OS SENTIDOS DO SILÊNCIO NO EMBONDEIRO QUE SONHAVA PÁSSAROS

OS SENTIDOS DO SILÊNCIO NO

EMBONDEIRO QUE SONHAVA PÁSSAROS

Arivaldo Leandro da Silva MONTE(UFRN)

leandrodumont@yahoo.com.br

RESUMO: Neste trabalho realizaremos uma leitura sob a perspectiva do silêncio como operador lógico, fundante e definido na ficção do moçambicano Mia Couto (2005). O não dizer ou inaudito, de diferentes formas, traduz-se naquilo que a linguagem ainda não conseguiu corromper de todo – o silêncio. No conto “O Embondeiro que sonhava pássaros”, encontraremos o silêncio em seus mais diversos sentidos: do riso, da ironia, da denúncia social, da opressão do olhar do colonizador, da solidão e do seu próprio interior. O silêncio que atravessa a palavra, intraduzível, mas que se pode entender, que desperta a lógica da imaginação e da fantasia, da utopia, do desligar-se do mundo civilizado. O trabalho fundamenta-se nas teorias de Orlandi (2007): As Formas do Silêncio, para quem o silêncio é fundante e não está fora da linguagem, nem tampouco representa um abismo de sentidos, mas possibilidades de efeitos de muitos sentidos onde a palavra gira em torno. (p.23-24). Segue-se que a incompletude é fundamental para produzir as várias possibilidades do silêncio, também, na construção do sujeito e de sua resistência em manter viva a memória de um povo.

Palavras – chave: silêncio, conto, Mia Couto.

As palavras estão repletas de silêncio e o silêncio de sentidos: “Silenciar é dizer por outra via – já que o silêncio potencia o que ali luz, presente, pelo fulgor mesmo de sua ausência.” (HOLANDA, 1992. p. 17). Para Mia Couto (2009) o silêncio vai muito além das palavras “O silêncio não é ausência da fala, é o dizer-se tudo sem nenhuma palavra.” (p.14). E para Clarice Lispecto (1994) o silêncio pode gerar até mesmo sentimentos de vergonha no desespero, e pode ser imperturbável pelos cantos dos pássaros: “Silêncio tão grande que o desespero tem pudor. [...] E se um pássaro enlouquecido cantasse? Esperança inútil. O canto apenas atravessaria como uma leve flauta o silêncio.”. Le Goff (2003) observa que o silêncio pode ser usado como objeto manipulador da memória coletiva: “Os esquecimentos e os silêncios da história são reveladores desses mecanismos de manipulação da memória coletiva.” (p.422).

Desse modo as diferentes formas do silêncio vão fluindo dos mais diversos contextos históricos e ideológicos.

Sabemos que a Língua aliena o indivíduo, e que, na multiplicidade de seus códices, pode desvirtuar, comprometer ou destruir a pretensa palavra que almeja a verdade. Barthes (1978) em seu ensaio Aula nos esclarece que a língua, “como desempenho de toda linguagem, não é nem reacionária, nem progressista; ela é simplesmente: fascista; pois o fascismo não é impedir de dizer, é obrigar a dizer.” (p.14). Mas o silêncio foge dessas convenções, e desafia pela ausência de palavras. Ele está sob a forma sucinta, difícil de refutar, negar ou afirmar, mas que está bem ali, com sentido igualmente latente. “Por outro lado, há uma dimensão do silêncio que remete ao caráter de incompletude da linguagem: todo dizer é uma relação fundamental com o não-dizer.” (ORLANDI, 2007, p. 12).

Esta forma de comunicar exige uma acuidade maior do leitor, um esquadrilhamento dos sentidos. Exige a compreensão das formas que o silêncio exala no fulgor da sua ausência. Compreensão esta que ainda trilha por matas densas de descobertas e desvelamentos paradoxais, seja na literatura, na linguística, na filosofia, na psicanálise ou na psicologia dentre outras áreas . Assim o conceito de silêncio vem aos poucos se delineando, sinuosamente, em curvas perigosas da linguagem e da imaginação: “É nessa relação do imaginário com o real que podemos apreender a especificidade da materialidade do silêncio, sua opacidade, seu trabalho no processo de significação.” (ORLANDI, 2007, p. 16). Portanto entender o silêncio não é algo simples já que suas relações e formas estão para além da linguagem.

Em sua aula de 25 de fevereiro de 1978, Barthes (2003) na obra “O Neutro” nos apresenta duas formas de silêncio que se desdobram em outras:

Na língua clássica, a mesma coisa: calar-se, silenciar. Mas antes, nuance interessante: tacere = silêncio verbal ≠ silere: tranquilidade, ausência de movimento e de ruído. Emprega-se para os objetos, a noite, o mar, o vento. Donde belas metáforas usuais: a lua no declínio, tornando-se invisível; o rebento ou o sarmento que ainda não apareceu; o ovo que ainda não chocou: silet, sileut. (p. 49)

Mais adiante o autor se refere a silere como algo intemporal, “antes de nascerem ou depois de desaparecerem (silentes = os mortos)”. (BARTHES, 2003,p. 49). As duas formas se opõem como tacere, assumindo o silêncio da fala, quando nos calamos por vontade própria ou por obrigação, e silere o silêncio que vem da “natureza ou divindade”. Os dois aspectos parecem nos apresentar significados bem distintos e diretos, sem as complicações dos múltiplos sentidos e suas complexidades históricas, ideológicas e sociais. Porém, Barthes vai nos chamar a atenção para o fato de que na união dos dois aspectos prevalece o tacere e que o exercício da fala está ligado ao poder como direito de não falar e direito de não querer ouvir:

Tacere (cruzo aqui, indevidamente, como se vê, a série etimológica latina e a série mística boehmiana), portanto tacere, como silêncio de fala, opõe-se a silere, como silêncio de natureza ou de divindade, depois, último avatar, em francês as duas se igualam, tornam-se sinônimos, mas com vantagem do sentido de tacere: a natureza é de alguma forma sacrificada à fala: o silêncio só é da fala, a não ser poeticamente, arcaicamente: “Tudo silenciava” [Tout se taisait]. (BARTHES, 2003, p. 50).

Embora o ensaísta afirme que “Silêncio (portanto, depois dos meus esclarecimentos = calar-se, não falar): operação para baldar opressões, intimidações, perigos do falar, da locutio.” (BARTHES, 2003, p. 52), o que leva em consideração apenas o tacere, já que o significado de silere é de alguma forma sacrificada na junção dos dois termos. Mais adiante retoma a palavra e evidencia o “silêncio integral” (silêncio do interior e exterior do sujeito) como sendo uma forma de silêncio que ultrapassa o tacere e chega ao “silere: silêncio de toda a natureza” (p. 65). O que parece uma contradição Barthes explica que “o silêncio último da fala interior só pode ser encontrado, buscado, evocado numa zona-limite da experiência humana, em que o sujeito joga com sua morte (como sujeito)”. (BARTHES, 2003, p. 62-63) e exemplifica essa morte do sujeito com a iniciação ao Tao o que seria o silêncio integral. “Não se julga mais nem se fala mentalmente...” (p. 64).

Barthes também se refere ao silêncio (tacere) como tática mundana e exemplifica-o como sendo implícito:

Nessa “semiologia” da moral mundana, o silêncio tem de fato uma substância “faladeira” ou “falante”: ele é sempre implícito. Situado no campo da mundanidade, da socialidade forte (e que é ele senão uma linguagem excessivamente social, mundana), o implícito (e o silêncio, que é seu “índice”) participa do combate mundano: é uma arma polivalente. (BARTHES, 2003, p. 54).

Mas há quem olhe com desconfianças esse silêncio implícito na mundanidade, isso porque, desse modo, o silêncio já traz um rótulo de elipse e implícito. Porém, para Orlandi (2007) o silêncio não é a mesma coisa que implícito já que, implícito, é o não-dito que se faz entender pelo que foi dito. O silêncio, para a Linguista foi apagado, excluído, mas permanece com seu sentido, ele significa e não podemos traduzi-lo em palavras:

Essa distinção que fazemos entre implícito e silêncio estará dita de muitos modos neste nosso trabalho, já que, para nós, o sentido do silêncio não é algo juntado, sobreposto pela intenção do locutor: há um sentido no silêncio. (ORLANDI, 2007, p. 12).

A autora não concebe o silêncio como subproduto da linguagem, “o silêncio não é mero complemento da linguagem. Ele tem significância própria” (ORLANDI, 2007, p. 23), e o ato de falar, este sim seria um excesso. O silêncio assim seria parte fundante da linguagem. Nesses termos a autora concorda com os pensamentos de Lacan, quando o psicanalista observa que o ato de não falar também é linguagem e por isso mesmo esse silêncio não libera o sujeito da linguagem:

O ato de calar-se não libera o sujeito da linguagem. Mesmo se a essência do sujeito, neste ato, alcança seu ápice - se ele agita a sombra de sua liberdade, - este calar-se permanece prenhe de um enigma que tem feito pesada, há tanto tempo, a presença do mundo animal. Disso nós só temos o rastro da fobia, mas lembremo-nos que, há muito tempo atrás, nós, aí podemos alojar os deuses. (LACAN, 2008, p. 290-291)

Lacan está falando do silêncio do inconsciente com base na psicanálise em que este seria o momento onde: “o sujeito fala a pura linguagem” (p. 291), ou seja, é no silêncio que tudo começa, onde está a essência do sujeito, com seus enigmas, segredos, um silêncio místico dos deuses.

Parece que estamos condenados e enclausurados nas múltiplas metalinguagens congestionadas de signos, e não podemos nos livrar desses sentidos. Enquanto isso, o silêncio estaria exilado em terras insulares, difícil de se apreender.

Mas o que chama a atenção, enquanto pesquisa, no conto “O embondeiro que sonhava pássaros” [e também em outros contos do autor] é o silêncio que funciona como um operador lógico da ficção de Mia Couto. Não se trata de provar que existe silêncio nas obras do escritor, porque isso seria estudar o óbvio, já que o silêncio está em todo lugar, em toda literatura. Masobservar um componente estético com o qual seus personagens estão sempre às voltas, com uma atmosfera que marca o espaço interno e externo dessas personagens, como também algo que circunda o processo de criação do autor para garantir o movimento dos sentidos e vencer, talvez, os limites da linguagem ou o que bem poderia ser chamado de sua incompletude.

Seria um absurdo falar da intenção do autor junto a esses operadores. Mas não seria igualmente absurdo falar dos sentidos desses operadores como objeto de reflexão e de produção de silêncio. Senão vejamos: Mia Couto (2005), em um outro conto “O pescador cego”, poderia se ajustar nas mais diversas formas de silêncio [seja, silere e tacerepara Barthes ou constitutivo e local para Orlandi, ou ainda o inconsciente para Lacan e resistência para Freud]. O pescador ficou preso na solidão do mar, foi obrigado, pelas circunstâncias de sua cegueira e de seu isolamento, ao silêncio “invindável” do mar. Durante algum tempo Mazembe fez fé de que algo o salvaria, até que a fome o despertasse para a realidade. Arrancar os olhos lhe pareceu, naquele momento, a única solução para sobreviver. Quando cego, achou no silêncio seu refúgio e procurou conforto na própria sorte sem muitas explicações: “Muitas vozes, afinal, só produzem silêncio.” (COUTO, 2005, p. 93). O que se pode observar é que não há, por exemplo, uma explicação de como Mazembe conseguiu arrancar os próprios olhos sem revelar qualquer expressão de dor física, o que há é somente o silêncio do mar, do isolamento, da solidão, o silêncio místico dos deuses. Então lançamos um novo olhar sobre a condição existencial de Mazembe com base nos operadores dos sentidos do silêncio, uma reflexão sobre o que poderia ser um modelo de vida africano, cheio de magias, de misticismo e de imaginação– e nada disso foi dito ou ficou implícito – mas o silêncio condicionou novas possibilidades de dizer o não dito, daí vamos procurar explicações na cultura africana, tentando nos distanciar da idiossincrasia ocidental.

Essa economia de palavras que provoca o sentido do silêncio deixa, em suma, um espaço para ser preenchido e que será adjetivado de multas formas pelo leitor, é o que observa Holanda (1992): “Entre mim e meu ato, fica esse hiato que o olhar alheio preencherá adjetivando-o, dando-lhe uma valoração sua.” (p. 31). Este silêncio, especificamente, tem indícios de uma construção, bem elaborada, pois conseguimos compreendê-lo, mas provavelmente não traduzi-lo em seus múltiplos significados culturais, ideológicos e históricos, dado à sua dimensão.

Assim, pensando nesta polifonia e, de maneira mais detida, no conto “O embondeiro que sonhava pássaros” o silêncio que é observado no texto, através do personagem do vendedor de pássaros, assume uma postura de denúncia social, e tende a representar elementos do período colonial. Esta forma de silêncio é tida por Orlandi (2007, p.76)como silenciamento (por dominação X resistência) – também facilmente detectável na ditadura militar. Esse entendimento só é possível mediante uma formação discursiva histórico-culturalna qual o sujeito está contextualizado para dar um sentido ao silêncio que atravessa as palavras. Exemplo disso podemos observar no momento em que o passarinheiro é preso, amarrado e espancado, mas não esboça qualquer reação de defesa e ao ser interrogado mantem o silêncio como resposta:

Interroguem o gajo, espremam-no bem. Era ordem dos colonos, antes de se retirarem. O guarda continenciou-se, obediente. Mas nem ele sabia que segredos devia arrancar do velho. Que raiva se comprovavam contra o vendedor ambulante? Agora, sozinho, o retrato do detido lhe parecia isento de suspeita. (COUTO, 2005, p. 67)

. O silêncio do passarinheiro, que não é vazio de sentidos e também não está implícito, pode ser observado na transparência de elementos do período colonial ao longo do conto, dentre outras maneiras e sentidos, como uma disparidade social em relação ao homem branco da cidade. O negro é ágrafo, o branco domina a escrita. O negro não sabe falar, já o branco é o dono da língua portuguesa. Holanda (1992) descreve essa economia de adjetivos da seguinte forma:

A propositada economia descritiva, enquanto expõe um silêncio, determina aquele que o sofre. Figura emblemática, metafórica: há uma disparidade social que aqui a escritura acusa. Essa economia descritiva estabelece um distanciamento emocional, permitindo um impacto novo: o sentir de modo especulativo. (p. 23).

A assimilação do silêncio, pela falta de palavras, provoca um sentimento examinador, algo que nos impele para a alma do texto e que seria o seu sentido outro. O que foi apagado, ou deixado de lado, se torna premente nesta ocasião e, a forma estética do silêncio, denuncia o conteúdo, a vinculação social, estética desprovida de signos linguísticos, sem estereótipos, sem a servidão dos parâmetros sociais. Assim, surge através do silêncio, um novo impacto no leitor, algo não exato, uma nova recepção que o obriga a livrar-se das convenções,“Nem um sujeito tão visível, nem um sentido tão certo, eis o que nos fica à mão quando aprofundamos a compreensão do modo de significar do silêncio.” (ORLANDI, 2007, p. 13).

Quando o narrador do “Embondeiro” descreve a invasão do vendedor de pássaros diante da perplexidade dos colonos portugueses, tudo que diz é: “O vendedor se anonimava, em humilde desaparecimento de si” (COUTO, 2005, p. 63). Em nenhum outro momento o vendedor de pássaros tenta se explicar, se defender ou justificar a sua presença no bairro de cimento. Os portugueses nem sequer sabiam o seu nome ou algo sobre sua origem, como se houvesse um véu ainda por ser retirado em um último movimento. Mesmo assim ele estava lá como sinal de resistência e o seu silêncio incomodava aos colonizadores portugueses. Sem nada dizer, sem nada falar, o vendedor de pássaros significava uma ameaça iminente. Observa Orlandi: “Na perspectiva que assumimos, o silêncio não fala. O silêncio é. Ele significa. Ou melhor: no silêncio, o sentido é.” (ORLANDI, 2007, p, 31). Talvez, por isso mesmo, o vendedor não precisasse falar. A falta de reação é a lacuna necessária para o discurso do silêncio, onde não se vê, não se lê, mas se entende. Quanto menos palavras mais possibilidades de sentidos que se revelam.

O passarinheiro conhecia muito bem os costumes dos colonos portugueses, sabia como deixá-los admirados com seus pássaros mais lindos: “Os portugueses se interrogavam: onde desencantava ele tão maravilhosas criaturas” (COUTO, 2005, p. 63). E quando era necessário responder, o passarinheiro não usava as palavras, mas o silêncio do riso: “O vendedor se segredava, respondendo um riso.” (COUTO, 2005, p. 63). Compreendemos que a natureza do riso, nessas circunstâncias (de opressão), tem um tom irônico, quando expressado pela parte oprimida. O riso pode estar negando os valores estabelecidos por uma sociedade considerada não justa:

Rimos, pois, quando os valores são degradados, quando atentamos para um valor que se está transformando numnão-valor, ou quando queremos degradar valores. O riso é, por conseguinte, um instintivo juízo valorativo que concerne a uma degradação de valores. Aquele que emite sua apreciação negativa está exercendo uma função crítica. (...) O homem tenta romper pelo riso as limitações impostas por uma sociedade que o constrange, que o sufoca, desejando criar um novo contexto. (...) o rir é o resultado de uma tomada de posição, a mesma que fomenta as utopias: uma recusa a um presente degradado. (ALVES, 2002, p. 20).

Dessa forma o silêncio do vendedor trás uma nova perspectiva de leitura, cria o viés da recusa à ordem instituída. O silêncio do vendedor não pode mais ser visto como imagem de submissão, da subserviência, há uma denúncia, uma inconformidade com os valores ideológicos que a sociedade fomenta. O silêncio agora é questionador de uma realidade que se diz, ou se quer dizer absoluta, e tenta subverter o que está estabelecido. O riso neste caso seria como a receita de um bolo que aparece em um jornal no mesmo lugar em que a verdadeira notícia, que deveria ser publicada, ao invés disso foi censurada. Com o riso o vendedor deixa de falar, mas não deixa de dizer. A não submissão velada se transforma em “sobremissão”, caracterizando consciência do homem sujeito, bem mais aguda que a dos colonos como podemos observar no trecho do conto:

O comerciante devia saber que seus passos descalços não cabiam naquelas ruas. Os brancos se inquietavam com aquela desobediência, acusando o tempo. Sentiam ciúmes do passado, a arrumação das criaturas pela sua aparência. O vendedor, assim sobremisso, adiantava o mundo de outras compreensões. (COUTO, 2005, p. 64).

O narrador coloca o passarinheiro acima da arrogância e da ignorância daquela sociedade. Indiferente ao preconceito dos adultos, o passarinheiro dava conta de outras experiências do comportamento humano: “Até os meninos, por graça de sua sedução, se esqueciam do comportamento.” (COUTO, 2005, p. 64), provando uma possível coexistência entre as raças, sem as intervenções da máscara social, sem as verdades e mentiras das palavras. – Ora, o que fizemos? Tratamos de uma leitura dos trechos acima, atestando o funcionamento do movimento do silêncio que está sempre acompanhando um personagem que, mesmo sem nome, tem identidade adquirida pelos sentidos do silêncio: “Compreender o que é efeito de sentidos, em suma, é compreender a necessidade da ideologia na constituição dos sentidos e dos sujeitos.” (ORLANDI, 2007, p.21).

Mas, diante da possibilidade de se expressar, o vendedor escolhe não falar, o direito de não falar e talvez evitar os conflitos da fala, pois como observa Lourival Holanda nem sempre a fala expressa o indivíduo por inteiro:

Como falar sem mentir? Como pretender pôr, nas palavras, a verdade individual, toda, inteira? A linguagem, sendo sempre trans-figuração do real, está ligada à sua “mentira”. A linguagem por sua própria natureza é portanto abstração, enquanto não manifesta o real, apenas tenta significá-lo. (1992, p. 41).

“Falar, e com maior razão discorrer, não é comunicar, como se repete com demasiada frequência, é sujeitar: toda língua é uma reição generalizada.” Disse Barthes (1978, p. 13). Tudo que se pode dizer, em um discurso, são reorganizações de sintagmas, repetições de palavras, uma polifonia de vozes com muitas verdades. O vendedor de pássaros expressa sua verdade sem palavras, o silêncio e a carência de palavras podem dizer muito mais.O que se observa neste momento não é uma tensão entre o silêncio e a fala, mas entre o silêncio que atesta o movimento do discurso [o múltiplo] e o não dito que atesta o movimento do sujeito [o uno]. Esta estrutura tensional do silêncio repete-se várias vezes o que a torna também componente central no fluir estético do escritor. Qualquer que fosse a palavra, como tentativa de significar o vendedor de pássaros, poderia ser vã, vazia de verdades e longe da sua realidade, “Ele, afinal, não falava o que dizia. Referia outro assunto. Cada coisa tem direito a ser uma palavra. Cada palavra tem o dever de não ser nenhuma coisa. Seu assunto era o tempo. Como o rio: parado é que o tempo cresce.” (COUTO, 2005a, p. 135).

O silêncio do vendedor não é estático, parado, mudo, o que contraria a perspectiva da mudança de vida, do querer algo novo e diferente, do porvir. Aqui nós podemos observar uma projeção para o futuro, onde não haveria, como diz o narrador do “Embondeiro”, a “arrumação das criaturas pela sua aparência” (p. 64). E onde “todos se familiavam, parentes aparentes” (p. 64). Esse desejo é mais que uma simples esperança, é um ato de protesto às verdades instituídas histórica e socialmente.

O silêncio não é fuga da realidade é, pois, enfrentá-la de uma forma outra, insólita, surpreendente e utópica. Quando o vendedor é advertido pelo menino Tiago para fugir, porque iria ser preso, a primeira reação do passarinheiro foi tomada no mais completo silêncio:

Mas o vendedor se confortava, em sonolentidão. Sereno, entrou no tronco e ali se ademorou. Quando saiu já vinha gravatado, de fato mezungueiro. De novo, se sentou, limpando as areias por baixo. Depois, ficou varandeando, retocando o horizonte. (p. 65)

Observe que o passarinheiro não precisa falar, mas o silêncio que ele transmite pode ir muito além das palavras: “O que possibilita ou impossibilita a comunicação é, em ultima instância, o silêncio.” (CAÑIZAL, 2005, p. 18).E no mesmo artigo, após a citação de Cañizal: “Contudo, é comum a ideia de que a comunicação se dá apenas através de signos, palavras e imagens” (PADRÃO, 2009, p. 93).É isso que o operador lógico do silêncio está querendo nos passar. O silêncio é fundante e é nele que se insere o personagem, mudo, mas expressivo, comunicante, dizente.

A serenidade e o silêncio do vendedor de pássaros é, antes de tudo, uma coragem tranquila, de quem não está preocupado com um ataque, mas com os deveres de anfitrião que lhe compete como verdadeiro dono daquelas terras. Por tradição ele tinha o dever de receber bem os visitantes.A tradição exige que ele possibilite a encarnação da memória, e assim, quase como num processo ritual das celebrações, ele continua a vender pássaros, imitando seus antepassados. É com este gesto que o vendedor, em silêncio, trás de volta o passado e atualiza suas lembranças. É esta prática que reproduz sua crença, sua cultura ancestral. Este ritual talvez seja a única coisa, verdadeiramente, compreensiva na sua vida. Esta ancestralidade oferece segurança de saber onde pisar. Outra existência seria pura incerteza e insegurança, e se tiver que trilhar pelos caminhos dessa incerteza, não será por gosto, mas pelo silenciamento de longos anos de repressão.

Diante do sofrimento pela tortura, ainda assim o silêncio imperava, Tiago assistiu a tudo: “Ele viu o passarinheiro levantar-se, saudando os visitantes. Logo procederam pancadas, chambocos, pontapés. O velho parecia nem sofrer, vegetável, não fora o sangue.” (p. 66). A violência é uma forma de degradação do homem, provoca danos à integridade física e mental do outro. Como reagir a algo tão invasivo e perverso, assim? Talvez o silêncio seja a resposta, já que, grande parte da violência, é o esgotamento de palavras na tentativa de se fazer entender um pelo outro. Mas, na medida em que a voz me é oprimida por força da violência, estaque, tão logo me fará falta, será substituída pelo silênciamento. O silenciamento não é o nada, o fim, não é a morte: “Impor o silêncio não é calar o interlocutor, mas impedi-lo de sustentar outro discurso.” (ORLANDI, 2007, p.102). E é nesse contexto que o passarinheiro, preso e impedido de falar o que deveria falar, resolve dizer por outras vias: através do som da gaita. Desse modo a música substitui o primeiro discurso e o que foi silenciado ganha nova forma e sentido – as formas e sentidos do silêncio.

De redução ao silêncio, toda a forma de ditadura bem entende. Tirar a voz do sujeito é uma tentativa de anulá-lo por completo, este exílio é o mais distante de todos. Porém, na ficção do moçambicano, a obrigação ao silêncio – silêncio que mesmo sem forças ou com suas reservas –, terá, em nossas observações, quase sempre um significado, um processo de construção de sentidos, delineados em volta das personagens. Mas, para o indivíduo mesmo, que vive sob o arbítrio político, a resignação ao silêncio, que há de se esperar? Que direitos lhe são assegurados? Esta incerteza que impossibilita o sujeito oprimido acaba por reforçar o sujeito opressor, como bem percebeu Lourival Holanda:

O silêncio pode ser reserva de força; ou o sinal de seu esgotamento. Nada muda no indivíduo mudo. E mais, o outro pode, daí, haurir sua força. A primeira providência do arbítrio político: a redução ao silêncio. Temos estigmas recentes disso. Resignação silenciosa que finda em aceitação da incerteza se temos, realmente, direitos. Impassibilidade, impossibilidade – fator que reforça a arma forte do opressor. “Porque não dissemos nada”, como no poema maiakovskiano de Eduardo Alves da Costa (no caminho com Maiakóvski). (1992, p. 57).

Bem diferente das observações de Holanda (1992), esta forma de silêncio não poderia ser vista como resignação ou impassibilidade do vendedor. Pois a função crítica do personagem é também mostrar os valores degredados, falsamente construídos como pilares da égide de uma sociedade superior, é o que nos parece muito bem exposto no conto. Segundo Holanda (1992, p. 36), a “Primeira prática social, a palavra não deve ser sua prisão.” Mesmo assim Barthes (1978, p. 15) reconhece o poder de subjugação das palavras, observando o seguinte juízo:

Por outro lado, os signos de que a língua é feita, os signos só existem na medida em que são reconhecidos, isto é, na medida em que se repetem; o signo é seguidor, gregário; em cada signo dorme este monstro: um estereótipo: nunca posso falar senão recolhendo aquilo que se arrasta na língua. Assim que anuncio, essas duas rubricas se juntam em mim, sou ao mesmo tempo mestre e escravo.

Para o vendedor a carência de palavras foi condicionada socialmente de várias formas, primeiro pelos efeitos da colonização, a que foi submetida a linguagem e reduzida pela falta de prática, sendo a linguagem o principal elemento de uma identidade cultural. Depois pela falta de convívio com a própria memória cultural, longe de seus rituais representativos, de suas tradições.

Assim, o vendedor se torna um eterno prisioneiro das palavras porque não as tinha como suas, e se fechava em silêncio que, para ele, paradoxalmente parecia ter sentido de liberdade. E é somente no silêncio que podemos imaginar o passarinheiro, sem os estereótipos dos signos das palavras dos colonizadores. Barthes, ao buscar os signos, não encontra saída para os estereótipos das palavras e por isso se vê mestre e escravo delas. O vendedor se constrói em silêncio, mas não em qualquer silêncio, no silere, entre a natureza e os deuses, produzindo o que não é para ser significado, mas que logo recupera esse significado – é assim o silêncio (BARTHES, 2003, p. 20).

Depois que o vendedor foi preso e torturado, sua música já não fabulava mais o mundo, era algo muito distante: “A voz do passarinheiro lhe chegava, vinda de além-grades.” (p. 67), e a gaita, que antes embalava a harmonia entre os pássaros e as crianças, e fabulava o mundo, agora havia sido privada de tocar, condenada ao silêncio pela violência do colonizador: “– Me bateram muito-muito na boca. É muita pena, senão havia de tocar.” (p. 67). A repressão tenta elimina todas as formas de expressão, porque sabe que o homem só se realiza em plena liberdade.

Contudo, o poder da repressão também é cego, incapaz de enxergar as consequências de seu próprio ato. Tem a força da violência como forma absoluta de poder sobre a vida e a morte, e só é capaz de enxergar o próprio ego, esquecendo que o silêncio pode ser usado como fuga das armadilhas da própria fala e produzir outros sentidos infinitamente. Mas, se o poder em si já corrompe, sua forma absoluta pode matar. Assim, quando os colonos cercam o tronco do embondeiro, não procuram saber quem adormece lá dentro, e o menino Tiago é queimado vivo pelas chamas do fogo da ignorância.

Considerações finais

“No verbo esvaziado, o silêncio eloquente, de refutação, de exigência de depuração, se põe.” (HOLNADA, 1992, p.79). O silêncio que evita a adjetivação polifônica, para Mia Couto, tem valor expressivo na sua linguagem tão intensa e pode ser visto como ponto central em muitas de suas obras. É, em muito, o conservar nítido da reverência à palavra escrita ou falada. Tem compromisso com as verdades das palavras, sem que se precise jogá-las ao vento. O silêncio funciona como operador lógico que torna possível o equilíbrio entre oralidade e escrita. Aquilo que não pôde ser revelado pela escrita e pela oralidade se funda no silêncio e o que não pôde ser dito através do silêncio se completa em palavras ditas.

O próprio escritor já nos advertiu, em muitas entrevistas, para o seu desejo de mudança lexical, algo que de fato exprima a verdadeira cultura do moçambicano.

Em outras palavras, o silêncio, na obra de Mia Couto, pode ser elemento mantenedor de singularidade estética, provocando a descentralização da palavra dita ou escrita ou, no mínimo, assumindo espaços juntamente com ela. Não se trata de uma tentativa de capturar o que não foi dito, mas dizer por outras vias do silêncio ou ainda, o não dito, que demonstra a incapacidade de tudo alcançar através da escrita ou da fala. Este operador observa as muitas margens de sentidos que são produzidos nos textos de Mia Couto e que confirmam seus dizeres: “Um homem não é uma margem que apenas existe de um lado ou de outro lado. Um homem é uma ponte ligando as diversas margens.” (COUTO, 2005, p. 91). O silêncio pode externar as possibilidades e impossibilidades do sujeito, as suas muitas formas ainda por estudar. Os sentidos do silêncio, como ponto central, na ficção de Mia Couto ainda precisam de maiores observações do ponto de vista literário afim de melhor detalhar seu paradoxo: uma linguagem que implica silêncio, o não dito, e um silêncio que implica movimento de linguagem que nos faz entender o que não foi dito.

REFERÊNCIAS:

ALVES, Maria Tereza Abelha. Gil Vicente sob o signo da derrisão. Feira de Santana: UEFS, 2002.

BARTHES, Roland. Aula. São Paulo: Cultrix, 1978.

BARTHES, Roland. O Silêncio In:_____. O NEUTRO: Anotações de aulas e seminários ministrados no Collège de France, 1977-1980; texto estabelecido, anotado e apresentado por Thomas Clerc; tradução Ivone Castilho Benedetti. – São Paulo: Martins Fontes, 2003. – (Coleção Roland Barthes).

CAÑIZAL, Eduardo Peñuela. O silêncio nos entremeios da cultura e da linguagem.

In: BAITELLO, N., CONTRERA, M.; MENEZES, J. (Org.). Os meios da

incomunicação. São Paulo: Annablume, 2005.

COUTO, Antonio Emilio L. Cada homem é uma raça. 9 ed. Lisboa: Caminho SA, 2005.

______. O último voo do flamingo. S. Paulo: Companhia das Letras, 2005a.

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Leandro Dumont
Enviado por Leandro Dumont em 05/06/2018
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