Lagoa de pedra

LAGOA DE PEDRA

TIMBAÚBA DO GURJÃO – PARAÍBA

(HOJE GURJÃO)

- Local onde Antônio Silvino matou o tenente Maurício -

Nasci e cresci ouvindo minha mãe contar esta história, tantas vezes, que já tinha plasmada a visão daquela “batalha” dentro da minha cabeça de criança, e que hoje, já metido a velho e a besta, resolvi desvendar esta epopeia caririzeira.

Lagoa de Pedra ficava dentro de uma propriedade chamada Nova Vista, município de São do Cariri, (na época do evento, hoje Gurjão) que fora recebida como herança para o meu avô materno, Raulino de Medeiros Maracajá, nascido na fazenda Arara, município de São João do Cariri/PB 15/09/1879 – 21/11/1961 - Major Cirurgião da 11ª. Brigada de Infantaria da Guarda Nacional/1910. Nova Vista era um mundo de terras que se estendia até fronteiras de vários municípios. Após ser desmembrada para fins de doações aos genros, ainda é grande suficiente para se manter sozinha. A parte onde fica a Lagoa de Pedra pertence hoje a pessoas fora da família, lado direito da Estrada de Gurjão a fazenda Pendencia.

Lá pelos idos do século passado, a fazenda acima referida era passagem do cangaceiro Antônio Silvino (27/11/1875 – 30/07/1944), como também das tropas militares que o perseguiam (Volantes).

Num certo dia, de repente, aparece no terreiro da casa uns dois “cabras” que vinham à frente farejar inimigos ou cheiro de traição. Comprovada a certeza da segurança, anunciava a presença próxima do seu comandante o Príncipe dos Cangaceiros. Solicitava então em nome dele a permissão para abrigo e refrigério das caminhadas sobre as trilhas espinhentas e áridas. Euclides da Cunha já descrevia a dificuldade dos sertanejos andarem pelos Sertões e Cariris desse modo: “... a caatinga o afoga; abrevia-lhe o olhar; agride-o e estonteia-o; enlaça-o na trama espinescente e não o atrai; repulsa-o com as folhas urticantes, com o espinho, com os gravetos estalados em lanças; e desdobra-se-lhe na frente léguas e léguas, imutável no aspecto desolado: árvores sem folhas, de galhos estorcidos e secos, revoltos, entrecruzados, apontando rijamente no espaço ou estirando-se flexuosos pelo solo, lembrando um bracejar imenso, de tortura, da flora agonizante...”.

Na impossibilidade de dizer um não, meu avô, colocava a sua vivenda à disposição do guerrilheiro matuto, enquanto minha avó Virginia de Queiroz Maracajá (Dona Vinú) 18/01/1888 – 05/06/1950, tentava esconder as filhas – eram todas crianças – debaixo de enormes tachos de bronze ou de caçuás e balaios. Mas, não tinha jeito, enquanto se entretinha preparando a alimentação para o bando, algumas delas escapulia e ir para a sala da frente ver os cangaceiros: Minhas tias eram: Severina (Bibi) nascida em 1906, Alice nascida em 1908, Analice nascida em 1912 e minha mãe Nícia nascida em 1913.

Chegava e assumia com ordem, disciplina e respeito. Pedia arrancho (com direito apenas a água, comida e descanso por pouco tempo) sentava-se a mesa (existente ainda na mesma fazenda) com os donos da casa e alguns dos seus lugares-tenentes, o resto: uns ficavam de atalaia e os outros esperavam para a segunda mesa.

Minha avó possuía, junto a um prédio ao lado direito da casa afastado uns duzentos metros, onde funcionava uma máquina a vapor (locomóvel) para prensar algodão; um pequeno engenho de rapadura; uma bodega, onde vendia para os moradores da fazenda e aos poucos vizinhos; atavios e outros mangaios para as emergências do dia a dia: botões, linhas, agulhas, cortes de tecidos baratos: mescla, chita, madrepolão, morim, brim; querosene Jacaré, sabão, velas, fósforos, cornimboque, chocalho, rapadura, carne de charque, bacalhau, banha de porco em tonel de madeira, fumo de corda, material para caça: chumbo, espoleta e pólvora em pequenas quantidades para a chamada espingarda bate-bucha, queijo de coalho e de manteiga feito em prensa de miolo de aroeira, manteiga da terra, pinicos, pratos, bacias e xicaras de ágata, e o diabo a quatro.

Após saciarem a fome e a sede, iam ao armarinho, de dois em dois, escolhiam as mercadorias de que necessitavam e voltavam à casa grande onde Antônio Silvino estava descansando e lhes dava uma ordem: paguem tudo o que tiraram. Logicamente minha avó, recebia sem conferir se realmente estava tudo certo.

O valente cangaceiro, de barriga cheia, sentava-se numa cadeira muito simples feita de madeira, com assento de tecido grosso listrado, chamada espreguiçadeira (ainda existente na mesma propriedade, hoje de Juarez (falecido) e Nise Maracajá Coutinho, netos do velho Raulino). Onde cochilava, tendo sempre uma das minhas tias, ao joelho, não sei se por cortesia ou para sua proteção contra qualquer traição de alguém de dentro da casa.

Quando o tempo da madorna terminou, entrou um cabra todo paramentado e o chamou:

- Capitão, o sol tá se bandeando por poente.

Levantou-se, pediu água, pediu também para lavar o rosto; que imediatamente alguém da cozinha trouxe uma bacia de ágata branca meio d’água e uma toalha bem alvinha. Agradeceu a todos educadamente e chamou meu avô para uma conversa fora da casa.

- Gato! – Era assim que tratava meu avô - o danado do tenente Maurício – comandante da volante e ferrenho perseguidor de cangaceiros, principalmente de Antônio Silvino, que por vezes se fazia acompanhar do famoso soldado sangrador (João da mancha) - vem aí com os seus macacos pisando no meu rastro, desde o brejo, Sei que logo mais aparece por aqui, diga que não vá atrás de mim, pois vou me entrincheirar lá na Lagoa de Pedra, e hoje mesmo, desgraço com ele e sua gente safada. Nunca fiz mal a ele para viver me perseguindo e me dando um trabalho dos diabos.

Como era de seu costume sempre que saia de um lugar levava sempre alguém importante da família ou mesmo o dono da casa para se sentir protegido de alguma incidente de percurso e ajuda-lo atravessar mais facilmente a caatinga traiçoeira. Passaram pela porteira ao lado da casa, beirando um pequeno açude em direção ao cercado dos Angicos, sempre procurando um caminho mais curto. Andaram uma meia légua e aí despachou meu avô de volta. Macaco velho não bota a mão em cumbuca. Não confiava em ninguém e não era daquela vez que ia abrir o jogo pra estanho, bem que poderia mudar de destino mais adiante. O velho caririzeiro voltou triste e desconfiado que de fato fosse ter outro encontro desagradável com a temida volante. Quem dava guarida a cangaceiros sempre sofria na mão da volante.

Dito e feito. Não demorou muito, chegou à volante chefiado pelo alferes João Maurício da Costa, (não encontrei muita referencia sobre este tenente, apenas o cita José Lins do Rego e José Américo) - homem destemido, desrespeitador e cruel fazendo uma algazarra dos diabos, que apesar de serem militares, não mantinha tanta disciplina como os cangaceiros. (Existiam outros oficiais da volante que o perseguiam terrivelmente).

Recebeu o recado do velho Maracajá, se abasteceu do que queria e antegozando uma vitória disse:

- Vai ver hoje quem é que morre se não é aquele bandido desgraçado e seus filhos das putas.

Meu avô, o acompanhou até certa parte do caminho, acompanhado do rastreador oficial, - gente que Antônio Silvino tinha uma raiva mortal; - como fizera com o Rifle de Ouro. Claro, forçosamente e voltou cabisbaixo e triste, pois sabia que dentro de suas terras ia acontecer uma grande desgraça. Era um período de seca grande no Nordeste já tinha dizimando e acabando tudo desde 1808 em Pernambuco e agora atravessava para a Paraíba em 99. - (Chegamos à conclusão da visita, fazendo uma estimativa pela idade de minhas tias, e pela seca contada pelo major Raulino, avaliamos então que: Antônio Silvino fora preso em 1914). Minhas tias tinham na época de sua derrota: oito, seis, dois e minha mãe um ano respectivamente; Logicamente esse fato se deu depois de 1906 e antes de 1914 ou precisamente entre 1908/1909.

Apeou-se e do cavalo, amarrou numa estaca próxima de uma sombra, sentou-se na dita espreguiçadeira que a colocou no terraço e ficou com os olhos semicerrados e as “orelhas em pé”, aguardando qualquer som que não fosse das rolinhas fogo-pagou que nesses dias viviam bicando e namorando pelo terreiro pedregoso, os canários da terra que faziam ninhos no pé da figueira (Fícus Benjamim) onde até hoje se ouve seus trinados, ou o martelar do seu ferreiro de estimação numa gaiola acima de sua cabeça. Mais adiante num velho pé de aroeira galos de campina, bem-te-vis, anus, Papa sebo, e mais de uma dezena de pássaros todos aproveitando a sombra acolhedora, fugindo do sol escaldante que naquela época era encarado como o astro destruidor que não deixava nada crescer; pulando de galhos em galhos se desmanchava em sons diversos.

Até cochilou, pois o calor no começo da tarde dava uma moleza danado no cabra depois da bóia. Pulou da cadeira ao ouvir os primeiros estampidos meio abafados, e distantes. (Alguns contam que o tiroteio foi tão grande que se formou no horizonte uma espécie de fumaça). O local marcado para a peleja ficava a mais ou menos uns seis quilômetros em linha reta.

Selou o cavalo Gaúcho, e danou-se pra lá, andou pelo menos vinte minutos, cautelosamente, pois não sabia o que iria encontrar pela frente. Ao se aproximar do campo de batalha o que viu foi de estarrecer e partir qualquer coração: um cabra negro (talvez Serrote) do bando ainda batendo com uma pedra na cabeça do tenente Maurício, mais a frente noutro lajedo um soldado colocando um fósforo aceso na mão de um colega nos cirros da morte, gritos e lamentos por todos os cantos. O desmantelo era grande, rapidamente tudo logo se acalmou com sua presença. Começou logo a socorrer os mais feridos com palavras e a coloca-los na sombra ou um lugar mais confortável e a promessa de trazer ajuda rapidamente. Os homens do Silvino, feridos ou não, caíram dentro da caatinga e desapareceram, fugiram como bodes brabos, ficando apenas os soldados ainda escondidos, mortos e feridos gravemente. O tenente Mauricio em cima de um lajedo com a cabeça esfacelada era observado pelos soldados estarrecidos que choravam e soltavam pragas e impropérios contra o satanás do cangaceiro. Os soldados sem o seu valente comandante pareciam perdidos como cego em tiroteio. Fora uma derrota imensa para a volante, a emboscada!

O terreno da lagoa é um verdadeiro cenário de desmantelo, era como se algum doido tivesse jogado pedras de todos os tamanhos do alto sem nenhum compromisso ou tentando feri algum animal invisível dentro daquele baixio; onde, nos tempos chuvosos, vira uma lagoa, e quando o sol abrasador chupa todas suas águas, torna-se um local cheio de rachaduras e de difícil caminhar e as pedras/rochas quentíssimas. Novamente recorro a Euclides, “... no enterroado do chão no desmantelo dos cerros quase desnudo, no contorcido dos leitos secos dos ribeirões efêmeros, no constrito das gargantas e no quase convulsivo de uma flora decídua embaralhada em esgalhos – é de algum modo o martírio da terra, brutalmente golpeada pelos elementos variáveis, distribuído por todas as modalidades climáticas. De um lado a extrema secura dos ares, no estio, facilitando pela irradiação noturna e perda instantânea do calor absorvido pelas rochas expostas às soalheiras, impõe-lhes a alternativa de alturas e quedas termométricas repentinas; e daí um jogar de dilatações e contrações que as disjunge, abrindo-as segundo o plano de menor resistência. De outro, as chuvas que fecham, de improviso, os ciclos adurentes das secas, precipitam estas reações demoradas”.

Vendo que não podia mais ajudar os feridos, meu avô, avisou que ia até a IFOCS (Inspetoria Federal de Obras Contra as Secas, pertencente ao Ministério da Agricultura, hoje Fazenda Pendência, pertencendo ao Governo do Estado - EMEPA), distante uns três quilômetros pedir ajuda através de um telefone a pilha movido à manivela, para a delegacia da cidade de Soledade.

Depois de mais ou menos um século do ocorrido, eu e o Dr. Antão Ouriques de Farias; - seus avos eram primos dos meus, - advogado, historiador, pesquisador e escritor. Mora atualmente em São Paulo, e que de férias, faz passeios pelo Cariri Velho, fomos redescobrir o local. Saímos de Gurjão em direção à fazenda Pendencia, apenas com a informação de um morador que fazendo um bico com a boca disse: é logo ali na primeira porteira da direita onde se avista uma pequena casa daqui há um bom pedaço. (chamam esse gesto de mostrar distancia com a boca de: légua de bico). Sabia que não era assim. Primeiro passaria pela última morada dos meus avós maternos. Fazenda São Domingos, onde outrora tive férias inesquecíveis, na idade de ouro entres os cinco ou seis anos. Daí em diante não encontramos mais vivalma. Esbarramos na tal cancela e com muita luta conseguimos permissão para entrar. Danamos o velho Monza de trilha adentro, desviando tocos, plantas retorcidas e pedras, dessas que parece brotar de dentro da terra e não tem homem nenhum que consiga removera-las; até chegarmos à beira da Lagoa de Pedra. Passamos um bom tempo descansando do calor escaldante e verificando se não havia alguma assombração, pois o silêncio era profundo e sepulcral.

Passamos quase meio dia por lá, olhando as pedras, as locas, procurando marcas de balas nas pedras, ou encravada nos paus, tentando sentir ou ouvir algum gemido de alma penada ou zumbido de bala de rifle 44. Procurávamos qualquer coisa: alguma casca de bala, mancha de sangue nas pedras ou algum indício de gente por lá. O vazio era total, parecia mesmo um cemitério. Não ouvimos e nem vimos qualquer ser vivente por perto. Procurávamos por aves, cobras, preás, urubus, calango ou lagartixa, nem piolho de cobra avistamos. Acho que o tiroteio foi tão intenso que espantou os bichos até hoje.

Grijalva Maracajá Henriques