BAIANISMO - VERTENTE MUSICAL I

Do livro POR UMA HUMANIZAÇÃO DA POLÍTICA BRASILEIRA.

“ No seu mistério lírico e na sua trágica pobreza, a verdade e a lenda

se confundem(na Bahia)”. JORGE AMADO.

É possível que o primeiro verso musicado esboçador do baianismo tenha sido o construído por Pedro Sá Pereira, cantado e gravado por Francisco Alves em 1928:

“A água de coco tem feitiço na Bahia”

Este verso chama a nossa atenção e forçam-nos a refletir e a perguntarmos-nos: só a água de coco gerada na Bahia “tem feitiço” ou também “tem feitiço” aquela que é bebida no lugar que conhecemos como Bahia, simplesmente, podendo ter sido a água de coco formada em qualquer região do Brasil? Neste caso, qualquer água de coco, pode “ter feitiço”, desde que seja bebida na Bahia, porque o feitiço está tão somente na Bahia-lugar?

Entretanto, “baianisticamente”, somente aceito que só a água de coco produzida na Bahia “têm o baiano feitiço”.

E creio ter sido este o começo da formação da vertente do baianismo musical.

Em 1929, J. Aymberé construiu um verso, que também foi cantado e gravado por Francisco Alves:

“ Bahia! Bahia! Quando o sol nasce já tu és toda alegria”

Feitiço e alegria; água de coco e sol, todos especiais.

Com certeza, nestas construções musicais agregadoras de cinco palavras simples e comuns – feitiço, alegria, coco, água e sol – teceu-se, musicalmente, a base primeira do baianismo, que ligeiramente se expandiu pelo “brasileiro Brasil”, daquele belo tempo, cativando e contagiando todos os baianos e visitantes, enlevando-os e balançando-os, musicalmente, e rapidamente envolveu o Brasil e algumas partes do mundo, levado pelas ondas “hertezianas”, que as emissoras de rádio - o modismo da época - transportaram.

Quando Ary Barroso, o mais baiano dos mineiros “musicadores”, ou talvez o melhor mineiro “sonorizador” das belezas, paisagens, retratos, visões, tons, texturas e gestos baianos, surgiu no cenário musical brasileiro, consolidou este baianismo “cantático”:

“Quem quiser conhecer o Brasil brasileiro, meu bem, tem que uma vez ir à Bahia.”

Este verso é de Ary Barros, e foi gravado em 1931 pela dupla Sylvio Caldas e Elisa Coelho, e por mais outros intérpretes na mesma época.

Aqui irmanamos as palavras: Feitiço, alegria, coco, água, sol e mais a redundante expressão gramatical “brasileiro Brasil”, além da Bahia-lugar bem expresso.

Também em 1931, naquele já brilhantemente rico mundo artístico nacional, entra, de maneira garbosa, suave, magistralmente penetrante e convincentemente feliz, o nosso docemente louvado Dorival Caymmi, a balançar almas, emoções, sentimentos , imaginações e quereres, com seus gostosos ritmo e gingado, especialmente construídos para embalar e para envolver de delícias alegres e ternos afetos o nosso baianismo, pelas vozes dos “Anjos do Inferno”, um dos nossos magistrais conjuntos musicais daquela época de ouro, e tantos outros intérpretes:

“ Quem vai ao Bonfim, minha negra, nunca mais quer voltar.

Muita sorte teve, muita sorte tem e muita sorte terá.”

E, nesse intervalo de tempo, nosso Caymmi trás-nos a crença e a segurança, mostrando-nos e convencendo-nos desta certeza que muita gente ainda duvidava.

Caymmi entrega e integra ao baianismo os elementos fé e convicção, fortemente implícitos, o primeiro, representado contundente e explendidamente pela Igreja e pelo alto do Bonfim - o lugar, ponto e fonte, hoje inesgotável e sempre revigorada, do nosso baianismo; e o segundo pela insistência da vocábulo “sorte”.

E, limpando, purificando, retocando e consolidando o nosso baianismo musicado, o exuberante emagistral Caymmi, quis, de maneira mais nítida, sacudir corações e sensibilidades por todos os espaços, tempos e de todos os modos possíveis, reais e imaginários, jogando por sobre terras, mares, planícies, planaltos e montes, os líricos e tocantes versos:

“ Nas sacadas dos sob rados da velha São Salvador

Há lembranças de donzelas, do tempço do Imperador.

Tudo, tudo na Bahia faz a gente querer bem.

A Bahia tem um jeito que nenhuma terra tem.”

Nada pode (ter de) nem ser mais melodiosamente romântico nem evocador de lindas, saborosas e doces lembranças que

“ Nas sacadas dos sobrados...há lembranças...”

Com estas palavras, Caymmi “reabriu as cortinas do passado inocente e feliz”, mostrou retratos, cenas, momentos, texturas, sabores, odores e porções

do mais apetitoso mel que a Bahia,

com elegância encantante,

requinte, polidez

e carinho aconchegante,

tão bem sabe oferecer a todo filho,

habitante ou visitante,

a qualquer hora ou instante.

“Tudo, tudo na Bahia faz a gente querer bem”.

Neste verso, Caymmi não só estrutura e vinca os horizontes do baianismo; ele também, com suavidade e apurado bom gosto, constrói e oferece-nos a mais alegre e bem tecida universidade e o próprio mundo do baianismo, sempre bem carregados das mais deliciosas e envolventes magias, exaladoras das especiais saudades nascidas dos mais arraigados afetos.

Talvez, neste bem simples verso

“ A Bahia tem um jeito que nenhuma terra tem”

estejam a explodir todos os encantos e maravilhas distintamente especiais, que a Bahia sempre tem para mostrar e oferecer a todos.

Revigorando os elementos “feitiço”, “fé-Senhor do Bonfim”, em 1938, Herivelto Martins e Humberto Porto, ampliam-nos, ao tempo em que introduz e valoriza um novo elemento – o negro, nos versos cantados pelo marcante conjunto Trio de Ouro com ou sem a magistral Dalva de Oliveira:

“ Na Bahia o negro macumba noite e dia

fazendo muamba, tirando quebranto...”

Estes elementos, integrantes essenciais, – o negro, muamba, quebranto – entram bem forte no trajeto e na esteira do baianismo, arrastando consigo seus segredos e suas magias; seus feitiços, suas danças e seus ritos; suas crenças com seus santos, externados na religião-arte do candomblé, com suas rezas musicadas e coreografadas.

“Terra de crença, lá nasceu a esperança

E a fé tão grande assim fez morada no Bonfim.”

E Caymmi, ternamente, enriquece este contexto com crença e esperança; fé e conforto espiritual, inclusive em agradecimentos pelo usufruído de bom no passado, presente e futuro, pela alegria que se pode gozar no agora e pela certeza da felicidade-prazer futura. Aliás, agradecer é a mais sublime prece-arte, que tem o tocante dom-poder de gerar o mais envolvente, alegre e doce conforto, tanto espiritual como mental.

Em 1941, pela voz de Fernando Alvarez e mais tantos outros intérpretres, reiterando a magia e o encantamento do baianismo, Ary Barroso, em “Os quindis de Yáyá” volta a pincelá-los, espraiá-los e a fortificá-los:

“ Tem música e beleza...

Na prata da lua cheia

No leque dos coqueiros

No sorriso das crianças”

E, em 1942/1943, Chianca de Garcia e Vicente Paiva, na voz de Heleninha Costa e mais tantas outras estrelas do mundo musical, exaltam;

“E há nesse todo natural que a baiana tem a graça da Bahia”

Outra vez Ary Barroso, pela voz de Sylvio Caldas, escreve vigoroso, como se fora em pedras:

“ Bahia, terra da felicidade”

Em 1947, Denis Brean, na voz de Francisco Alves e outros astros, às escâncaras, escandaliza para todos:

“Eu sou amante da gostosa Bahia, porém

Para saber eu segredo serei baiano também...”

“Terra mais linda não há.”

“Sou poeta e não quero ficar longe da sua magia”.

Também em 1947, Caymmi, por tantas vozes, fixando e edificando definitivamente com cimento, pedra e ferro – e para sempre - ao tempo em que quase nos eleva aos céus e nos conduz pelas cativantes entranhas das mais inesgotáveis alegrias, traz-nos as paradisíacas saudades, inebriando nossos olhos, lábios, sentimentos, corações e imaginações, de emoções e de deliciosas lembranças, cultivadas no jardim da mais doce e mais pura saudade-felicidade:

“ Ó vento que faz cantigas

Nas folhas, no alto do coqueiral

Ó vento que ondula as águas

Eu nunca tive saudade igual.

Me traga boas notícias

Daquela terra, toda manhã

E jogue uma flor no colo

De uma morena em Itapoã”

Caymmy, eficientemente, com seu afetuoso e prazeroso modo de transformar em docuras suas visões, imaginações, ideações, palavras e musicalidades de brisas em balanços sincronizados, sanciona, promulga e publica, o baianismo, em seu viés musical, matizando-o com azul, branco, dourado, prata e verde, do mar, do céu, das nuvens, do sol, da lua e da mata, aguçando-lhe a sensibilidade, a sutileza, a doçura e o tom da alegria, como se o pincel utilizado pudesse avivar e regular o som, traçar as bases e nuances da doçura, delinear os limites e as tonalidades emocionais da sensibilidade e angular a sincronicidade quase sublime da sutileza, como um imponente imperador do reino do amor, da paz, da delícia, da memória e da saudade, este nosso baianismo, instituindo-o como lei irrevogável e eterna, até que exista o último baiano no planeta terra e no universo galaxial.

“Coqueiro de Itapoã... coqueiro....

Saudade de Itapoã... me deixa.”

E, já recentemente, em 1963, Herivelto Martins e Chianca de Garcia, por tantas outras belas vozes, especialmente a da marcante e insubstituível voz de Dalva de Oliveira, voltam ao cenário para re-ratificar o baianismo, este encantado, doce e esplêndido gerador de magias, dengos, prazeres e feitiços, nestes versos:

“ Ó Bahia da magia, dos feitiços e da fé”

E arrematam-no, consolidando-o:

“Cidade da tentação onde o feitiço impera”