A METAFICÇÃO HISTORIOGRÁFICA NA LITERATURA GOIANA: PÃO COZIDO DEBAIXO DE BRASA, DE MIGUEL JORGE

RESUMO

Miguel Jorge em seu romance Pão cozido debaixo de brasa, de 1997, apresenta, através das personagens e da narrativa, as características pós-modernas que Linda Hutcheon discute em sua obra Poética do Pós-modernismo, de 1991. Esse artigo tem como objetivo, analisar tais aspectos na narrativa ficcional do autor, demonstrando os elementos da polifonia, da verossimilhança e da intertextualidade presentes na obra, a partir da relação entre história e ficção que permitem com que o autor transfigure fatos históricos em narrativa ficcional através da referencialidade histórica e da denúncia social emitida pelas vozes dos personagens, dois traços característicos da metaficção historiográfica.

Palavras-chave: Pós-Modernidade, Metaficção Historiográfica, Miguel Jorge, Literatura Goiana.

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Pão cozido debaixo de brasa, publicado em 1997, é o título do romance de Miguel Jorge que encerra uma trilogia com temática de referencialidade histórica goiana que começou com Veias e vinhos (1985) e Nos ombros do cão (1991), obras em que o autor utiliza de fatos históricos para composição da narrativa ficcional.

Veias e Vinhos tem o enredo baseado na chacina da família Mateucci, ocorrida na Rua 54, no centro da cidade de Goiânia em 1957. Em Nos ombros do cão, a história parte do caso do líder estudantil do Lyceu de Goiânia, Marcos Antônio Dias Batista, que em maio de 1970, com apenas 15 anos de idade, foi perseguido pela ditadura militar. Seu corpo ainda hoje se encontra desaparecido. Já Pão cozido debaixo de brasa, objeto de estudo deste artigo, tem como temática referencial, o desastre radiológico ocorrido na capital goiana no ano de 1987.

Miguel Jorge, romancista, poeta, teatrólogo e contista, nasceu em Campo Grande, Mato Grosso do Sul, no dia 16 de Maio de 1933. Mudou-se ainda na infância para Inhumas, Goiás. Formou-se em Farmácia e Bioquímica pela UFMG e em Direito e Letras Vernáculas pela UCG (atual PUC Goiás), onde também lecionou Literatura Brasileira. Foi um dos fundadores do Grupo de Escritores Novos (GEN), importante movimento literário da capital goiana, presidindo-o por duas vezes. Também por duas vezes, foi presidente da União Brasileira de Escritores (UBE), seção Goiás. Dirigiu o Conselho Estadual de Cultura e é integrante da comissão de críticos de arte da ABCA e AICA. Ocupa a oitava cadeira na Academia Goiana de Letras (AGL). É autor de várias obras literárias, transitando entre os gêneros lírico, narrativo e dramático. Miguel Jorge também recebeu vários prêmios importantes, dentre eles, o Prêmio da Associação Paulista dos Críticos de Arte, pelo romance Veias e Vinhos e o Prêmio Machado de Assis da Biblioteca Nacional, pela obra Pão Cozido Debaixo de Brasa.

O autor é conhecido no mundo literário pela sua elaboração artística e pela complexidade de suas narrativas. Em O espaço da crítica (1998), Moema de Castro e Silva Olival, afirma que Miguel Jorge é um intelectual extremamente criativo, trazendo em suas obras, os traços da literatura pós-moderna, com foco para os sentimentos e aflições do homem de seu tempo:

Miguel Jorge, ficcionista, poeta, dramaturgo, ensaísta, mostra-se escritor sintonizado com seu tempo histórico, com o homem da era cibernética, de cuja alma angustiada é um grande analista, tornando-se, no seu intento de expressá-la, investigador e pesquisador da linguagem literária da modernidade. (OLIVAL, 1998, p. 181).

Além de traços psicológicos, Miguel Jorge apresenta com muita frequência em suas obras, a preocupação e a denúncia social, como afirma Vera Lúcia Alves Mendes Paganini em Literatura e História. Gênero discursivo e intertextualidades. Miguel Jorge. (2008):

[...] a obra de Miguel Jorge não deve ser enquadrada neste ou naquele gênero, mas o poeta/ficcionista possui um estilo muito particular de se apropriar dos recursos pós-modernos e utilizá-los para realizar seus interesses; a posição cronotópica do autor possibilita defini-lo como alguém preocupado com seu tempo-lugar, e com as questões político-sociais, levantadas no início do trabalho; as alegorias, metáforas e surrealismos realizam um processo de apagamento do sujeito nos textos e possibilita que o que seja dito cumpra seu papel sem correr riscos desnecessários. (PAGANINI, 2008, p. 8).

Grande parte de seus personagens são caracterizados por figuras que vivem à margem da sociedade, denunciando as mazelas sofridas pelos infortunados de um mundo injusto. Em Pão cozido debaixo de brasa, romance dividido em duas narrativas e em três ciclos que se passam no mesmo universo temporal e local, se entrecruzando, conhecemos personagens com tais características, o que Linda Hutcheon (1991) define como “ex-cêntricos”, figuras periféricas que adotam a ótica da pluralidade e rompe com o centro, apresentando o discurso dos marginalizados que tentam sobreviver diante da injustiça de uma realidade social que os exclui, como podemos perceber no trecho abaixo, do segundo núcleo do romance, protagonizado pelas personagens Felipa, Nec-Nec e João Bertolino:

Resta-lhe o pensamento de que poderia vender aquelas sucatas e comprar pão e leite para as crianças. [...] Havia cheiro de gente, de corredores, de mijo, de hospitais, de escadas, de neons, cheiro de tinta. Havia cheiro de corpos. [...] Por Deus, falou João Bertolino, este é o nosso mundo. (JORGE, 2004, p. 57).

A partir da reflexão da narrativa de Miguel Jorge, das personagens do romance e da intertextualidade e relação que o autor faz entre fatos históricos e ficção, este artigo tem por objetivo, apresentar os traços característicos da metaficção e metaficção historiográfica, com base nas considerações que Linda Hutcheon (1991), Hayden White (1995) e outros teóricos fazem em relação à metaficção e meta-história, visando corelacionar trechos do romance com o argumento teórico dos autores em torno da narrativa metaficcional, buscando assim, demonstrar os traços pós-modernos na obra de Miguel Jorge, através dos elementos da verossimilhança, do dialogismo, da intertextualidade e da polifonia. Comecemos com uma breve apresentação do romance.

AS NARRATIVAS DE PÃO COZIDO DEBAIXO DE BRASA

Na primeira história, temos como protagonista o personagem Adão, rapaz de dezessete anos que possui forte ligação com a mãe, Ziza. Tal relação é de extrema intimidade, quase incestuosa, como se pode perceber na passagem em que Ziza dá banho no rapaz, mesmo estando ele já com quinze anos de idade:

- Nada como um bom banho para esfriar a cuca, hein, Adam? (...) As mãos ágeis de Ziza detinham-se num ponto [...] Aquelas mãos, de indulgente delicadeza, escorriam rápidas pelo entremeio das nádegas, pelas virilhas, pelo saco. (JORGE, 2004, p.22).

Ziza tem na figura do filho, um objeto de desejo quase puro, carregado daqueles cuidados que uma mãe deve ter com seu bebê, que consequentemente estimula sensações prazerosas e que faz com que a criança tenha na figura materna, seu primeiro objeto de desejo. Ela o mima e o trata como um bebê desprotegido. Realmente, Adam (forma como Ziza se dirige ao filho Adão), apesar da idade, é um jovem um tanto quanto infantilizado.

O desejo insidioso de Ziza é correspondido por Adão e este sente ciúmes da relação da mãe com o padrasto Yussef, como fica claro no trecho abaixo:

[...] agora é tarde demais. Os sentimentos de Yussef juntaram-se aos de Ziza. A pele de um grudada à pele do outro. E eu fico sozinho a contemplá-los na distância, ouvindo surdas gargalhadas e os gemidos de Yussef se espalharem pelo quarto, exalando um forte odor de gozo. (JORGE, 2004, p.75).

Pode-se perceber que Miguel Jorge busca na psicologia freudiana e na tragédia edipiana, inspirações para a construção do núcleo familiar das personagens deste primeiro arco do romance, representando essa intertextualização na relação entre Adão, Ziza e Yussef.

As coisas mudam quando Adão, seduzido por sua professora Leona, treze anos mais velha, inicia sua vida sexual em um caso extraconjugal, uma vez que Leona é casada. Apaixonado, Adão é convencido a assassinar Offir, marido de Leona.

As referências entre sagrado e o profano, surgem a todo instante na primeira narrativa do romance. A começar pelo nome do protagonista, que remete ao primeiro homem criado por Deus no livro de Gênesis. Da mesma forma, no segundo núcleo desta primeira história, quando Adão é atraído por Leona até o chalé perto de sua casa, onde o casal mantém relações sexuais, esta pede para que o jovem a chame de Lili: “(...) – E quando perguntarem se eu sou Leona, diga-lhes que eu sou Lili, a que é capaz de todas as ações” (JORGE, 2004, p. 177). Lili é uma alusão a Lilith, a primeira mulher de Adão, que veio antes de Eva e que na sagrada escritura é representada como demônio. Livros apócrifos afirmam que no início, Deus criou Adão e Lilith, ambos do pó. Lilith então se rebelou contra seu criador por se negar a ser submissa ao seu companheiro Adão, decidindo assim, abandonar o Jardim do Éden. Solitário e muito triste, Adão suplicou por uma companheira. Atendendo a seu pedido, Deus criou Eva a partir de sua costela. Os traços característicos de Leona/Lili nos levam a crer que a personagem é um misto de Lilith e Eva, levando o jovem Adão ao pecado e à perdição.

A bíblia sagrada, os textos apócrifos, a tragédia de Édipo e a psicologia freudiana são intertextualidades que o autor utiliza para a elaboração das personagens desta primeira narrativa do romance, como na passagem que marca a conquista de Adão por parte de Lili/Leona: “- Come Adão. Era uma oferenda. Falava amaciando as palavras. - Esta rosa vai abrir o seu corpo para a vida.” (JORGE, 2004, p.146). Essa parte é uma clara alusão à passagem bíblica em que Eva convence Adão a provar a maçã, o que leva ambos a serem expulsos do paraíso.

No segundo arco, temos como protagonistas as personagens Felipa, João Bertolino e Nec-Nec, catadores de papel e sucatas que caminham a procura da mágica “luz azul” que os levará para o “terceiro milênio”, que segundo Felipa, é uma espécie de paraíso onde homens e mulheres miseráveis como eles, viverão felizes para sempre. Felipa e os outros catadores são contaminados pelo resíduo radioativo deixado nos escombros de um hospital abandonado devido o descaso das autoridades da cidade que cerca os muros do jardim onde vivem Adão, Leona e os outros personagens da primeira narrativa.

Além das intertextualidades mencionadas em relação ao primeiro núcleo do romance, Miguel Jorge traz também traços místicos na figura da visionária Felipa que profetiza o poder mágico da “luz azul” a Nec-Nec e João Bertolino. Estes dois personagens possuem traços animalescos que metaforizam sua desumanização e são claramente artifícios utilizados pelo autor para fazer uma denúncia social. A obstinação da personagem Felipa lembra, de forma verossímil, o fascínio que Devair Ferreira, dono do ferro velho que comprou a cápsula que continha o elemento químico, tinha pelo brilho do Césio, o que fez com que ele compartilhasse e contaminasse tantas pessoas. Felipa sonha a todo instante com o terceiro milênio, lugar onde ela e os outros “mutantes”, os “ex-cêntricos” do qual fala Hutcheon (1991), serão felizes. Felipa e os parceiros acabam encontrando o Césio 137, abandonado no terreno baldio da Santa Casa de Misericórdia. Miguel Jorge utiliza assim, fatos históricos sobre o maior acidente radioativo ocorrido no Brasil e o segundo maior no mundo para a construção do enredo da segunda narrativa do romance. A tríade Felipa, Nec-Nec e João Bertolino pensa ter encontrado algo que os levaria para o tão desejado terceiro milênio. Todavia, só encontraram sofrimento e morte.

INTERTEXTUALIDADE E VEROSSIMILHANÇA

Como já foi mencionado, Miguel Jorge utiliza de intertextualidades para a elaboração tanto das personagens quanto do enredo do romance.

O termo intertextualidade foi criado na década de 1960 por Júlia Kristeva, a partir das formulações teóricas de Mikhael Bakhtin. A autora, a partir dos conceitos de dialogismo e polifonia, afirma que “todo texto se constrói como um mosaico de citações e é absorção de outro texto” (KRISTEVA, 1974, p. 69). Para Bakhtin (1981), a coexistência de múltiplas vozes que dialogam em um processo de interatividade, criam pontos de vista distintos sobre um mesmo determinado tema. Cada texto nasce do diálogo com outros textos.

Na obra Pão cozido debaixo de brasa há vários pontos em que se encontra a presença da intertextualidade. Logo no prefácio, Sébastien Joachin diz que “Somos todos estrangeiros em busca de uma terra ou de um céu”. Adão e Leona buscam seu paraíso na terra. Felipa, Nec-Nec e João Bertolino o buscam no “terceiro milênio” através da famigerada “luz azul”. Em ambos os casos, temos o mito do paraíso que, apesar de se configurar de forma diferente para as personagens, tem a mesma finalidade: para Adão e Leona, viverem em paz seu amor proibido; para Felipa, Nec-Nec e João Bertolino, deixarem de viver uma vida de miséria e dor.

Hutcheon (1991) afirma que o termo intertextualidade pode necessitar de ser substituído por interdiscursividade, pois este abrange várias formas de discurso como a literatura, a história e muitas outras utilizadas pela ficção. De acordo com Hutcheon (1991, p. 160), todas as questões relativas à intertextualidade e à referencialidade subsidiam as “relações problematizadas entre a história e a ficção”.

Quanto à verossimilhança, a mesma fica evidente na forma como Miguel Jorge retrata os fatos históricos. Apesar de não utilizar os nomes reais dos envolvidos no acidente com o Césio 137, conseguimos, através dos indícios verossímeis, notar do que se trata o enredo da segunda história do romance. Miguel Jorge utiliza alguns dos espaços reais, como os entulhos da antiga Santa Casa da Misericórdia da cidade de Goiânia (onde atualmente está o Centro de Convenções), além de ruas e avenidas como as avenidas Tocantins e Araguaia:

Onde você está, João Bertolino?

Na Avenida Araguaia. E você, Felipa?

Na Avenida Tocantins.

Eu desço a Araguaia.

Eu subo a Tocantins.

Eu estou sem os remos. Remo com os pés nesta grande avenida. (JORGE, 2004, p. 91)

Assim como os nomes dos verdadeiros envolvidos no desastre radiológico, Miguel Jorge também não se refere diretamente ao objeto radiativo como “Césio”. Na maioria das aparições do elemento na narrativa, ele é denominado apenas como “luz azul”. Somente no seguinte trecho que o narrador se refere ao elemento com sua real nomeclatura: “[...] E a cidade punha-se de pé, amedrontada, e podia-se ler, para um lado e para outro dos muros, algumas frases pixadas durante a noite: – Césio 137 – outubro – 1988. A luz que mata.” (JORGE, 2004, p. 205).

Mais uma vez, ao adjetivar o Césio como “a luz que mata”, Miguel Jorge faz alusão à conhecida frase de Devair Ferreira: “Eu me apaixonei pelo brilho da morte!”.

METAFICÇÃO E HISTÓRIA

O termo metafiction foi criado pelo escritor William Gass, a partir de seu livro Fiction and figures of life, de 1970. Começou a ser utilizado dentro da tradição crítica norte-americana como sinônimo de ficção pós-moderna. Entretanto, mesmo antes de Gass, desde o século XVI existe indícios de termos utilizados para tratar da ficção que volta sobre si mesma, como assegura Laurent Lepaludier em Métatextualité et métafiction, de 2002. Chegando aos dias atuais, outros vários termos se juntaram a estes. Segundo Zênia de Faria em A metaficção revisada: uma introdução (2012):

Para dar uma ideia da variedade e multiplicidade de termos e noções criadas/utilizadas pelos referidos estudiosos, em suas reflexões teóricas sobre essa questão, para caracterizar os fenômenos literários a que aludimos, citamos alguns dos termos por eles propostos, a saber: antirromance, metaficção, narrativa pós-moderna, narrativa narcisista, ficção autorreferencial, ficção reflexiva ou autorreflexiva, ficção autoconsciente, antificção, não ficção, narrativa antimimética, ficção pós-moderna, metaficção historiográfica, fabulação, ficção neobarroca, romance de introversão, ficção introspectiva, superficção, transficção. (FARIA, 2012, p.240)

A metaficção se caracteriza em uma obra quando essa faz uso de elementos como a paródia e/ou a mise en abyme, que por sua vez, é uma modalidade reflexiva do processo criador da crítica no romance ou conto voltado a si mesmo muito utilizado em narrativas metaficcionais que destroem a ideia de referência externa à realidade do próprio texto.

Em Pão cozido debaixo de brasa, a mise en abyme ocorre nos capítulos intitulados “Esboço para um diário” (cinco capítulos no total), trechos confessionais do personagem Adão/Adam onde o autor implícito se manifesta e onde tais confissões funcionam como pequenos segmentos narrativos dentro de uma narrativa maior. D’Allembach (1971) afirma que existem três espécies de mise en abyme: a prospectiva, onde a narrativa reflete a história vindoura; a retrospectiva, que reflete a história consumada e por fim, a retroprospectiva, que reflete os acontecimentos anteriores e posteriores da narrativa geral. Para Moema de Castro e Silva Olival em GEN: Um sopro de renovação em Goiás (2000), a obra de Miguel Jorge assume uma posição retroprospectiva, uma vez que a narrativa “se desdobra em relação às inúmeras faces da personagem narradora, em épocas passadas e futuras.” (OLIVAL, 2000, p.62).

Para entendermos como se dá a metaficção historiográfica, é preciso antes, entender o que se entende por história.

Segundo Aristóteles, a história se difere da literatura (e por consequência, da ficção), por ser uma narração fiel e exata dos fatos ocorridos. Segundo o filósofo, “(...) a obra do poeta não consiste em contar o que aconteceu, mas sim coisas quais podiam acontecer, possíveis no ponto de vista da verossimilhança ou da necessidade.” (ARISTÓTELES, 1997, p.28), ao passo que o historiador narra os fatos exatamente como aconteceu sem acrescentar nenhum detalhe que não seja factual.

Comentando a diferenciação aristotélica, Hayden White acrescenta em Trópicos do discurso: ensaios sobre a crítica da cultura (2000):

Os historiadores se ocupam de eventos que podem ser atribuídos a situações específicas de tempo e espaço, eventos que são (ou foram) em princípio observáveis ou perceptíveis, ao passo que os escritores imaginativos – poetas romancistas, dramaturgos – se ocupam tanto desses tipos de eventos quanto dos imaginados, hipotéticos ou inventados. (WHITE, 2000, p.137).

Seguindo essa discussão sobre a relação entre história e ficção, destacamos a reflexão que Linda Hutcheon faz em Poética do pós-modernismo: história, teoria e ficção (1991), já caracterizando o que vem a ser a metaficção historiográfica:

[...] a metaficção historiográfica não consegue deixar de lidar com o problema do status de seus fatos e da natureza de suas evidências, seus documentos. E, obviamente, a questão que com isso se relaciona é a de saber como se desenvolveram estas fontes documentais: será que podem ser narradas com objetividade e neutralidade? Ou será que a interpretação começa inevitavelmente ao mesmo tempo que a narrativização? A questão epistemológica referente à maneira como conhecemos o passado se reúne à questão ontológica referente ao status dos vestígios desse passado (...) (HUTCHEON, 1991, p.161).

O conceito de metaficção historiográfica, conforme afirma Linda Hutcheon, tem por finalidade e característica, apropriar-se de personagens e/ou acontecimentos históricos sob a ordem da problematização dos fatos concebidos como “verdadeiros”. Sendo assim, o que vai diferenciar a metaficção historiográfica de um romance histórico é a autoreflexão causada pelo questionamento das “verdades históricas”.

De acordo com Linda Hutcheon, tanto a escrita da história como a ficção partem da verossimilhança. Nesse sentindo, a metaficção historiográfica revela uma leitura alternativa do passado como uma crítica à história oficial. Por isso seu caráter contraditório, pois nega exatamente a veracidade de seu objeto. Recupera e, ao mesmo tempo, recusa os pressupostos históricos.

A autora comenta que a metaficção historiográfica sugere que a verdade e a falsidade não devem ser os pontos de partida para se discutir a ficção. A metaficção historiográfica defende que só existem “verdades”, no plural, e jamais uma só verdade definida. Além disso, o que diferencia a narrativa ficcional da histórica são suas estruturas, as quais são contrariadas pela metaficção.

Para Hutcheon, a metaficção historiográfica não só produz como também problematiza o conceito de História, e realiza uma volta ao passado de maneira crítica. Sendo assim, a ficção pós-moderna, utiliza-se da paródia para apropriar-se do passado. Diferente do senso comum, a autora entende por parodiar, não apenas criticar o passado, mas, questioná-lo, isto é, reconhecê-lo como construção humana. E este trabalho é produzido através dos discursos pós-modernos ficcionais e historiográficos. Sendo assim, a metaficção historiográfica exige

Do leitor não apenas o reconhecimento de vestígios textualizados do passado literário e histórico, mas também a percepção daquilo que foi feito – por intermédio da ironia – a esses vestígios. O leitor é obrigado a reconhecer não apenas a inevitável textualidade de nosso conhecimento sobre o passado, mas também o valor e a limitação de forma inevitavelmente discursiva desse conhecimento. (HUTCHEON, 1991, p.167).

Ao promover o diálogo entre História e Ficção, os autores levam o leitor a perceber que as técnicas narrativas empregadas na ficção são semelhantes às utilizadas em um discurso histórico. Na obra Pão cozido debaixo de brasa, a história é questionada pela ficção. É a história oficial que fornece o referencial ao romance de Miguel Jorge, visto que, o romance tem como pano de fundo o acidente com o césio 137, ocorrido em Goiânia, em 13 de setembro de 1987.

A metaficção historiográfica é um aspecto da pós-modernidade que une os domínios da história, da ficção e da teoria, visto que não crê na existência de um único discurso, mas sim na multiplicidade discursiva, formada por visões subjetivas. A obra de Miguel Jorge desestabiliza o discurso oficial por meio de recursos como a fragmentação, a ironia e a paródia, sem a pretensão de criar nova verdade, mas ao mesmo tempo, criando uma nova possibilidade de contar a história, através da perspectiva das personagens marginalizadas do romance.

Com base em documentos e nos jornais da época, pode-se afirmar que Miguel Jorge buscou em um fato real, as bases para seu texto literário, como pode ser visto no momento em que as personagens Felipa e João Bertolino chegam ao lugar onde havia uma Santa Casa, destruído pelo Sr. Governador. No meio dos entulhos, João Bertolino vê uma caixa de metal abandonada e tem uma premonição. Para ele, ali dentro estaria o destino deles. Então pede a Nec-Nec que traga a marreta. “Nec-Nec, traga a marreta. Vamos quebrar tudo isso aqui para ver o que tem lá dentro”. (JORGE, 2004, p. 135). A passagem é uma reprodução quase que idêntica ao ocorrido, quando os catadores Wagner Mota Pereira e Roberto Santos encontraram o aparelho de radioterapia que continha a cápsula com o Césio.

Enquanto João Bertolino batia forte no Bloco de cimento com a marreta, Felipa dizia que ali dentro, presa, estava a luz azul que eles procuravam. Finalmente o bloco se desfez e eles retiraram a cápsula que estava dentro e a levaram para casa. João Bertolino, ao abrir a cápsula, encontra a luz azul.

-Não está vendo, João Bertolino?

-Estou vendo e querendo conhecer. Até parece que a casa, o chão, as árvores, todos os lugares se cobrem deste brilho que é tão estranho, tão bonito, que até dá vontade de pegar e comer. Felipa sorriu seu riso aberto, cheio de cumplicidade, como se mais viva e mais moça do que nunca (JORGE, 2004, p.165).

João Bertolino se assusta ao ver a menina comer a luz azul. A menina que comeu a luz morreu e foi considerada como santa. Um caixão de chumbo foi providenciado. João Bertolino foi para o hospital, onde teve o peito, os braços e as pernas enfaixadas. Isolado em um quarto de hospital, João Bertolino não queria ter ido parar nas páginas do jornal, queria voltar a ser apenas um catador de papel. Mas agora era conhecido como “o homem da luz azul”, do dia 13 de setembro de 1987.

O destino das personagens do romance são reproduções dos destinos dos verdadeiros envolvidos com o acidente radioativo. Ficção e realidade se misturam em uma representação quase que fiel dos fatos. A garota que foi considerada santa é uma alusão a Leide das Neves Ferreira, de seis anos de idade, a primeira vítima do acidente. João Bertolino e Felipa podem ser ambos, representações de Devair Alves Ferreira, tio de Leide e dono do ferro velho que comprou a peça dos catadores Wagner Mota Pereira e Roberto Santos.

E assim, embora esta história tenha ocorrido extra-textualmente no passado, embora exista como fato real, o recurso a ele só se dá através de textos, de sua textualização. O referente real existiu de fato, mas só o alcançamos através de textos da história ou da ficção, como explica Hayden White, “toda representação do passado tem implicações ideológicas específicas” (WHITE, 1994, p. 159).

Miguel Jorge organiza a narrativa de Pão cozido debaixo de brasa de uma maneira em que a versão oficial seja desvelada, fazendo com que prevaleça não uma, mas várias versões do acontecimento que serviu de ponto de partida para seu premiado romance.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir das considerações que Linda Hutcheon faz sobre metaficção e metaficção historiográfica em seu texto Poética do Pós-modernismo: história, teoria e ficção, podemos perceber que a obra Pão cozido debaixo de brasa, de Miguel Jorge, traz os traços característicos de uma metaficção historiográfica, por ser uma literatura que representa de forma ficcional, fatos históricos de um desastre real, além de ser uma narrativa engajada com questões sociais. Ao dar voz às personagens marginalizadas - os ex-cêntricos - o autor permite uma nova releitora do passado, comprovando ser real a afirmação de Hutcheon de que não existe uma única narrativa real possível para um determinado fato histórico, mas sim, várias.

Sendo assim, Felipa, Nec-Nec e João Bertolino simbolizam as vozes dos excluídos pelas quais Miguel Jorge denuncia um mundo desumano, desigual e injusto, onde as vítimas atingidas pela “luz azul”, se sentem impotentes diante à exclusão a qual são submetidos.

Tais personagens percebem-se como seres lançados no mundo sem direitos, sem proteção, por isso continuam em busca de objetos perdidos e, chegam a um hospital abandonado onde seus destinos são selados.

Percebemos também, em relação à primeira história do romance, ou seja, ao núcleo protagonizado pelo personagem Adão, que Miguel Jorge, além da verossimilhança, utiliza da intertextualidade na elaboração de suas personagens, bebendo na religião, na psicologia e em outros tipos textuais, a inspiração para sua narrativa ficcional, considerada por muitos críticos, como brilhante.

A metaficção historiográfica tem sido amplamente estudada e debatida, devida a necessidade de rever o passado na tentativa de questionar sobre fatos históricos, uma vez que histórias que eram tidas como verdades absolutas, começaram a ser questionadas. Percebe-se que muitas vozes que antes não tinham espaço e direito a manifestação, como das mulheres, dos negros e dos homossexuais, passaram a se manifestar e questionar as verdades consideradas como absolutas nos anais da história. Assim, a ficção pós-moderna traz elementos que conduz ao questionamento da verdade, mostrando que não há apenas uma verdade, mas sim, verdades com perspectivas diversas que podem ser levadas em consideração.

Desta forma, podemos dizer que história e ficção são vistas como discursos contextualizados no mundo pós-moderno, funcionando como sistemas de significação que dão sentido ao passado. Nesse sentido, para Maria Luiza Ferreira Laboissière de Carvalho em Tradição e modernidade na prosa de Miguel Jorge, o autor “transita nas duas áreas, a da história e da ficção, e alcança o universo da metaficção historiográfica”. (CARVALHO, 2000, p. 89).

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Simião Mendes
Enviado por Simião Mendes em 11/03/2018
Reeditado em 11/03/2018
Código do texto: T6276945
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