Cartão de Visita

Escrever é remir o tempo curto deste sopro de vida com uma ocupação que cura a nossa alma, que nos eterniza num diálogo intenso com o leitor. Escrever é tão solitário e complexo como respirar. Mexer com palavras é marcar o momento exato de um milagre – respirar, inspirar e transpirar... um processo que marca o princípio e o fim da própria vida. É como cavar em nós mesmos. Tão imprevisível quanto as marés e o vento. Tão inexorável como as estações. É como parar frente a si mesmo e dar voltas e mais voltas em torno de racionalizar os sentimentos, experimentando a mesma conclusão de Oscar Wilde: “As emoções do homem são despertadas mais rapidamente que as idéias”.

O escritor poderia ser comparado a um agricultor que se lança à terra, vorazmente, na estação apropriada a fim de aproveitar bem o breve tempo de que dispõe. Engana-se quem pensa que a estiagem não serve para nada! É nela que ele trata a terra para que esteja apta a receber as primeiras gotas de chuva. Como a nossa geratriz encontra-se, fundamentalmente, na dedicação resoluta, o escritor sente-se com uma responsabilidade parecida com a de um jardineiro ou como a de um ourives que, persistentemente, lapida o papel tentando em vão descobrir a alma.

Existirá algum livro que jamais foi lido, cujas páginas não foram tocadas, manuseadas, não despertando em qualquer pessoa as emoções nele guardadas - tal qual uma pessoa que passou pela existência sem nunca ter experimentado qualquer tipo de amor?

O fim do escritor é o leitor? Ou será o começo? Não se sabe ao certo. A verdade é que entre ambos pode nascer uma bela amizade. No início dela, apenas a apresentação do escritor, não existe muita reciprocidade, é algo ainda unilateral, sem conhecimento mútuo, uma fase árida porque praticamente só lidamos com as diferenças (que, em geral, consideramos como defeitos).

Uma boa amizade requer tempo e dedicação. Para suportar os temporais. O bom seria nos apresentarmos ao vivo como somos, sem máscaras, sem muitos rodeios e falando daquilo que vivemos no dia-a-dia. Escrever de verdade é partir pra isso, é mergulhar desta forma. O livro é o cartão de visita do escritor e a palavra dele vai logo adiante, revelando muito sobre sua personalidade.

Os personagens são as várias faces do escritor, reconhecidas por ele e trabalhadas num papel por meio da sensibilidade. A arte do escritor no papel começa inconscientemente a trabalhar a alma do leitor, a sensibilidade mofada, quase inerte. Aí vem o turbilhão de emoções: riso, choro, raiva, dor, medo, curiosidade, paixão... Parar ou continuar? Uma pergunta que surge no leitor após o choque com a sensibilidade do escritor, pois esta mexe com a dele também. Ler e escrever não são apenas verbos, são ferramentas que lapidam o nosso ser.

O escritor e o leitor são muito parecidos. São tão humanos, demasiadamente humanos. Continuar ou parar?

- Esse livro eu gostei demais, muito bom! – poderá dizer um.

- Um lixo de livro! – exclamará outro.

Numa mesma obra artística poderão ocorrer efeitos bem distintos socialmente, mas que no íntimo são muito parecidos. A mensagem de um livro sempre caberá no espaço de seu espírito, no universo de seu mundo, identificando-se ou não. Vinícius de Morais sabiamente já pregava: “A gente não faz amigos, reconhece-os”.

O livro depositado pela mente do escritor é um instrumento de amizade. São neles que o escritor se apresenta e o leitor se reconhece com as atitudes e falhas de caráter dos personagens, falando dos erros dos outros, dando a cara à tapa, sendo franco e mentiroso consigo mesmo, ou até fazendo joguinhos que revelem tanto o lado bom como o ruim. Somos ou não seres humanos? E o que são os humanos, sem a sua maior qualidade – os defeitos!?

É estranho ver num livro só mocinhos ou mocinhas, e até uma biografia impecável. Histórias bonitas não são necessariamente uniformes, coerentes. Talvez estas sejam as mais desonestas, as mais corruptas. Não se enganem! Em toda forma de expressão cultural o artista se revela. Muitas vezes utiliza apetrechos de dissimulação, mas isso tudo faz parte. Pode parecer até mais louco do que já é, ou não. Quem é são nisso tudo? O escritor? O leitor? A criação? A criatura? O que significa ser são? É um bom questionamento.

Não é de hoje que se discute os critérios de enquadramento de loucura. Se por um lado, a loucura é algo tão chocante que a Bíblia e os livros espíritas se referem a ela como o extremo da degradação humano, por outro, pensadores como Michel Foucault, Erasmo de Roterdã, Émile Durkhein, Jean Paul Sartre, Franz Kafka e até Machado de Assis e Graciliano Ramos trataram o tema por outra perspectiva – a do questionamento.

Consensualmente, concluíram que é classificado como louco todo aquele que não se enquadra nos padrões sociais vigentes. Foucault, por exemplo, aborda o fato de se classificar alguém como louco a fim de tirar a sua condição de sujeito. Para ele, o fato de alguém ter o poder de classificação e triagem é algo perigosíssimo que atenta contra aquilo que hoje chamamos de democracia. Ao atribuir a alguém a condição de louco, desqualificasse-lhe como sujeito social, como cidadão. Mas desqualifica o quê, exatamente? Ora, seu discurso, isto é, seus posicionamentos e posturas, valores, livre arbítrio, tira-lhe toda liberdade. Pois, foucaultianamente falando, a “palavra é alvo do exercício de poderes que a controlam; os poderes não incidem apenas sobre os corpos, mas também sobre as palavras”. E qual o código dos livros? – Palavras!!!

O abstrato e o concreto se confundem nas palavras, no seio da mente tanto do leitor como do escritor. O livro é a única coisa palpável, indiscutivelmente vivo, queimando nas mãos, na mente. As palavras são como água de cachoeira. Lá do topo a pena do escritor jogando água sobre a mente do leitor. Informações mil se encontram, numa mistura de vidas, que por carregarem experiências tão distintas parecem pintar quadros diferentes em leituras a cada tempo, assim vão se formando as interpretações, as várias leituras de um mesmo livro. Não existe releitura de um livro. A releitura é um processo que acontece dentro de nós mesmos. A relação de amizade entre o escritor e o leitor é um encontro de emoções diferentes, mas ao mesmo tempo tão parecidas, porque são humanas. Um vínculo que pode se tornar tão intenso quanto o que entrelaçou Jonatas e Davi. Ao mostrar quem é, e como é, o escritor oferece uma amizade verdadeira e leal, em que pode ser que aconteça de magoar com sua rudeza, mas jamais com a falsidade ou com a falta de solidariedade. Quantos amigos você tem? Que tal um cartão de visita?

Rafael Ciarlini
Enviado por Rafael Ciarlini em 02/11/2014
Código do texto: T5020413
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