A IDENTIDADE DA MULHER NEGRA NO ROMANCE ÚRSULA, DE MARIA FIRMINA DOS REIS

RESUMO

O presente trabalho constitui uma análise da identidade da mulher negra na obra Úrsula, de Maria Firmina Reis, manifestado através do que chamamos de vozes das personagens femininas no romance supracitado. Focalizamos nossas análises na vida e obra da autora, na identidade da mulher negra na escrita do século XIX, na inovação que o romance traz e nas principais personagens femininas da obra: Úrsula, Susana, Luísa B e Adelaide, para mostrar como essas personagens acendem na narrativa e se manifestam, traçando assim, um ato de transgressão, visto que estas viviam sob o sistema patriarcal. As mulheres em Úrsula fogem ao tradicional, ou seja, não estão apenas representando os papéis sociais de filha, esposa e mãe, isto é, os papéis que lhes eram impostos não passam de uma moldura para cercar o que essas mulheres queriam dizer sobre si. As mulheres do século XIX eram donas de sentimentos, emoções, vontades e sonhos que precisavam sair da obscuridade e da casta masculina, mostrando-se para o mundo. A escrita feminina no século XIX não se configura apenas como uma evasão para as mulheres que encontravam poucas alternativas profissionais e sociais, mas como uma forma de inclusão no espaço público, tipicamente masculino, subvertendo valores e códigos dominantes. Os principais autores que utilizamos para referenciar e legitimar a pesquisa foram Hall (2006), Munanga (1988), Rocha (2014) Reis (1859-2004). A partir desse trabalho, espera-se que sejam estimuladas futuras pesquisas, pois falar da obra de Maria Firmina dos Reis é de extrema relevância para a diminuição do estigma e preconceito em torno da mulher negra e como forma de valorizar a literatura afro-brasileira.

Palavras-Chaves: Identidade. Mulheres Negras. Preconceito.

ABSTRACT

The present work constitutes an analysis of the identity of the black woman in the work Ursula, Maria Firmina Reis, manifested through what we call the voices of the female characters in the above mentioned novel. We focused our analysis on the author's life and work, on the identity of the black woman in nineteenth-century writ-ing, on the novel's innovation and on the main female characters of the work: Ursu-la, Susana, Luisa B and Adelaide, to show how these characters light up in the nar-rative and manifest themselves, thus tracing an act of transgression, since they lived under the patriarchal system. The women in Ursula run away from the traditional, that is, they are not just representing the social roles of daughter, wife and mother, that is, the roles imposed on them are nothing more than a frame to surround what these women wanted to say about themselves. Nineteenth-century women were the owners of feelings, emotions, wills, and dreams that needed to come out of obscurity and male caste, showing themselves to the world. Women's writing in the nine-teenth century is not just an evasion for women who found few professional and social alternatives, but as a form of inclusion in the public space, typically mascu-line, subverting dominant values and codes. The main authors that we used to ref-erence and to legitimize the research were Hall (2006), Munanga (1988), Rocha (2014) Reis (1859-2004). From this work, it is hoped that future research will be stimulated, since to speak of the work of Maria Firmina dos Reis is of extreme rele-vance for the reduction of the stigma and prejudice around the blacks as a way of valuing our literature.

Keywords: Identity. Women Black. Preconception.

INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem como objetivo dar visibilidade e lucidar a importância da literatura Afro-brasileira no contexto nacional, na obra Úrsula, de Maria Firmina dos Reis, ressaltando a importância da autora e da obra pesquisada no seu contexto cultural, social e literário.

A Literatura é considerada como uma arte que estabelece entre os integrantes da sociedade relações de aprendizagem e experiências significativas relacionadas à formação intelectual do ser humano, a mesma possui uma eficiência excepcional em se tratando de formar seres com conhecimentos extralinguísticos abrangentes e possuidores de um senso crítico eficientes, sendo que sua atividade padrão está ligada diretamente à literatura. Porém, para que se formem leitores críticos capazes de fazer inferências sobre qualquer assunto na sociedade contemporânea, a literatura deve ser inserida diariamente nas séries iniciais das unidades educativas.

O principal objetivo desta pesquisa deu-se pela constatação da desigualdade étnico/racial que existe na sociedade entre negros e brancos, em que o primeiro é visto sempre como inferior, marginal e subalterno, por causa de sua origem e cor de pele, e o feminino negro sofre duplamente por ser mulher e negra em uma sociedade racista e sexista. Visto isso, na realidade social que está explícita nos escritos do romance Úrsula, no qual a autora, por meio da memória e da escrevivência descreve a personagem principal e revela a necessidade de construir sua identidade de mulher negra.

A pesquisa foi desenvolvida com base na abordagem bibliográfica, na qual se analisa a construção da identidade da mulher negra, com base na obra da escritora afro-brasileira Maria Firmina dos Reis, porta-voz das inquietudes de seu povo e,

mostra ainda que o período escravocrata aqui no Brasil contribuiu para construção de uma identidade depreciativa da mulher negra perante a sociedade.

É necessário enfatizar que é na escola que nasce o despertar da consciência crítica, que procura valorizar o ser humano pelo que ele é, onde todos têm direitos e deveres inerentes a todos os seres humanos, independentemente de qual seja a sua raça, sexo, nacionalidade, etnia, idioma, religião, enfim, isso fará com que formemos seres mais humanos.

E na busca em tornar o Brasil um lugar menos desigual, no ano de 2003 foi criada a Lei Federal 10.639/03, que estabelece o estudo da cultura e história afro-brasileira e africana nas instituições públicas e privadas, esse avanço foi um marco histórico de grande valor, pois através dela foi possível desenvolver as políticas de reparação para a população negra.

O trabalho está dividido em três capítulos. No primeiro capítulo abordamos a autora e sua importância na literatura afro-brasileira; no segundo capítulo expomos a identidade da mulher negra e no terceiro e último capítulo encerra-se com a análise do corpus literário, com foco na identidade negra das personagens femininas em Úrsula.

Para apoiar e legitimar a pesquisa, foram utilizados como base de referencial teórico Hall (2006), que enfatiza sobre identidade; Munanga (1988), que fala sobre a negritude; Rocha (2014) explana sobre as vozes oprimidas na literatura; Reis (1859-2004) com o próprio corpus literário.

CAPÍTULO I

MARIA FIRMINA DOS REIS NO CENÁRIO DA LITERATURA AFROBRASILEIRA

Sabe-se que o sistema colonial, processo em que iniciou a escravização dos povos africanos pelos europeus, surgiu bem antes da chegada dos portugueses ao Brasil, no século XVI, e teve consequências bem relevantes no processo cultural nacional. Portugal iniciou o tráfico negreiro no início do século XV, em plena expansão marítima e com a conquista da América intensificou muito o negócio, uma vez que precisou de muita mão-de-obra barata para desbravar e valorizar suas terras. Assim, motivados pela ganância e pelo enriquecimento advindos dos recursos naturais (pau-brasil, ouro, prata e diamante), os europeus escravizaram milhões de negros do continente africano.

A África sofreu um golpe muito grande com a chegada dos europeus, visto que a sociedade africana era dividida em três categorias de castas diferentes: o no-bre, o agregado e o escravo, e que, na realidade social do povo africano já havia a escravidão, porém, havia normas que regiam a vida dos escravos, isto é, ocorriam lutas/guerras entre povos e aqueles que perdiam eram transformados em escravos e designados para realizarem trabalhos que não poderiam ser feitos por pessoas de outra casta. Com o surgimento dos colonizadores ambiciosos, todos os que já eram escravos foram comprados, além de povos de outras categorias que foram captura-dos e escravizados, também provocando assim um desequilíbrio na organização social africano.

É essencial ressaltar que os europeus ao entrarem em contato com os povos do continente africano detectaram diferenças físicas e culturais entres eles, porém encontraram também características comuns, como por exemplo, a cor da pele e o cabelo. Idealizaram, assim, uma imagem geral do negro africano e o considerou uma anomalia em comparação com o homem branco. Essa evidente relação de do-minação e submissão estabeleceram o contato e a relação entre colonizador e colo-nizado:

Entre colonizador e colonizado só há lugar para o trabalho forçado, para a intimidação, para opressão, para polícia, para o tributo, para o roubo, para a violação, para a cultura imposta, para o desprezo, para a desconfiança, para o silêncio dos cemitérios, para a presunção, para a grosseria, para as elites descerebradas, para as massas envilecidas. Nenhum contato humano, somente relação de dominação e de submissão que transforma o homem colonizador em vigilante, em suboficial, em anteparo, e ao homem nativo em instrumento de produção (CÉSAIRE, 2010, p. 31-32).

Os negros colonizados foram considerados não como seres humanos e sim como animais selvagens inaptos ao que o colonizador concebia como civilização, uma vez que, além de escravizá-los em trabalhos compulsórios nas minas, fazendas de canaviais e cafezais, buscou domesticá-los impondo novos hábitos, nova cultura, nova religião e principalmente proibindo-os de usarem seus próprios nomes (símbolo de identificação) dando-lhes outros que não tinham significado para a cultura negra.

As mulheres, como os grupos étnicos não europeus, foram consideradas unicamente como dotadas de “corpo”. Foi nessa sociedade na qual o corpo é compreendido como algo inferior à mente e relacionado ao pecado, à tentação e à sexualidade que homens e mulheres negras foram significados como “corpo”. A significação desse processo para os povos africanos é analisada por Leda Martins (1997), em Afrografia da Memória:

Os africanos transplantados à força para as Américas, através da Diáspora negra, tiveram seu corpo e seu corpus desterritorializados. Arrancados de seu domus familiar, esse corpo, individual e coletivo, viu-se ocupado pelos emblemas e códigos do europeu, que dele se apossou como senhor, nele grafando seus códigos lingüísticos, filosóficos religiosos, culturais, sua visão de mundo. Assujeitados pelo perverso e violento sistema escravocrata, tornados, estrangeiros, coisificados, os africanos que sobreviveram às desumanas condições da travessia marítima transcontinental foram destituídos de sua humanidade, desvestidos de seus sistemas simbólicos, menosprezados pelos ocidentais e reinvestidos por um olhar alheio, o do europeu. Esse olhar, amparado numa visão etnocêntrica e eurocêntrica, desconsiderou a história, as civilizações e culturas africanas, predominantemente ágrafas, menosprezou sua rica textualidade oral [...] a África aparecia no imaginário europeu como o território do primitivo e do selvagem que se contrapunha as idéias de razão e de civilização,definidoras da pretensa “supremacia” racial e intelectual[dos europeus]

A citação acima expõe como o processo de escravização dos negros africanos na Diáspora negra, processo histórico escravocrata que deixou uma grande marca de exclusão na vida dos ex-escravos e de seus descendentes. Nesse processo o colonizador buscou marginalizar ao máximo a figura do negro, construindo e impondo valores culturais e uma identidade positiva para si e, para os colonizados negros, uma identidade negativa. O processo a que foram submetidos, seus corpos físicos e a simbologia destes, tudo foi consequência da perspectiva dos europeus.

Suscitando acerca das escritoras negras, ao contrário do que se pensa, muitas foram às mulheres que escreveram no século XIX, como comprovam pesquisas recentes, como a que resultou na publicação da antologia Escritoras Brasileiras do século XIX, organizada por Zahidé Lupinacci Muzart. Dentre as cinquenta e três escritoras do primeiro volume, temos a figura da mulata Maria Firmina dos Reis, nascida em São Luiz do Maranhão, em 11 de setembro de 1825, filha de João Pedro Esteves e Leonor Felipe dos Reis, que aos cinco anos mudou-se com a família para

Guimarães, interior do Maranhão, onde vai viver até sua morte em 1917, aos noventa e dois anos.

De acordo com Duarte (2009):

Úrsula, não somente é o primeiro romance abolicionista brasileiro, mas também o primeiro a tematizar “o assunto negro a partir de uma perspectiva interna e comprometida politicamente em recuperar e narrar a condição do ser negro em nosso país.” (DUARTE, 2009, p.277)

As escritoras negras, em particular, têm sido sub-representadas nas histórias e críticas literárias. Os seus textos, na maioria das vezes, são ignorados ou tidos como literatura de “inferior qualidade” dentro da Academia, lugar que deveria ser desprovido de quaisquer preconceitos. Foram vários e eficientes os recursos utilizados pelos “donos” do campo literário para, através do silenciamento, tornar inaudíveis as vozes de mulheres negras que tentavam reescrever suas histórias e inseri-las na produção textual brasileira.

Essas vozes negras que aqui serão mencionadas desvelam-se portadoras de falas intensamente comprometidas com memórias individuais e de grupo, interessadas em participar tanto do universo da produção literária brasileira quanto da invenção de uma escrita na qual as mulheres negras, como sujeitos autorais, falem de si e de suas expectativas, de suas realizações, amores, medos e projetos. Textos de Aline França, Mel Adún, Fátima Trinchão, Rita Santana, Jocélia Fonseca, Elque Santos, Lita Passos e Urânia Muzanzu são exemplos de vozes contemporâneas da nossa literatura afro nacional.

Pode-se mencionar como um grande nome a escritora Maria Carolina de Jesus (1914-77), que nasceu em Sacramento, Minas Gerais, já no século 20; semianalfabeta, desescolarizada, passou parte da sua vida como catadora de papel nas ruas de São Paulo para alimentar os três filhos de pais diferentes, na Favela do Canindé. Os escritos de Carolina de Jesus, antecipador do gênero “depoimento” e “testemunho”, viraram de pernas para o ar e escandalizaram os presumidos padrões da época, escancarando as portas de um ambiente desconhecido e curioso, o das habitações populares, como outrora fora exposto e revelado o das senzalas.

Conceição Evaristo, nasceu em Belo Horizonte, em 29 de novembro de 1946. É uma das escritoras negras brasileiras, que além de questionar a utilidade do silenciamento da vivência da maternidade negra, aponta para o surgimento de várias escritoras negras em cujas obras o “corpo-mulher-negra deixa de ser o corpo do “outro” como objeto a ser descrito, para se impor como sujeito-mulher-negra que se descreve.” (EVARISTO, 2005, p.54)

Nascida na Ilha de São Luís, no Maranhão, em 11 de março de 1825, Maria Firmina dos Reis desconstrói uma história literária etnocêntrica e masculina até mesmo em suas ramificações afrodescendentes.

Em 1847, Maria Firmina venceu concurso público para uma Cadeira de Instrução Primária (cargo que ocupou até se aposentar, em 1881) e, por ocasião de sua nomeação, com apenas vinte e dois anos, já demonstra sua solidariedade aos oprimidos, pois, conforme lembra seu biógrafo José Nascimento Moraes Filho, em Maria Firmina, fragmentos de uma vida, “querendo seus familiares que fosse de palanquim receber o seu título de nomeação, recusou-se irrevogavelmente, verberando: ´NEGRO NÃO É ANIMAL PARA SE ANDAR MONTADO NELE!` E foi a pé!” (1975, s/p). Além de mestra, Maria Firmina também foi escritora e musicista, publicou livros, colaborou na imprensa local com ficções, poesias, crônicas, enigmas e charadas e compôs, inclusive, o Hino à libertação dos escravos. Gupeva (1861) foi seu segundo romance; o conto A escrava (1887) e um livro de poemas denominado de Cantos a beira-mar (1871).

O romance Úrsula foi publicado em 1859, e fortemente influenciado pela literatura gótica, narra os sofrimentos da jovem protagonista, que logo após ter encontrado o grande amor da sua vida, o jovem Tancredo, passa a ser perseguida pelo comendador Fernando. O infeliz triângulo amoroso leva os três personagens a morte. Apesar de não oferecer uma grande profundidade na concepção dos personagens, ou da trama, a inovação da obra é o tratamento dado ao tema da escravidão, como aponta Eduardo de Assis Duarte. Os escravos Túlio e Mãe Susana não só são desempenham papéis determinantes, mas têm voz e um passado, sobre o qual discorrem. Há um capítulo inteiro para que Mãe Susana relembre sua vida livre em África. É um capítulo curto, mas que serve de pretexto para que a narradora discuta questões como liberdade, cativeiro, civilização e barbárie, diáspora negra, matrimônio e maternidade.

Em reconhecimento à sua notável atuação, existe hoje em São Luiz, uma rua e um colégio que levam seu nome e um busto na Praça do Pantheon. Mais ainda, a data do seu nascimento foi escolhida como o “Dia da Mulher Maranhense”. Ao contrário do que mostram muitos romances da época, escritos por seus companheiros, Úrsula é a história trágica de uma sociedade submetida às contingências arbitrárias da ordem patriarcal. A partir dessa constatação, observa-se que na representação romanesca de Maria Firmina, a idealização da família burguesa e a sua preservação estavam em risco, caso, a razão patriarcal insistisse, através de seus patriarcas sanguinários, em dar continuidade a uma organização social arbitrária. Como trabalho intelectual, a referida obra é considerada como meio de reinvenção simbólica da identidade pessoal de sua escritora, e também na reinvenção de outros sujeitos, através dos quais simbolicamente, as suas condições de brasilidade serão construídas. Aliás, esse aspecto é crucial para entendermos as imagens de exílio na memória dos africanos e afrodescendentes no romance.

Sendo assim, Úrsula é considerada o primeiro romance abolicionista brasileiro e, desde então, a autora Maria Firmina dos Reis colaborou assiduamente com vários jornais literários, entre eles, A Verdadeira Marmota, Semanário Maranhense, O domingo, O País, Pacotilha, Federalista.

Portanto, a busca de legitimidade intelectual e social encontra-se atrelada a afirmação de negritude da escritora como um ser social. Não há para ela outra maneira de forjar um novo sujeito, a não ser a partir da escrita. É através dela que a escritora busca justiça social, muito embora, suma aparentemente certa atitude de timidez e humildade próprias do discurso feminino na época, como uma estratégia de negociação entre o seu mundo privado e a comunidade em que vivia.

Por meio de sua obra de considerável valor memorial e nos oferece um retrato corajoso da vivência e da interrupção da maternidade negra durante o período da escravidão na Brasil. Aponta para temas como amor, abandono, violência, separação, que estavam inexoravelmente associados à experiência da maternidade negra, temas que a diferenciam da experiência de maternidade vividas por mulheres de outras classes e etnias.

CAPÍTULO II

UM ESTUDO SOBRE IDENTIDADE

O presente capítulo aborda acerca da identidade do ser humano. Essa identidade passa por entre as teorias sociais contemporâneas nas quais intelectuais buscam definir um conceito exato, porém não conseguiram esse feito, devido ao surgimento da globalização que provocou instabilidades nas estruturas de velhas identidades culturais fixas, necessitando assim a revisão desse conceito.

2.1 Conceito de Identidade

Stuart Hall (2006, p. 8-9), em seu livro A identidade cultural na pós-modernidade, declara que “o próprio conceito qual estamos lidando, ‘identidade’, é demasiadamente complexo. (...) é impossível oferecer afirmações conclusivas ou fazer julgamentos seguros (...)”. Tendo em vista o mencionado, é perceptível que o conceito de identidade não pode ser entendido por uma única definição, uma vez que as transformações nas estruturas das sociedades e, consequentemente, no meio no qual os sujeitos estão inseridos conduz às mudanças de concepções.

Hall (2006) distingue três concepções muito diferentes de identidade: 1 - o sujeito iluminista, 2 - o sujeito sociológico e 3 - o sujeito pós-moderno. O sujeito iluminista é o “centro essencial do eu era uma identidade de uma pessoa”, isto é, aquele sujeito unificado, dotado das capacidades de razão, de consciência e ação. Uma concepção na qual o sujeito centrado apenas em si, considerando-se o núcleo da identidade. Já na concepção do sujeito sociológico, devido ao surgimento da modernização, há uma reflexão de pensamentos e atitudes, em outras palavras, o sujeito tem discernimento que não era autônomo e autossuficiente, percebendo que a necessidade de ter relação com o exterior com “outras pessoas importantes para ele”, para mediar a interação entre o mundo “interior” e o “exterior”. A concepção do sujeito pós-moderno é a junção das duas concepções anteriores, tendo em vista que um sujeito não tem uma identidade fixa, essencial ou permanente. Tornou identidade “uma celebração móvel”, transformada pela interação com o meio social.

Woodward (2000) nos mostra que é possível buscar alguma clareza na afirmação da identidade do sujeito na história deste ou até mesmo em aspectos biológicos, que dependendo do sujeito contexto e do momento social podem impor a este uma identidade.

Entende-se que o conceito de identidade não tem uma única definição, uma vez que não está relacionado apenas com o interior da pessoa, mas também com a relação que o indivíduo estabelece com o mundo exterior, uma vez que ela é influenciada pelas transformações e as mudanças das identidades fixas provocadas pela modernidade/globalização, tendo em vista que essas modificações se constituíram num processo de mutabilidade.

Kabengele Munanga, outro importante teórico no estudo da identidade, afirma que o “conceito de identidade evoca sempre os conceitos de diversidade, isto é, de cidadania, raça, etnia, gênero, sexo etc” (MUNANGA, 2003, p. 4).

Desse modo, levando-se em consideração que a identidade é algo que a cada momento se aprimora e é um processo em construção, o sujeito deste construto em suas relações sociais dialéticas, deve levar-se em conta a diversidade, já que está inserido em uma sociedade diversificada composta de componentes com características distintas.

Recorremos ao conceito de identificação da psicanálise, dentro desta a identificação pode ocorrer de duas maneiras: uma consciente e outra inconsciente. Porém o que nos interessa é a identificação consciente, tal qual aparece na obra Úrsula, quando a mulher escrava, principalmente na condição de mulata, de acordo com a autora supramencionada, teve suas características físicas utilizadas como argumentos que justificassem os ataques sexuais que sofria. Giacomini (2012) contrapõe Freyre (1933/2004), quando este analisa a relação entre senhor e escrava, demonstrando o entrelaçamento entre homens brancos e mulheres negras, para descrever o processo de miscigenação brasileira.

Para a autora, o discurso de Freyre trata-se de uma inversão do que, de fato, ocorria no Brasil colonial, pois, infelizmente, naquela época, era este o lugar que a escrava ocupava na sociedade patriarcal, sendo vítima de abusos moral, físico e psicológico por parte de seus patrões. As agressões físicas e psíquicas sofridas pelas mulheres negras durante a escravidão ainda repercutem nesta população, que sofre o duplo processo de desumanização, por serem negras e por serem mulheres. Elas vivenciam os mais cruéis dos machismos e racismos, amargando os piores indicadores sociais (Silva & Areosa, 2012).

Desse modo, a negritude consiste no negro assumir plenamente a si, buscar na sua história suas origens e suas culturas. Lutar por um ideário coletivo junto com os seus, para reconquistar seus valores, resistindo aos desmandos do europeu. A pessoa que se reconhece se assume e se orgulha do seu pertencimento a um povo, está mais propício a contribuir consigo mesmo e com o grupo social ao qual pertence. Assumir a negritude é um ato político, conforme comprovado na citação abaixo:

A reconstrução da identidade negra faz parte de um processo que teve início com a escravidão do africano e o seu deslocamento forçado para um território desconhecido. Desterrados de sua terra natal, os povos africanos tentaram de vários modos reconquistar sua liberdade física e psico-social (FERREIRA, 2005, p. 28).

No universo feminino da mulher negra, existem questões que vão além do quesito estético. No entanto, a vaidade também se faz presente no cotidiano delas, tais como preocupação com cabelo, unha, vestes e etc, como maneira de manter viva a cultura de seu povo. Tal entendimento revela uma complexidade: o cabelo crespo e o corpo negro só adquirem significado quando pensados no cerne do sistema de classificação racial brasileiro. Os salões étnicos se revelam, no decorrer do tempo, como espaços culturais, corpóreos, estéticos e identitários e, por isso, nos ajudam refletir um pouco mais sobre a complexidade, as ambiguidades e os conflitos em torno da identidade negra.

Uma sociedade racista é uma sociedade que através de um biologização explícita ou implícita essencializa e congela os processos dinâmicos de uma formação de identidades, remetendo-os para os domínios de uma perenidade racista. (MARQUES, 1995, p.47)

Há um evidente realce nas fronteiras entre mulheres negras e brancas, em que as militantes do movimento de mulheres negras buscam demonstrar a importância da autonomização do movimento feminista, a reivindicação desse movimento não contemplava todas as mulheres, fazendo-se necessário dar voz aquelas pessoas que eram vistas como anti-musas da sociedade (com referencial a beleza da mulher branca), vítimas da política da “boa aparência” e submetidas a uma opressão nitidamente diferente daquelas sofridas pelas mulheres brancas.

Marques (1995), afirma:

Nem todos na sociedade levam em consideração marcadores físicos para caracterizar grupos sociais, e quanto mais for utilizados por este dispositivo classificatório em um sociedade, mais racista ela será. (MARQUES, p. 45)

As representações que se tem da mulher negra é da mulata sensual, da negra que serve bem aos serviços domésticos de si mesma ou como serviçais de madames brancas, da mulher suburbana e sem cultura, sem intelecto, enfim, inferior às mulheres brancas. Não apenas o aspecto sócio econômico interfere nesse processo, mas os agenciamentos linguísticos e discursivos produzidos na mídia em geral contribuem para a manutenção deste olhar deturpado, desigual e preconceituoso em relação à mulher negra.

A linguagem utilizada nos produtos de beleza, por exemplo, nem sempre traz uma representação positiva. É comum encontrar em produtos para cabelo afro todo o estigma que a sociedade tem em relação ao negro, ou seja, a linguagem utilizada passa a ideia de uma feminilidade grotesca. Expressões como “cabelo rebelde”, “indisciplinados”, “difíceis de pentear”, cabelos que precisam ser “domados”, “volumosos”, “crespos”, “buchas”, são algumas dos termos que aparecem em produtos de beleza femininos e nas falas da sociedade em geral.

Assim, características próprias do cabelo afro como o volumoso, o crespo, são tidas como negativas, algo que deve ser “tratado”, bem como características de caráter como “indisciplinado”, “rebelde” são associadas ao corpo negro numa extensão do que subjetivamente já se constitui no imaginário social em relação ao negro. Essas marcas da feminilidade negra são tratadas como estigmas, lembrando-se que no período colonial, os corpos das mulheres negras eram vistos como convidativos para crescimento da libido e despertar sexual dos homens brancos, sobre o argumento de serem mais fogosas que as mulheres brancas, como se pode verificar na citação abaixo:

O imaginário associado aos nossos cabelos é extremamente negativo, ligado à feiúra, ao mau gosto e à anormalidade. Duran-te anos, a atitude de irmãos e irmãs negras ao redor do mundo em relação ao “problema” do cabelo tem sido a busca de inter-venções químicas que o trouxessem para mais próximo do tipo de cabelo “padrão”, associado ao belo e ao bom gosto: o liso. O filósofo afro-americano Cornel West, em um dos seus lúcidos escritos, mostra como uma das facetas mais difíceis de comba-ter o racismo está associada ao inconsciente, ao subjetivo. A partir dessa perspectiva, o corpo negro é concebido num misto de repulsa, desejo e lócus de manipulação. Se, por um lado, partes como a boca, o nariz, o cabelo e a cor da pele são vistos como aberrações e tendem a ser rejeitados, levando a uma bai-xa autoestima, por outro, o contraponto é a valorização exacer-bada de imagens e idéias estereotipadas de homens e mulheres negras superdotadas física e sexualmente. (MACEDO, 2009, Rev. Afroeducação)

Há registros da luta que representa a resistência da negritude africana que foi trazida para o Brasil pelos navios negreiros para viverem em regime de es-cravidão e, mesmo sendo perseguida, massacrada e hostilizada, a luta continuou. Como exemplo, destacamos, entre outros, o surgimento dos quilombos formados pelos negros (as) que fugiam do cativeiro e construíam o seu espaço de liberdade, estes são a prova viva dessa simbologia de resistência e que ainda existe até hoje.

A autoafirmação do ser negro enquanto opção é polêmica e provoca-dora, pois num primeiro momento, é impossível cogitar a cor da pele como uma op-ção, pois sempre relacionamos o “ser negro” a uma condição natural, essencializa-da numa concepção biológica. É, também, provocadora, porque transpõe o “ser ne-gro” para uma concepção cultural e antropológica, construída na relação com o ou-tro, ao mesmo tempo em que, sutilmente, revela a existência de uma referência do que é ‘ser negro’, como uma identidade já constituída na sociedade e reivindicada quando se faz necessário.

Esta opção se dá no momento de reivindicar esta identidade, pois são as relações que estabelecem essas necessidades, como refletiu Noemi Kellermann 2008): “Essa identidade, esse sentimento de estar no mundo como negro, digamos assim, a gente vai desenvolvendo no decorrer do tempo. Porque o ser negro, e essa identidade de negro ela vai se configurando nessas relações que temos com as pessoas. E tu olhas para o teu interior e o que afinal você tem de diferente sendo negro? O que as pessoas veem de diferente que as afasta ou aproxima. Porque tem as pessoas que se aproximam porque tu és negra, tem o fascínio pelo negro. E tem pessoas que se afastam por ter medo do diferente”.

A situação das pessoas negras, no que diz respeito a sua valorização, reconhecimento, direitos, inclusão social e educacional, entre outros aspectos, é proclamada e oficializada em documentos mundiais e nacionais considerados rele-vantes para o convívio das pessoas em sociedade. Destacamos, como um destes documentos de relevância social, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, anunciada pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 1948 e proclamada mundialmente, ao apresentar no Artigo 2º que: “Toda pessoa tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades estabelecidos nesta Declaração, sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, língua, religião, (...) ou qualquer outra condição”.

Com relação à legislação de âmbito nacional, também encontramos respaldo legislativo direcionado ao respeito dos direitos da pessoa negra, na Carta Magna do Brasil, atual Constituição Brasileira, publicada em 1988 que expressa no seu Artigo 5º que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”. Portanto, sem distinção de cor da pele, raça ou etnia.

Para findar as discussões sobre identidade da mulher negra, temos que levar em consideração o processo de construção ou produção dessa identidade, como diz Silva (2011, p. 84), “oscila entre dois movimentos: de um lado, estão aque-les processos que tendem a fixar e a estabilizar a identidade; de outro, os processos que tendem a subvertê-la e a desestabilizá-la”. É exatamente o sentimento de cole-tiva que busca organizar lutas, movimentos e ações para eliminar o preconceito, a discriminação racial e o racismo e reivindicar direitos.

CAPÍTULO III

A IDENTIDADE DA MULHER NEGRA NO ROMANCE ÚRSULA

No presente capítulo introduziremos, a partir das leituras críticas do corpus literário, as análises dos perfis da mulher negra na obra supracitada. Em Úrsula, a abordagem crítico teórica proposta na autoria feminina e das vozes femininas nessa obra em questão é um ato de transgressão, pois é possível notar desde o prefácio como a autora manifestou sua voz particular na obra, apresentando o livro ao público leitor através de palavras que demonstram sentimentalismo, mas que também podem ser vistas como uma estratégia para adentrar ao restrito mundo literário da época.

Mesquinho e humilde é este que vos apresento, leitor. Sei que passará entre o indiferentismo glacial de uns e o riso mofador de outros, e ainda assim o dou a lume. (...) Sei que pouco vale este romance, porque escrito por uma mulher, e mulher brasileira, de educação acanhada e sem o trato e conversação dos homens ilustrados, que aconselham, que discutem e que corrigem, com uma instrução misérrima, apenas conhecendo a língua de seus pais, e pouco lida, o seu cabedal intelectual é quase nulo. Então por que publicas? Perguntará o leitor. Como uma tentativa, e mais ainda, por este amor materno, que não tem limites, que tudo desculpa – os defeitos, os achaques, as deformidades do filho – e gosta de enfeitá-lo e aparecer com ele em toda parte, mostrá-lo a todos os conhecidos e vê-lo mimado e acariciado. (...) Pobre avezinha silvestre, anda terra a terra, e nem olha para as planuras onde gira a águia. (REIS, 2004, pp. 13-14)

No romance Úrsula, a autora Maria Firmina dos Reis aborda a temática da escravidão de uma forma inovadora. Através da obra literária, a autora teve uma atitude política de denúncia das injustiças vividas na sociedade patriarcal brasileira do século XIX, principalmente pelas mulheres e pelos escravos. Nesta obra, a escritora relata a escravidão sob o ponto de vista dos escravos, dando a estes vozes para que pudessem relatar suas memórias, não só da sua terra natal, mas da travessia até chegar ao Brasil, a violência a que os escravos eram submetidos em tal travessia já em terras brasileiras, e ainda, usando a voz de uma escrava, em que o discurso acanhado e tímido introduz a mulher do século XIX, que embora neste caso, a autora se atreva a escrever e tornar pública sua opinião, esta ainda era mantido sob o julgo de uma ideologia social construída pelo domínio da força masculina e assujeitamento da mulher a condição de subserviência e anulamento.

A negação e negligência a identidade feminina baseia-se no argumento da condição inferior atribuída ao gênero, construída a partir de princípios biológicos de hierarquização das classes humanas, que historicamente constituíram o homem como um ser superior, o que justifica o tratamento de indiferença dispensado as mulheres. Essa relação é cultivada pelos elementos de poder que se entrelaçam e se disseminam em todas as relações sociais, determinando os papeis do indivíduo, conforme trata Foucault (1998, p. 295), ao apontar que “o poder é algo que se exerce, que se efetua, que funciona. E funciona como uma maquinaria, como uma máquina social que não está situada em um lugar privilegiado ou exclusivo, mas se dissemina por toda a estrutura social. Não é um objeto, uma coisa, mas uma relação”. Deste modo, entende-se que a estereotipização do gênero e da raça se funde pelo tratamento depreciativo dado a mulher negra na sociedade, fortalecendo a construção dos rótulos construídos pela ideologia dominante, nesse caso, a dos brancos eurocêntricos.

Maria Firmina dos Reis questiona a alforria, a possibilidade de ser “livre” em um país escravocrata como era o Brasil no século XIX. A obra de Maria Firmina dos Reis é interessante sob diversos aspectos, dentre os quais a denúncia de injustiças praticadas livremente em uma sociedade autoritária e patriarcal que, no Brasil, era percebida por alguns intelectuais e, sobretudo, pelas minorias mais afetadas, como o negro e a mulher.

De acordo com Telles (1997), o que mais distingue Úrsula como livro não é o enredo romântico de amor, dor, incesto e morte, temas comuns ao romance do século XIX, mas o tratamento dado à questão do escravo. A obra se diferencia das outras e, sobretudo, das produções literárias de seu tempo. Se tomarmos como exemplo os romances Iracema e O Guarani, de José de Alencar, no que se refere ao ideal nacionalista de uma literatura comprometida com a construção da ideia de nação, saberemos que estes dois livros são particularmente sintomáticos, pois traduz na construção dos personagens indígenas a idealização da colônia, traçando-os como dóceis, bons, símbolos de bravura e inocência, desde que demonstrem sensibilidade passiva aos feitos civilizatórios do nobre português.

Antes de qualquer apontamento crítico sobre Úrsula e Maria Firmina dos Reis (1825 – 1917) é preciso situar os dois elementos que marcam a paisagem histórico-social de criação desta obra de vanguarda da segunda metade do Império Brasileiro, já que o livro é publicado no ano de 1859. Nesse sentido, praticamente esses dois elementos são componentes de fundo que delinearam a maioria das análises posteriores acerca do romance dessa escritora maranhense.

Não se trata aqui de analisar a relação entre o trabalho artístico da autora e a obra, uma crítica que recaiu depois de alguns anos sobre a perspectiva de crítica literária encampada pelo funcionalismo russo. A questão primordial dessas palavras iniciais é situar o lugar social de Maria Firmina dos Reis – que era educadora por ofício e escritora por vocação – e o clima histórico do Estado Brasileiro, numa tentativa de apreender, na interface entre história e literatura, o significado dessa obra e os significados das personagens na estrutura narrativa do romance, enaltecendo seu valor educacional na luta e combate as opressões motivadas por raça, condição social ou sexo.

O primeiro elemento diz respeito ao fato do livro poder ser entendido enquanto uma obra não necessariamente apenas “de vanguarda”, “mas também na vanguarda”, por ter sido escrito por uma mulher, inclusive, de acordo com o crítico literário Nei Lopes (2007), Úrsula foi o primeiro romance a ser escrito por uma mulher brasileira.

Sobre esse aspeto sublinha Maria Firmina dos Reis ao tecer o prólogo de Úrsula:

Não é vaidade de adquirir nome que me cega, nem o amor próprio de autor. Sei que pouco vale este romance, porque escrito por uma mulher, e mulher brasileira, de educação acanhada e sem o trato e conservação dos homens ilustrados, que aconselham, que discutem e que corrigem, com uma instrução misérrima, apenas conhecendo a língua de seus pais, e pouco lida, o seu cabedal intelectual é quase nulo. (REIS, 1859, p.7)

Sem dúvida, o romance é uma obra-documento e a própria declaração de Maria Firmina dos Reis é uma sutil, mas providencial evidência do estado de marginalidade das escritoras brasileiras, em relação aos homens. Não pretendemos nos aprofundar nesse debate. Porém, essa é uma qualidade do romance que despertou alguns dos muitos estudos na área de ciências da linguagem, crítica literária, história comparada, como também, na interface entre estudos literários e história do Império Brasileiro.

O segundo elemento que salta aos olhos é da ordem do conteúdo histórico-literário do romance, ao evocar com veemência a denúncia de uma instituição, que nada mais nada menos, era uma das origens do status quo da elite nacional e a base de sustentação econômica do país.

A crítica à instituição escravista é temática tratada com ênfase nesse romance. Ela se enraíza no fluxo narrativo da trama e mantem-se com a igual intensidade até o final do romance, que é cercado por acontecimentos infaustos e reviravoltas na vida dos personagens.

O romance é narrado em terceira pessoa e o narrador é um observador atento do desenrolar dos acontecimentos do enredo. Com frequência, o narrador exprime sua opinião. A estruturação do romance se dá em vinte capítulos: “Duas almas generosas”; “O delírio”; “A declaração de amor”; “A primeira impressão”; “A entrevista”; “A despedida”; “Adelaide”; “Luísa B..”; “A preta Suzana”; “A mata”; “O derradeiro adeus!”; “Foge!”; “O cemitério de Santa Cruz”; “O regresso”; “O convento de ***”; “Fernando P...”; “Túlio”; “A dedicação”; “O despertar” e “A louca”.

Um dos pontos em que se pode observar o desenrolar da identidade da mulher negra, na obra, é na seguinte passagem: “[…] Se é ela virtuosa, nossos filhos crescem abençoados pelo céu; porque é ela que lhes dá a primeira educação, as primeiras ideias de moral; é ela enfim quem lhes forma o coração, e os mete na carreira da vida com um passo, que a virtude marca” (p. 45), ou seja, essa identidade depende da avaliação do homem branco, o qual diz como deve se portar a mulher daquela época, uma vez que segundo Bourdieu (2009, p. 18), “a força da ordem masculina se evidencia no fato de que ela dispensa justificação: a visão androcêntrica impõe-se como neutra e não tem necessidade de se anunciar em discursos que visem a legitimá-la”.

Essa questão da identidade pode ser percebida também logo no início da obra, quando a autora, em meio a um discurso de coragem, perceptível através de sua escrita e, ao mesmo tempo resistência, traz um certo receio de aceitação, pois tem consciência de sua condição de subserviente ao afirmar que:

Não é vaidade de adquirir nome que me cega, nem o amor próprio de autor. Sei que pouco vale este romance, porque escrito por uma mulher, e mulher brasileira de educação acanhada e sem trato e conversação dos homens ilustrados, que aconselham, que discutem e que corrigem, com uma instrução misérrima, apenas conhecendo a língua de seus pais, e pouco lida, o seu cabedal intelectual é quase nulo.” (REIS, 2004, p. 16)

A estratégia utilizada pela autora na crítica à escravidão é de natureza interna. A partir do desenvolvimento e movimentação das personagens no corpo literário da trama ela tece seu posicionamento antiescravista, colocando na boca dos personagens as atrocidades a que estão sujeitos homens e mulheres que nascem sob o jugo cruento do chicote, dos grilhões e do açoite. Maria Firmina dos Reis escreve Úrsula no momento em que a poesia de combate à escravidão era escrita por Castro Alves, – talvez até a principal do século XIX, nesse trabalho – ao ressaltar a condição submissa das escravas perante o seu Senhor, visto que as mesmas eram “usadas” sem a mínima consideração por parte de quem às considerava como mero objeto de prazer.

Vemos em Úrsula características marcantes do romance brasileiro. Isso está patente, por exemplo, na forte amizade que se sucede entre Túlio e Tancredo, que após um acontecimento infausto, a queda de Tancredo de um cavalo, é socorrido com atenção e humanidade pelo cativo que cruzou com o jovem rapaz branco. Como numa utopia entre as classes, a autora coloca o escravo em socorro do jovem cavaleiro.

Túlio, ao mesmo tempo, comedido pela própria situação é pela condição humilhante de escravo, procura logo meio de ser útil:

o negro redobrava de cuidados, de novo aflito pela mudez de seu doente [Tancredo]. E o dia crescia mais, e o sol, requeimando a erva do campo, abrasava as faces pálidas do jovem cavaleiro, que soltandooutro gemido mais prolongado e mais doído, de novo abriu os olhos (REIS, 1859, p. 12).

Nas páginas iniciais do romance além de uma descrição da natureza maranhense é o acaso do encontro entre Túlio e Tancredo, e mais ainda, a perplexidade causada no leitor pelos rumos romanescos que toma a obra nos primeiras palavras trocadas entre o escravo e o rapaz.

– Quem és – perguntou o mancebo ao escravo, apenas saído do seu letargo. Por que assim mostras interessar-te por mim?!... – Senhor! – balbuciou o negro – vosso estado... Eu – continuou com acanhamento, que a escravidão gerava – suposto nenhum serviço vos possa prestar, todavia quisera poder ser-vos útil. Perdoai-me!– Eu? – atalhou o cavaleiro com efusão de reconhecimento – eu perdoar-te! Pudera todos os corações assemelharem-se ao teu. E fitando-o, apesar da perturbação do seu cérebro, sentiu pelo jovem negro interesse igual talvez ao que este sentia por ele. Então nesse breve cambiar de vistas, como que essas duas almas mutuamente se falaram, exprimindo uma o pensamento apenas vago que na outra errava (REIS, 1859, p. 13).

Percebe-se o surgimento de uma relação altruísta, compadecida e humana. Este elemento é tão forte na narrativa ao ponto da autora, em alguns momentos, extrapolar a relação amistosa e fraterna que existe entre Túlio e Tancredo como na passagem citada acima.

Apesar de considerarmos que essa relação de amizade pudesse ter sido possível a partir de uma perspectiva historiográfica, entendemos que o eixo básico através do qual se sustenta a submissão do escravo é o exercício da violência. Podemos dizer que poderiam existir alguns casos em que senhores tratavam um pouco melhor seus escravos. Os jovens engajados na causa abolicionista eram mais familiarizados com o bom trato dos escravos, pois muitos haviam estudado na Europa e trouxeram ideias liberais de velho continente.

Maria Firmina dos Reis denuncia no acanhamento do escravo Túlio o forte estado de desumanização que a instituição escrava poderia causar no cativo. Na relação entre senhores e escravos, os senhores, e mais propriamente os seus capatazes procuravam tirar do escravo sua condição humana. Esse é um dos potenciais motivos para o negro quase sempre entender que está estorvando, incomodando, quando na verdade, no caso específico retratado pela autora é Túlio o salvador de Tancredo. O jovem se mostra tão grato que dá alforria a Túlio.

Naturalmente, a autora pretende provocar um imenso impacto subjetivo no leitor. É preciso atentar. O texto foi escrito para o público do século XIX, e, portanto, o alcance da obra pode ter chegado, em sua maioria, aos olhos de pessoas que eram a favor da escravidão, o que confere ao posicionamento da autora na utilização dos personagens um estado de utopia. Nessa medida Maria Firmina dos Reis é uma exímia e corajosa crítica da sociedade de sua época, pois as chances de ostracismo e perseguição por parte da elite imperial eram razoáveis.

Túlio não sabia, mas o delírio provocado por esse tombo da montaria que cavalgava Túlio não fora maior que o estrago que uma jovem chamada Adelaide causara em seu coração. Depois de socorrer Tancredo Túlio o leva à casa de uma jovem chamada Úrsula, que morava com sua mãe, mulher que atendia pelo nome de Luísa. Tendo seu marido foi brutalmente assassinado pelo próprio cunhado, falece com o desgosto de saber que a jovem Úrsula está sendo cortejada pelo tio, o comendador Fernando, que pretende se casar contra a vontade da moça.

Entretanto, a autora desfaz uma interpretação exageradamente utópica para sua escrita, na questão da idealização dos escravos, quando aborda o trajeto narrativo da personagem do escravo Antero, propriedade do comendador Fernando. Levado ao vício da embriaguez Antero é o extremo oposto de Túlio, virtuoso e afável cativo.

Ainda assim, é na personagem da negra Suzana, negra da casa de Úrsula, responsável pela criação de Túlio quando sua mãe falecera, que temos a face realmente politizada do pensamento de Maria Firmina dos Reis, como literata antiescravagista. Acostumada a por seu pensamento na boca das suas personagens, a voz de Suzana, quiçá, ipsis litteris, uma presença do alter ego da autora, quando através de apontamentos e juízos de valor moralizantes, traz evidências de que o bárbaro seria o branco que escravizava e não o negro, simplesmente por seu modo de vida e cor.

Em trecho do romance em que a personagem Suzana narra seu cativeiro, ela se enquadra na definição de Glissant (2005) como uma migrante nua, dando ênfase a saudade e ao doído sentimento de perda experimentado desde o momento em que foi capturada: “E esse país de minhas afeições, e esse esposo querido, essa filha tão extremamente amada, ah Túlio! Tudo me obrigaram os bárbaros a deixar! Oh! Tudo, tudo até a própria liberdade!” (REIS, 2004, p. 115)

Suzana é apresentada em três aspectos principais da personagem, fazendo-a sobressair a condição de dupla submissão que é imposta a Suzana, sendo mulher, negra e escravizada em meio a sociedade patriarcal, desse modo, Susana é mostrado com as seguintes características: ela é mulher, portanto sensível; mãe, de uma pequena filha que foi obrigada a deixar na África e de Túlio; e escravizada, condição imposta em terra estranha e que não a pertence, dentre essas características, segundo Mendes (2013):

A questão mais importante na análise da personagem negra-mãe Susana, é a escravidão. Maria Firmina dos Reis dá voz à escravizada, fazendo que esta revele ao leitor o lado desumano da instituição escravista. Suzana afirma, inclusive que ‘tudo me obrigaram os bárbaros a deixar!’ [...], o que inverte o discurso em que o negro africano é mostrado como bárbaro e o branco europeu como civilizado. Na verdade, durante a narrativa, esses papéis se invertem constantemente. (MENDES, 2013, p. 130)

O relato de Suzana é vivo e demonstra a posição da personagem frente à instituição:

Meteram-me a mim e a mais trezentos companheiros de infortúnio e de cativeiro no estreito e infecto porão de um navio. Trinta dias de cruéis tormentos, e de falta absoluta de tudo quanto é mais necessário à vida passamos nesta sepultura até que abordamos as praias brasileiras. Para caber a mercadoria humana no porão fomos amarrados em pé e para que não houvesse receio de revolta, acorrentados como os animais ferozes das nossas matas, que se levam para recreio dos potentados da Europa. Davam-nos a agua imunda, podre e dada com mesquinhez, a comida má e ainda mais porca: vimos morrer ao nosso lado muitos companheiros à falta de ar, de alimento e de água. É horrível lembrar que criaturas humanas tratem a seus semelhantes assim e que não lhes doa a consciência de levá- los à sepultura asfixiados e famintos! (REIS, 2004, p. 117).

A narração da viagem no navio negreiro é repleta de construções que possuem semelhanças com o que de fato ocorria aos negros escravizados, assim, segundo Mendes (2006, p.116), o relato de Suzana assemelha-se a uma descrição real do personagem histórico Garbo Baquaqua, em que ele conta sua própria história no porão do navio negreiro.

Um momento interessante da resistência de Suzana ocorre também quando vai a caminho da fazenda de Fernando P., o homem que tanto a maltratou, no entanto, a velha negra já não teme a ira do comendador, assim como não teme a morte, que virá de forma muito mais digna do que a traição de suas próprias convicções, que a inocentam de toda e qualquer acusação proferida por Fernando P., desse modo, ela caminha em direção ao que lhe é infligido, mas vai em paz com a própria consciência:

Susana não vinha atada à cauda de um cavalo, caminhava com a fronte erguida, e com a tranquilidade do que não teme; porque é justo. - Foge Susana! – bradou-lhe da orla da estrada uma voz forte: ela pareceu nada ouvir e o padre continuou [...] - Fugir? Não, meu senhor. Não sabeis que estou inocente? - Louca – tornou ele – toma o meu cavalo e foge. Que importa àquela fera a tua inocência? Acaso não conheces o comendador? Susana replicou-lhe com vivo reconhecimento: - O céu vos pague tão generoso empenho, mas os que estão inocentes não fogem. (REIS, 2004, p. 187)

Nesse e em outros momentos da narrativa a personagem manifesta, assim, a consciência sobre os males da instituição escravista e a desigualdade de relações, fazendo com que reconheça muitos dos princípios que regem a sociedade patriarcal.

Depois de algumas trocas de olhares, dividida entre os desabafos de Tancredo e os cuidados com a mãe, o delirante rapaz jura seu amor pela moça. Como relata a personagem de Tancredo:

– Eu tinha o coração dilacerado por cruentas dores, – prosseguiu o moço, com voz pausada, após um momento de silêncio – e esse estado de penosa angústia ocasionou a enfermidade que me deu a ventura de conhecer-vos, e se vos não houvesse visto, se prolongaria até o extremo da vida, que não poderia tardar. Vós, Úrsula, aparecestes, e espancastes as trevas de tão apurado sofrimento. – Fostes o meu anjo salvador. Úrsula, eu vos amo! e se vossa alma simpatizar com a minha, meu coração vos tem escolhido para a companheira dos meus dias (REIS, 1859, p. 27).

O romance segue e o casal se desfaz. Tancredo vai morar longe de casa, em São Paulo, em decorrência de ter que concluir seu curso de direito. Com intensa saudade de sua mãe retorna para o Maranhão. Fique chocado com o tratamento que seu pai dá a sua mãe. Em casa, volta a ter a companha de Adelaide. A jovem é irmã do pai de Tancredo. Aparentemente, depois desse convívio e depois de perceber a projeção social de Tancredo a prima o aceita como esposo e os dois se casam.

O pai de Tancredo era um homem muito ignorante e dominador. Depois que sua esposa falece ele desposa a própria noiva do filho, que foi morto pela personagem de Fernando, obcecado pelo desejo de casar com Úrsula. Fernando, típico vilão de romance irá acabar seus dias num convento. Adelaide nunca encontrará homem que a faça feliz.

Entre triângulos amorosos e várias mortes a trama romanesca vai tomando um sentido trágico, funesto e até em certa medida macabro. Se pudéssemos eleger um elemento de natureza psicológica e abstrata para onde o pensamento da autora se desloca, ao movimentar as personagens que cria, esse elemento seria a infelicidade da maioria do envolvidos na trama.

Assim também, direta ou indiretamente – deixamos essa interpretação para os leitores – o livro está intensamente povoado pela moralidade cristã da autora. Através da obsessão, da injustiça e da crueldade de alguns personagens como o comendador Fernando, Maria Firmina dos Reis nos mostra que em Úrsula, sentimentos como o amor, a fraternidade e igualdade entre personagens de classes diferentes não puderam florescer, evidenciando que a saída para “o caminhar com Deus”, representada nos desdobramentos da trajetória desse vilão seria o arrependimento dos pecados.

Os colonizados negros, em todo o processo de colonização, sofreram bastante. Os que não foram dizimados, mortos em combate ou contaminados com doenças típicas do tráfego, foram raptados, arrancados de suas terras de origem e colocados nos porões dos navios negreiros, em que eram transportados nas piores condições e tratados como animais. Devido aos maus-tratos muitos não resistiam, morriam e tinham seus corpos jogados ao mar. Os que sobreviviam sofriam por deixar para trás o seu povo, sua família, sua cultura, sua identidade. Ao chegar ao destino do colonizador tornavam-se escravos, sofrendo ainda mais e tendo que passar pelas piores atrocidades, pois eram torturados, violentados e mortos se não obedecessem aos comandos dos senhores brancos.

Meteram-me a mim e a mais trezentos companheiros de infortúnio e de captiveiro no estreito e infecto porão de um navio. Trinta dias de cruéis tormentos, e de falta absoluta de tudo quanto é mais necessário à vida passamos n’essa sepultura até que abordamos às praias brasileiras. Para caber a mercadoria humana no porão fomos amarrados em pé e para que não houvesse receio de revolta, acorrentados como os animais ferozes das nossas matas, que se levam para recreio dos potentados da Europa: Davam-nos a agua imunda, podre e dada com mesquinhez, a comida má e ainda mais porca: vimos morrer ao nosso lado muitos companheiros à falta de ar, de alimento e de agua. É horrivel lembrar que criaturas humanas tractem a seos semelhantes assim e que não lhes doa a consciência de leval-os à sepultura asphixiados e famintos! (REIS, 1859, p 136)

Em uma passagem do capítulo IX, em que o discurso de Susana é posto em cena, desde a saída forçada de sua terra natal, a África, até o abandono de sua família e os horrores sofridos no navio negreiro:

– Sim, para que estas lágrimas?!...Dizes bem! Elas são inúteis, meu Deus; mas é um tributo de saudade, que não posso deixar de render a quem me foi caro! [...] Tranquila no seio da felicidade, via despontar o sol rutilante e ardente do meu país. Ah, Túlio, tudo me obrigaram os bárbaros a deixar! oh! tudo, até a própria liber-dade (REIS, 1859, p.115).

A autora também se inspira no discurso poético de seu tempo, lem-brando a poesia grandiloquente e com tom oratório: “-Senhor deus! Quando calará no peito do homem a tua sublime máxima –ama a teu próximo como a ti mesmo- e deixará de oprimir com tão repreensível injustiça ao seu semelhante!” (REIS, 1859, p. 23). O tom oratório presente na chamada poesia “condoreira” serve aqui como grandiloquência do pensamento liberal cristão, tão comum aos escritores adeptos da abolição na América.

Percebe-se que a originalidade do tema sobre a escravidão fica a car-go do capitulo IX, em que observamos a consciência e revolta desta personagem ao refletir sobre o seu passado, desde o exílio na África e o sentimento de dor e revolta ao tratamento desumano dispensado aos negros no Brasil:

[...] O comendador P... foi o senhor que me escolheu. Coração de tigre é o seu! Gelei de horror ao aspecto de meus irmãos... os tratos , por que passaram , doeram-me até o fundo do coração! O comendador P. derramava sem se horrorizar o sangue dos des-graçados negros por uma leve negligência, por uma obrigação mais tibiamente cumprida, por falta de inteligência! (REIS, 1859, p. 118).

Contrapondo a proposta inicial desse trabalho e a expondo apenas a título de informação, as mulheres brancas descritas no romance se encaixam em apenas duas categorias: anjos ou demônios. Tancredo, mocinho da história, des-creve sua mãe afirmando que “(...) meu pai era o tirano de sua mulher; e ela, triste vítima, chorava em silêncio e resignava-se com sublime brandura.” (REIS, 2004, p.60) Também afirma que “Meu pai era para com ela um homem desapiedado e or-gulhoso - minha mãe era uma santa e humilde mulher.” (REIS, 2004, p.60) A ex-pressão santa, igualmente se repete nas páginas 60, 64 e 67, entre outras. A função da esposa é descrita de forma clara, a de educar os seus filhos:

A esposa, que tomamos, é a companheira eterna de nossos dias. Com ela repartimos as nossas dores, ou os prazeres que nos afagam a vida. Se ela é virtuosa, nossos filhos crescem abenço-ados pelo céu; porque é ela que lhes dá a primeira educação, as primeiras ideias de moral; é ela enfim quem lhes forma o coração, e os mete na carreira da vida com um passo, que a virtude marca. Mas, se pelo contrário, sua educação abandonada toma-a uma mulher sem alma, inconsequente, leviana, estúpida, ou impertinen-te, então do paraíso das nossas sonhadas venturas despenhamo-nos num abismo de eterno desgosto.” (REIS, 2004, p.73,74)

As citações anteriores ilustram como os conceitos de femininidade, san-tidade e maternidade estavam interligados. Ser uma mulher virtuosa significava educar a prole de forma apropriada. A heroína do romance, Úrsula, é descrita como um ser etéreo, angelical, puro, estando de acordo com o que a ideologia vigente de-terminava para as mulheres (brancas, já que as mulheres negras pareciam ser jul-gadas por outros padrões).

Em oposição à natureza angelical de Úrsula, contrapõe-se a figura de Adelaide, o primeiro amor de Tancredo, a quem abandonou para desposar o pai do seu pretendente. Adelaide é descrita como uma mulher belíssima e sedutora, mas depois que sua traição é descoberta.

De acordo com Duarte (2004), percebemos nos trechos acima, o dis-curso do outro fazendo ouvir pela primeira vez na literatura brasileira a voz dos es-cravizados, identificando-se uma voz política que denuncia o conquistador europeu como bárbaro e a cultura de inferiorização dos negros. Este é um importante aspec-to a ser refletido, pois se pode observar que além da exploração do negro, o narrador pensa a questão do gênero. A voz feminina que não aceita a exploração, a humi-lhação, manifesta-se, assim, na voz da personagem Suzana.

O personagem Tancredo, o Comendador, é caracterizado como um homem atormentado, obcecado e possuidor de uma maldade extrema e capaz de tudo para conseguir realizar seus objetivos. Nota-se no decorrer da história que o mesmo é um homem perigoso e responsável pela morte do pai de Úrsula e da con-dição de enfermidade da mãe, Luísa B. Trava uma perseguição para desposar Úrsu-la a qualquer custo, como uma espécie de prêmio por sua condição. Percebe-se isto no trecho:

Úrsula podia deixar de aceitá-lo por tutor, e, ainda aceitando-o, recusar-se energicamente a ser sua esposa. O comendador estava afeito a mandar, e por isso julgava que todos eram seus súditos ou seus escravos (REIS, 1859, p. 178).

Assim, torna-se isolado do mundo exterior, sendo odiado por todos e também pelos seus escravos, afundado no subterrâneo de uma alma tenebrosa, o que o leva à morte, já totalmente ensandecido, com a rejeição de Úrsula. Percebe-mos aqui o olhar crítico e interpretativo da autora aos representantes do poder cen-tralizado, ao mandato patriarcal escravocrata no Brasil colonial, nas falas e entreli-nhas do discurso das personagens.

Simples e solitária era essa casa implantada sobre um pequeno outeiro, donde a vista dominava a imensidade dos campos. Um aspecto de nobre singeleza apresentava; pouca extensa era, mas coroava-a um agradável mirante, orlado de largas varandas, por onde uma onda de ar tépido divagava rumorejando (REIS, 1859, p. 29)

As mulheres daquela época viviam reprimidas pelos próprios maridos, tendo que servir de forma submissa as vontades deles, conforme comprovado na citação abaixo:

Meu pai era o tirano de sua mulher; e ela, triste vítima, chorava em silêncio, e resignava-se com sublime brandura. Meu pai era para com ela um homem desapiedado e orgulhoso – minha mãe era uma santa e humilde mulher (REIS, 1859, p. 49).

Se tratando do núcleo dramático de Tancredo, surge Adelaide, por quem se apaixonara quando retornou da faculdade de direito para casa e que o fi-zera sofrer de amor até encontrar Úrsula. A personagem Adelaide, bela e encanta-dora, era órfã de pai e mãe e foi acolhida pela mãe de Tancredo como uma filha. O Comendador não aceitava a união dos dois, mas após muitas insistências, permitiu o casamento entre eles, desde que o filho esperasse um ano, trabalhando em outra província. E aceitou a proposta do pai: “Baixei os olhos, meditei por largo tempo, e submeti-me a sua vontade férrea. Saí do seu quarto prostrado de amargura, e por-que a dor era funda em meu coração” (REIS, 1859, p. 58).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Esse trabalho teve como objeto de estudo o livro Úrsula, de Maria Firmina dos Reis, em que se buscou fazer uma análise da identidade da mulher negra na referida obra, ressaltando os fatores que se entrelaçam na construção desta identidade.

Com a análise do livro Úrsula, infere-se que a narrativa está entrelaçada na história e memória dos afrodescendentes, pois mesmo sendo uma obra de ficção há um retrato fiel da segregação da vida que os negros tinham/têm no período colonial e pós-colonial, evidenciado na mulher negra que vive em situação de subalternidade na sociedade, como foi salientado na obra por meio da protagonista Úrsula, que estão ligadas à pobreza, inferioridade, submissão e sexualidade por causa da sua cor e gênero, sofrendo uma dupla discriminação por causa da herança de um passado escravista.

Além disso, constata-se que o discurso do colonizador para inferiorizar o afrodescendente perante a sociedade e a si próprio foi um dos fatores que contribuíram para uma identidade negra negativa, no entanto, comprova-se que os negros resistem, persistem e mantêm suas identidades vivas na diáspora africana.

Narrativas afro femininas forjam, pelo imaginário, possibilidades de constituição de si e de reversão do já estabelecido em relação as afro-descendências. Nessas histórias, aparecem fios autobiográficos e de ficcionalização do cotidiano de suas autoras, levando a inferir que suas tramas podem ser textos ficcionalizados de registros, lembranças, recordações e recontos de si relacionados a histórias, identidades e memórias. Elas permitem serem lidas como práticas textuais em que confluem o real e o ficcional.

Notou-se que a autora, no romance, mostrou a figura da mulher negra vivendo em situação de tristeza, violência, pobreza, amor proibido, subalternidade e submissão, mas que também buscou descontruir esses paradigmas e estereótipos mostrando o feminino negro na luta para conquistar seu lugar e vencer as barreiras de segregação impostas pela sociedade. O princípio da universalidade aplica-se, no caso, à extensão das possibilidades de desenvolvimento das potencialidades humanas a todos os indivíduos, sem nenhum tipo de distinção.

Para finalizar, considera-se que as relações entre a mulher negra e outras instâncias da vida social foram descritas de forma muito contundente e a partir da análise do material empírico. Estes representam um estudo exaustivo e nem pretendem esgotar todos os olhares possíveis para essa publicação, tendo em vista que outras leituras são possíveis e desejáveis.

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Patrick Sousa e JULIANA DOS SANTOS SILVA
Enviado por Patrick Sousa em 22/06/2018
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