto brasileiro e machadiano é ENTRE SANTOS, fina e profunda análise da essência dos devotos e, por extensão, de nós todos.

PARA SE TER UMA IDEIA

ENTRE SANTOS narra uma conversa, flagrada por um capelão da Igreja de São Francisco de Paula, entre alguns santos (São Miguel, São José, São João Batista, São Francisco de Paula e São Francisco de Sales, “terríveis psicólogos”, que conseguem ler a alma e a vida dos devotos) a respeito do comportamento e das atitudes dos fiéis, quer em seus momentos de fé profunda e de implorações diversas, quer em momentos automáticos, quando vão à igreja por hábito, mas cujo pensamento nem sequer está lá.

Vários santos narraram casos, mas só tomamos conhecimento mesmo daquele que São José narra, um relato interessante sobre uma adúltera, e daquele que é o verdadeiro mote do conto, narrado por São Francisco de Sales, santo escolhido pelo fiel por ter-lhe o mesmo sobrenome.

Aliás, São Francisco de Sales, um dos “terríveis psicólogos”, não só lê profunda e essencialmente a alma do seu homônimo, como sabe minúcias da vida e de toda a história dele. Os detalhes são saborosos e, por isso, recomendo a leitura na íntegra de mais esse conto exemplar de Machado de Assis e não apenas desse elementar resumo que deixei acima.

AS MUITAS INTERTEXTULAIDADES

Como tenho destacado nos ensaios sobre os contos machadianos publicados aqui nesta Revista, Machado de Assis usa magistralmente o recurso da intertextualidade. Seus textos permeiam relações com histórias clássicas da literatura mundial, como as de Shakespeare, Cervantes, Camões, Dante, Horácio, Virgílio, dentre tantos outros, além da Bíblia e da Mitologia.

O que me impressiona em Machado de Assis é a capacidade de criar histórias tão diferentes a partir de um mesmo tema ou de tema semelhante. Histórias às vezes em forma até de capítulos dos seus romances. Em ENTRE SANTOS, não há como negar a exploração de duas entidades que fazem joguete dos humanos: a avareza e a usura, modos de ser típicos do amor ao ter pelo ter, especialmente dinheiro e riquezas em geral.

Nesse curioso conto machadiano, a usura e a avareza, por se impregnarem em nossa alma, destacam-se como indissociáveis facetas da essência humana. Cada um de nós carrega consigo a sua essência, algumas delas soberbamente dominantes e perceptíveis aos outros; outras nem tanto, praticamente imperceptíveis, mas sempre essência. No entanto, sobre a avareza e a usura, volto a falar abaixo, com outros casos de autointertextualidade machadiana.

AUTOINTERTEXTUALIDADE I - OS IRMÃOS MACHADIANOS DE SALES

Dentro dessa linha das essências, o fiel Sales de ENTRE SANTOS tem alguns irmãos — metaforicamente falando, é claro — em outros contos machadianos.

Fiquemos, só para registro, com apenas dois deles, já analisados e publicados nesta coluna: Fortunato, de A CAUSA SECRETA, e Felisberto, de O ENFERMEIRO.

No entanto, diferentemente de Sales, tanto Fortunato quanto Felisberto eram essencialmente cruéis, precisavam da dor alheia ─ física ou moral ─ para satisfazer seu espírito. Para alcançar esse prazer, não hesitavam em usar até de abusos físicos para captar e saborear a dor estampada nas suas vítimas.

Fortunato criou uma clínica para ter os doentes ao pé de si e sorver-lhes, com um prazer mórbido e sádico, as expressões e esgares provocados pela dor; Felisberto açoitava seus enfermeiros para saborear-lhes o sofrimento. Mas ambos também eram capazes de ações ‘normais’, como amar outro ser além de si: Fortunato amava deveras a esposa, Maria Luísa; Felisberto, em agradecimento, deixou sua fortuna a seu último enfermeiro, Procópio.

Agora vamos à essência de Sales, um bom sujeito, desprovido de qualquer prazer, seja causado por vaidades ou bens materiais, seja gastronômico, simplesmente para não gastar e poder guardar aquilo que mais amava na vida: dinheiro. Um avarento exacerbado: “A vida que leva é sórdida; come para não morrer, pouco e ruim”.

E precisava ter o dinheiro à sua vista, mesmo que por poucos instantes, para evitar a remota possibilidade de usurparem-no. Abria o cofre, sorvia o prazer do ter, fechava e acumulava mais. Para quê ou para quem não interessava. O fundamental era ter e cruzar o brilho das suas moedas com o do seus olhos ao mirá-las. Sinestesia pura ao saborear esse luzir cativante, viciante.

De repente, sua amada esposa é acometida de uma doença perigosíssima e tudo indicava o pior dos desfechos. Como a medicina nada mais podia fazer por ela, restou apelar para os santos. Foi aí que escolheu São Francisco de Sales, não por devoção, mas pela coincidência dos nomes.

Adepto de que nada se consegue sem pagar, dirige-se à igreja com a disposição de negociar com o santo a vida da esposa por uma perna de cera. Tinha firme a lógica usurária de que alcançaria a graça se gerasse lucro ao santo. Em outras palavras, paga-se pelo bem que se quer. Com essa disposição, ajoelha-se diante do santo e tenta fazer sua oferta.

AUTOINTERTEXTUALIDADE II - USURA x AVAREZA

Tenta, mas... sua essência de usurário e avaro fala bem mais alto: uma perna de cera custa uma moeda e ele não tem o hábito de se desfazer de dinheiro algum. Era mestre em arrancar dinheiro aos outros, mas, avaro, dinheiro que caía na sua mão dificilmente dela saía. Como, então, se desfazer de uma moeda para comprar a tal perna de cera?

Sua própria vida era de uma avareza incrível, só tinha a esposa e duas escravas, uma já tinha morrido, ambas compradas em contrabando, pelas quais possivelmente nem tivesse pago, porque o dono tinha morrido. E, quando uma das escravas morreu, libertou-a, isto é, libertou o cadáver, para não arcar com as pequenas despesas do enterro.

Com essa contradição entre usura e avareza, instalou-se profundo conflito em sua alma: queria deveras alcançar a bênção de salvar a esposa — para o que julgava ser necessário pagar; ajoelhado, pedia, orava, clamava, mas a moedinha luzia a seus olhos e ia se multiplicando a cada luzimento, e ele não tinha como fazer a oferta pecuniária. Instaura-se uma luta feroz, ferocíssima seria mais bem dito, entre o amor, o avaro e o usurário.

Porém, machadianamente falando, a avareza — e a usura — também é uma espécie de amor, a si próprio, mas amor, e venceu ao outro. Não consegue fazer sua oferta e troca a vida da esposa, primeiramente por trezentos e depois vai subindo a oferenda até chegar a mil pais-nossos e mil ave-marias. Alcançou a graça, não pelo exagerado volume de rezas, mas graças à bondade do santo, que lhe captou a essência e riu-se dela, entendendo a impossibilidade de Sales superá-la.

Recomendo a leitura do conto, para que você, leitor, também saboreie essa capacidade genial machadiana da narração do conflito entre o ter de fazer a oferta e a luta para conseguir fazê-la, conflito que vai num crescente de intensidade até explodir na troca pela hiperbólica quantidade de rezas, dada a impossibilidade essencial de Sales de se desfazer de qualquer dinheiro. E, claro, Sales se convenceu de que as orações, como rezas, tinham muito mais importância para o santo do que qualquer bem meramente material, como era o ‘vil metal’.

AUTOINTERTEXTUALIDADE III - AS MOEDAS MACHADIANAS

O dinheiro é, certamente, uma das mais profundas variedades de amor entre nós. As moedas tilintam nas histórias machadianas. Quem não se lembra da moeda de ouro, a meia dobra, achada por Brás Cubas e entregue ao chefe de polícia para que lhe achasse o verdadeiro dono! Certo que alguns dias depois o mesmo Brás Cubas achou, na praia, um pacote cheio de dinheiro e... não o entregou ao chefe de polícia, porque resolveu praticar com ele uma boa ação.

Sua boa ação foi dar esse dinheiro à Dona Plácida, antiga empregada da família de Virgília, a amante dele, para que ela tomasse conta da casinha da Gamboa, onde mantinha seus amores ilícitos com a sua linda e elegante Virgília. Usura pura: dinheiro vai, lucro vem.

Ainda é Brás Cubas quem, sendo jogado de um jumento, tendo ficado com o pé preso no estribo, corria o risco de sofrer grave acidente ou até encontrar a morte. É salvo por um almocreve, a quem, na intensidade da ebulição da adrenalina pós-susto, resolve dar três moedas de ouro das cinco que levava consigo. Adrenalina baixando, cogita se a benesse não seria exagerada. Reflete, reflete e, quando se despede do almocreve, dá-lhe apenas uma moeda de prata.

Arrependeu-se, dizendo que devia mesmo era ter dado umas moedas de cobre. Com Sales não é diferente: a vida da esposa por uma perna de cera. Mas... como abrir mão de uma moeda para comprar uma perna de cera? E dá ao santo mil pais-nossos e mil ave-marias: “Aqui o demônio da avareza sugeria-lhe uma transação nova, uma troca de espécie, dizendo-lhe que o valor da oração era superfino e muito mais excelso que o das obras terrenas”. E como a consciência precisava dessa crença, aceitou-a de muito bom grado e se convenceu dessa irrefutável verdade.

INTERTEXTUALIDADE MITOLÓGICA

Como em muitos contos machadianos, nesse também temos uma citação mitológica. Trata-se de uma referência ao deus coxo Vulcano, na versão de Homero, que diz que Vulcano era filho de Zeus e Hera. Já o poeta Hesíodo, possivelmente contemporâneo de Homero, diz que Vulcano é concepção exclusiva de Hera, como uma espécie de vingança às constantes traições de seu marido, Zeus. E há uma versão segundo a qual Vulcano nasceu antes do casamento de seus pais.

Qualquer que seja a versão, o fato é que Hefestos, nome grego de Vulcano, é tido como feio, disforme e coxo. Uma versão diz que ele ficou coxo quando sua mãe, que queria gerar um ser tão belo quanto ela, ao vê-lo horrendo como era, atirou-o do monte Olimpo. Quando ele chegou ao solo, ficou gravemente ferido e coxo para sempre.

Outra versão afirma que quem o atirou do Olimpo foi o próprio pai, Zeus, por ele tentar defender a mãe numa das costumeiras brigas do casal, por ciúme dela. Teria demorado um dia inteiro para atingir o solo e, à noite, caiu na ilha de Lemnos, onde foi recolhido e cuidado pelos habitantes.

Há várias versões e outra delas diz que, quando atirado pela mãe, caiu no mar e foi criado e educado pela nereida Tétis, filha de Nereu e Dóris, e pela sua amiga Eurínome, filha da outra Tétis e de Oceano. Eurínome, por sua vez, seria amada por Zeus e geraria as Graças — que simbolizam a beleza e o encanto — e Asopo, o deus do rio de mesmo nome.

O fato, e que justificou a citação de Machado de Assis, é que Vulcano era coxo e despertou o riso de outros deuses. Todavia, é o hábil deus da metalurgia, do fogo, das armas, guerreiro inteligente e imbatível. E sua feiura não o impediu de ter como esposa a bela Vênus, conseguida por uma ameaça a Zeus. Vênus, no entanto, não o amava e o traía com Marte, adultério desmascarado por Vulcano num ardil de muita inteligência, ao criar uma rede de ouro finíssimo e praticamente invisível com a qual prendeu os dois amantes na cama, expondo-os assim aos demais deuses, desmoralizando Vênus e Marte.

INTERTEXTUALIADE CRISTÃ

Bem, a história gira em torno da conversa dos santos, o que já se configura como intertextualidade com a Igreja Católica. A própria maneira como os santos se expressam nos remete à forma bíblica. Dispenso-me, pois, de destacar maior intertextualidade cristã. No entanto, só para constar, transcrevo uma fala do narrador do conto, com outra do próprio santo, com as quais se comprova a intertextualidade cristã:

“..., mas São Francisco de Sales recordava-lhes o texto da Escritura: muitos são os chamados e poucos os escolhidos, significando assim que nem todos os que ali iam à igreja levavam o coração puro.”

PROFUSÃO DE METÁFORAS

Os contos e romances machadianos são profusos em belíssimas metáforas que enriquecem o texto. Em ENTRE SANTOS há abundância delas. Transcreverei algumas, até para que o professor possa dispor delas em suas aulas:

1) “Vinha pedir-me que lhe limpasse o coração da lepra da luxúria.”

2) “... a força precisa para sair das garras do demônio.”

3) “... desabou em todo o bairro um aguaceiro de motes e dichotes;...”

4) “Não te espantes, Miguel; naquele muro aspérrimo brotou uma flor descorada e sem cheiro, mas flor.” (referência à avareza de Sales)

5) “No momento em que a boca ia articular a primeira palavra, a garra da avareza mordia-lhe as entranhas...”

Creio que com essas já se fornecem elementos para elucidação em sala de aula.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Meu intuito, ao analisar alguns contos machadianos nesta coluna, é fornecer aos professores algum material para se trabalhar em sala de aula. É claro que não se esgotam as possibilidades de enfoque, e o professor pode acrescentar outros elementos, enriquecendo mais seu trabalho com os alunos.

Algo que pratico nos últimos 40 anos em sala de aula é sempre ler alguma crônica ou poema ou conto aos alunos antes de iniciar a aula. Leio e faço pequenos comentários de contextualização, quer do texto, quer do autor.

Ora, se a aula for de literatura, aí isso se justifica muito mais. É preciso trabalhar com os textos da literatura e não só com a história da literatura. É preciso que os textos sejam lidos em sala e discutidos, comentados, analisados, mostrados em suas características. Essas análises que venho apresentando com esses “Contos Machadianos” enfocam apenas algum viés que me tenha mais chamado a atenção e eu procuro deslindar e disponibilizar para os colegas. Mas que se enfatize isto: meus ensaios não esgotam o assunto de um conto. Busque outros ângulos, outros vieses, discuta com os alunos. Das discussões nascem muitas descobertas. Bom trabalho, caro professor!

Prof. Leo Ricino

Mestre em Comunicação e Letras – professor na Fecap – Fundação Escola de Comércio Álvares Penteado

Artigo publicado na revista CONHECIMENTO PRÁTICO LITERATURA nº 52, Editora Escala Educacional

Leo Ricino
Enviado por Leo Ricino em 24/05/2014
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