Conterrâneo de Assis Brasil

Ninguém precisa nascer num berço de intelectuais para operar as letras e suturá-las no papel. Nenhum homem é maestro do determinismo. A arte faz parte da nossa natureza. Passei por muitas dificuldades durante a lapidação da minha primeira obra literária. Dificuldades como na luta do velho no mar. As emoções não são postas no papel repentinamente. É preciso muito trabalho, persistência e, principalmente, paciência, sensibilidade. Exercitar a sensibilidade é algo ainda mais perturbador. Vale ressaltar que essa aprendizagem é constante, pois como já dizia Santo Agostinho: “Falar sobre palavras com palavras é tão complicado como entrelaçar os dedos e tentar coçá-los”.

Em muitos momentos, vi-me despido de inspiração, sugado e vazio de palavras. Então, saía do meu apartamento na Avenida Álvaro Mendes (onde morava) e caminhava lentamente, buscando nos prédios antigos, na revoada dos pardais, no matinal vento frio da nossa terra e nos rostos das pessoas algo que me reconduzisse ao meu labor.

Buscava inspiração na natureza que embeleza a cidade deixando-a graciosa pela manhã, dourada ao entardecer e sedutora nas madrugadas; nas casas com seus suntuosos telhados; nas ruas de calçamento liso e nas largas e arborizadas avenidas boêmias; nas ruelas e nos becos estreitos que ainda exalam coisas de um passado longínquo; nas praças que têm por teto a copa das árvores; e na gente trabalhadora e inteligente, que ainda guardam muitos enigmas a serem desvendados em prosa e em verso. A natureza alimenta o artista, assim como as amizades enriquecem o ser humano.

A inquietação diária, as constantes insônias, o isolamento do mundo real, a dedicação, a aprendizagem, o suor, o sangue em cada parágrafo, o estudo de cada substantivo, adjetivo e verbo, tentando colocá-los em seus devidos lugares, e finalmente, a sensação de realização pelo término do trabalho são de uma emoção difícil de descrever.

Dar vida a um romance não é a mesma coisa que confeccionar um artigo, crônica, ensaio ou poema. É algo demasiadamente complexo, conhecido só por aqueles que o fazem. Compararia com uma matryoshka deslizando na mão e se deixando ver numa série incontável de bonequinhas que se escondem no ventre umas das outras.

Queria um romance atemporal, que fosse uma espécie de protesto, mas também uma declaração de amor por parte de um filho desvairadamente apaixonado por sua terra. As lendas, passagens históricas, o clima, o hino, as pessoas, os lugares, tudo seria motivo de inspiração. Daria início ao relato de lutas, traições, assassinatos, romances e fugas. Os fatos históricos seriam descritos com a intenção de instigar o leitor a conferir o que é realidade e ficção.

Iniciar um capítulo e terminá-lo é o primeiro passo para a concretização do sonho de escrever um conto ou um romance. Escrever sobre experiências autobiográficas e subjetividades humanas conhecidas é o segredo para os personagens ganharem vidas e não serem como em muitos livros ruins, meros bonecos frios e sem cores.

Carregamos durante nossa existência todo tipo de sentimento, sejam eles bonitos ou feios. Falar deles é o mesmo que oferecer um copo d´água a um homem sedento ou como alimentar a quem morre de fome. Ter a coragem de olharmos no espelho todos os dias como seres defeituosos e cheios de frustrações, tudo isso é o que nos permite dar vida aos mocinhos e aos bandidos. Estão todos dentro da gente. Basta ter atitude e buscá-los sem medo.

Depois de seis meses de muito esforço, vejo a obra impressa e encadernada sobre a cama, pronta para a primeira das dezenas de revisões. Esse sim é um processo doloroso demais. Terminado, o livro é tratado pelo autor como um filho especial. A história e os personagens, mesmo ditos de ficção, são reais.

Os personagens já ganhavam vida, convivendo comigo no meu dia a dia, chegando até a tirar as minhas poucas horas de sono. Quantas vezes fui trabalhar sem dormir! Naquele ano de maior efervescência ia para as aulas na Faculdade de Direito e contava os minutos para chegar em casa e continuar a escrever. Havia momentos em que o desejo de acudir os personagens era maior que a razão, fazendo-me sair em plena aula, andando pelas ruas anotando tudo que vinha à mente, para não correr o risco de esquecer. Construir uma obra é algo extraordinário, pois não se restringe apenas a escrevê-la, vai mais além, substituindo o mundo real pelo mundo dos personagens do livro, onde você é o criador. É tão perturbadora essa sensação que às vezes você é acometido pela personalidade de uma das criações. O mais difícil é elaborar os papéis, pois o mesmo deve ser feito separadamente, sem interferência da individualidade dos outros personagens. Quem já fez um livro sabe do que estou falando. O autor é constantemente emprestado para os personagens, que só ganham vida através de sua capacidade de entendê-los. A criação só é possível porque a mesma já existe.

Em novembro de 2004, iniciei o processo doloroso da revisão de praticamente quatrocentas páginas investido das palavras de Picasso: “Toda obra é uma obra inacabada”. Finalizei o livro pretendendo tirar “férias das palavras” a fim de reabastecer as energias. Mas em pouco tempo, logo bateu uma saudade da rotina de expressar os sentimentos, de exercitar os sentimentos, as sensações e, principalmente, de criar e recriar um mundo de personagens. Precisava beber!

Leio alguns clássicos, compro alguns livros, percorro estantes de bibliotecas, contudo continuo a imaginar páginas e páginas de um novo livro que já nasceu dentro de mim naquele momento. Seria um romance bolivariano! É como se fosse um vício que entorpece o espírito e que nos domina de tal forma que largamos tudo para satisfazê-lo.

Sentava na cadeira da biblioteca e com o livro aberto de Assis Brasil colocado sobre a mesa, tentava concentrar-me na sua história, nos seus ensinamentos. Sei que é preciso aprender muito com o mestre! Entender e descobrir através de suas palavras os meus sentimentos. Todavia a angústia e o vazio se hospedam, novamente, em meu peito, já insatisfeito pela brusca parada do sonho que acabava de começar e eu intencionalmente interrompia. É preciso agir! E como se eu fosse um animal faminto, volto para a faina ingrata de escrever. Poucos valorizam, não é verdade? Cada palavra é como um gole de água gelada percorrendo uma garganta seca. Só assim eu me encontro, só assim eu sobrevivo. Só assim eu existo e consigo resistir nesse mundo. Sinto-me um escravo do encanto das letras.

Conheci Assis Brasil em 1991. A leitura do meu “Cantor Prisioneiro” era o bastante para os oito aninhos que carregava no ombro. Naquele tempo, estudava num colégio de Fortaleza. Foi ali que descobri o sabor da leitura. Desde então procurei conhecer mais sobre o nosso grande escritor conterrâneo. Queria seguir seus passos. E escrever livros foi uma das várias formas que encontrei. Sinto-me RICO por ser conterrâneo de um gênio como Assis Brasil.

Rafael Ciarlini
Enviado por Rafael Ciarlini em 01/11/2014
Código do texto: T5019771
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2014. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.