JUSTIÇA SOCIAL E A PAZ

Antônio Coletto

Toda vez que se invoca os termos justiça e injustiça, seja como componente da Ética ou de outro nicho cultural, ou considerando-a uma ciência autônoma, caminho indispensável para o estudo do direito, abre-se na tela panorâmica da mente os contornos de um sentimento que conduz à figura do fato ou do ato justo ou injusto, resultado vivificado de atitudes ou ações humanas. Isto tem sido constante na humanidade, encontrado em todos os âmbitos e ao longo da história, em todos os graus de civilização. Este sentimento reside no âmago de cada ser humano, desde o mais sábio até o mais ignorante.

Para SÃO TOMÁS DE AQUINO, a justiça consiste em dar a outrem o que lhe é devido, segundo uma igualdade. A definição seria perfeita se, ao invés do verbo dar houvesse o filósofo sacro usado o verbo ter. Isto porque o verbo dar exige um sujeito na ação e expõe a idéia de entrega de alguma coisa, in casu a justiça, por alguém a outrem. Isto, também, poderia assumir a conotação de que a justiça pode ser dada, de qualquer forma, a qualquer um que fosse do agrado de quem dela fosse possuidor ou tivesse a autoridade para concedê-la. É como o aluno de uma escola que faz a prova e recebe a nota, que representa a avaliação pela qual passou. A avaliação pode ser de acordo com as respostas acertadas ou não. A Justiça se realiza no fato de o aluno ter a aprovação ou reprovação pela qual foi merecedor. A expressão “dar” induz ao favor, à possibilidade de gratuidade, favorecimento quando, na verdade, a justiça deve ser merecida. Para o autor, não tem sentido, principalmente a justiça social, dar, simplesmente entregar a outrem.

Na longa caminhada que se convencionou chamar de vida, a cada passo deparamos coisas eternas e coisas diferentes, que se transformam, conhecidas e desconhecidas, realizando-se em novos conhecimentos, anotando progresso, a perfeição que, num jogo intrincado, de lá e de cá, de imperativa necessidade, é manejado pelo livre arbítrio – poder de livre escolha de cada ser humano - que incorpora os conceitos de bom e de mal, os quais servem de predicado a todas as atitudes e ações praticadas pelo ser humano. Porisso a justiça não pode ser dada, mas merecida por outrem. Caso contrário, nem sempre o bom seria contemplado, pois tudo na vida pode ser usado para o bom e para o mal. A utilização, entretanto, depende da vontade de cada um emoldurada pelo seu livre arbítrio. Pode obter-se o resplendor da existência que se consagra por atos e fatos praticados que premiam as benesses existenciais. Pode, ao contrário, causar dores, transtornos, sofrimentos etc.

Contudo, a justiça, segundo São Tomás de Aquino, deve ser dada ao ser humano a quem é devida e, importante salientar, sempre segundo uma igualdade. Para o filósofo ateniense ARISTÓTELES, a verdadeira igualdade é aquela que revela (pratica) a igualdade entre os iguais e a desigualdade entre os desiguais. Isto seria ter os iguais o igual, e o desigual os desiguais.

A justiça social, todavia, induz que todos os seres humanos devem ser tratados igualmente, e que as regras legais, éticas e morais contemplem a todos da mesma forma, com indisfarçável igualdade, o que não quer dizer que todas as pessoas devam ser consideradas iguais, à vista da notável dessemelhança que impera entre os indivíduos humanos, em inúmeros aspectos. O tratamento geral deve ser igual, respeitando, outrossim, as desigualdades existentes, que são relevantes ao tratamento dispensado a todos.

A norma estabelecendo que todos devem ser tratados igualmente é norma moral, disciplinada pela Ética, de alcance extraordinário, mas não se refere ao conteúdo do tratamento dispensado, e sim à forma de tratamento levada a efeito, pois que, se aplicada à generalidade conduziria a conseqüências absurdas.

Com base nestes princípios, Hans Kelsen deduziu que quando os indivíduos e as circunstâncias externas são iguais, devem ser tratados igualmente, e quando os indivíduos e as circunstâncias externas são desiguais, devem ser tratados desigualmente. Não soluciona, entretanto, a questão da igualdade, postula por um tratamento igual e um desigual. Ou, em uma segunda hipótese, evocar-se-ia uma norma de igualdade que defina as qualidades em relação às quais as desigualdades serão levadas em conta, pois a exigência formal de igualdade não exclui uma diferenciação entre as pessoas que se acham em circunstâncias distintas. Mas aqui, estar-se-ia abstraindo-se e invadindo ceara da lógica e não da justiça. Contudo, sem invasão à ceara da lógica, ponderar-se-á que a sua aplicação no estudo e na prática seria de muita valia.

Para Norberto Bobbio, citando Oppenhein, “atualmente, a versão mais comum da igualdade proporcional é a seguinte: uma regra de distribuição é igualitária se, e apenas se, as diferenças na distribuição correspondem a diferenças relevantes das características pessoais; por outras palavras, se a característica especificada é relevante em relação ao gênero de benefícios ou encargos a distribuir.”

Contudo, falar em Justiça no Brasil em nossos dias é relacionar a dialética ao Poder Judiciário, como aquele que agrega inúmeros outros órgãos (ex: polícia e Ministério Público), embora esta agregação não ocorra nem de direito e nem de fato. O Poder Judiciário é um dos três Poderes da República e é constituído apenas dos órgãos enumerados pelo art. 92, da Constituição Federativa do Brasil, de 05-10-1988. Qualquer outro que se proponha à agregação é fruto do desconhecimento ou desinformação.

A Constituição Federal de 1988 dispõe em seu art. 170, que “a ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social”. Infere-se da disposição que a Justiça Social tem fundamento na existência digna de todos, indistintamente, e que é assegurada pela ordem econômica fundamentada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa. Consagra a Constituição uma ordem econômica de natureza capitalista, vez que a livre iniciativa (iniciativa privada) é princípio básico do capitalismo. Embora capitalista, a Carta Magna dá prioridade aos valores do trabalho humano sobre os demais. A liberdade econômica também não é absoluta. Somente é garantida até onde a valorização do trabalho humano permite. O fato configura uma declaração de princípio orientador da intervenção do Estado na economia para fazer prevalecer os valores sociais do trabalho ao lado da iniciativa privada, como fundamento da ordem econômica e proteção da dignidade humana, fundamento do Estado de Democrático de Direito.

O Brasil, revelado pela Constituição Federativa de 1988, é um Estado sócio-liberal, vez que reconhece e assegura a propriedade privada e a livre empresa, condicionando o uso da propriedade e o exercício das atividades econômicas ao bem estar social. Portanto, há limites para o uso e o gozo dos bens e riquezas particulares, admitindo a intervenção do Estado quando caracterizado o interesse público, tanto na propriedade privada quanto na ordem econômica, por atos de império à busca da satisfação das exigências sociais e a reprimir condutas contrárias advindas de outros setores. Dir-se-á que o “Estado de Direito” – Democrático pela ordem Constitucional - aprimorou-se no “Estado de bem-estar”, que pode ser de bem-estar social, na árdua tarefa de melhorar as condições sociais do povo.

Com isso, a Constituição Brasileira procurou realçar a necessidade da paz social, numa época marcada pelos desentendimentos e lutas entre os povos. Induvidável que os desentendimentos e lutas têm por objetivo a obtenção do poder. Os povos lutam pelo poder para alcançar a Paz. Mas quando dele desfrutando, outros fatores interferem e levam-nos ao absolutismo, caracterizam-se de deuses, retornam aos princípios mitológicos, esquecem que a vida se caracteriza por uma série de fatos sociais e que a Paz é o principal deles. Seus atributos são tantos que se diluem entre os dedos, a vaidade e seus sectários arrebatam-na para os confins, sem que se perceba, que a aniquilação de boa parte do mundo pela fome tem sido irremediável. A Paz, somente a Paz assegura a dignidade da pessoa humana em todo o seu resplendor, de onde se erradia a cidadania e toda a sua força social. É imperiosa a reflexão sobre a dignidade do ser humano, os seus deveres e os direitos de cada um, indisfarçáveis fundamentos da paz mundial.

Na encíclica “A Pacem in terris”, o Papa João XXIII, complementou o discurso assinalado na “Mater et Magistra”, sublinhando "a importância da colaboração entre todos: é a primeira vez que um documento da Igreja é dirigido também a «todas as pessoas de boa vontade», que são chamados a uma «imensa tarefa de recompor as relações da convivência na verdade, na justiça, no amor, na liberdade»".

Como instrumento da Paz que todos almejam, o documento papal revelou nova visão, defendeu o desarmamento e a distribuição mais igualitária dos recursos produzidos e extraídos no globo terrestre, rígido controle das políticas empresariais multinacionais e a implementação de políticas públicas a favorecer refugiados e países menos favorecidos ou mais pobres, pois todas as nações e todos os seres humanos tem igual dignidade e igual direito ao seu próprio desenvolvimento e aperfeiçoamento. O que almejou o Papa João XXIII, foi a construção de uma sociedade baseada na tríplice argamassa com se ligam as relações humanas: a Liberdade, a Igualdade e a Fraternidade entre os povos, para a transformação e aprimoramento do presente e do futuro.

Não disciplinou a Constituição Brasileira, um “Estado Liberal”, que se omite ante a conduta individual, nem o “Estado Socialista”, que suprime a iniciativa particular, mas sim um Estado que tem o dever de orientar e planejar as bases fundamentais de uma nação, refletindo na conduta individual - respeitado o livre arbítrio de cada um – chamando para si a responsabilidade pela educação, segurança, saúde e assistência, no sentido de implementar o bem-estar social. Para construir o “Estado de bem-estar”, tendo a Paz como instrumento, deve o Estado intervir na propriedade e no domínio econômico, quando utilizado contra o bem comum da coletividade.

Diz, ainda, o art. 1º da Constituição de 1988, que um dos fundamentos da República é a Dignidade Humana. A existência digna assegurada - Dignidade Humana – implica na preservação dos direitos do ser humano à subsistência, preferencialmente, aos de propriedade. O direito de subsistência assegurado exige a melhor distribuição dos bens da vida. E por direito de subsistência deve-se entender o padrão de vida essencial, ou o mínimo para subsistir, compreendendo alimento, habitação, vestuário, educação, saúde, segurança e lazer para todos.

A Paz no mundo, anseio profundo de todos os homens em todos os lugares e em todos os tempos, não se consolidará senão através da verdade, que repercute a justiça - a justiça social - que se realizará na Fraternidade que se ampara na Liberdade e na Igualdade, criando um novo equilíbrio social, cada vez mais humano. A Paz encontra sustentáculo nos princípios que amparam a Verdade. Dela é corolário e consequência lógica, pois, segundo Aristóteles, a Verdade é a ausência de contradições, ou seja, única para cada pessoa sem qualquer oposição. Neste sentido a Verdade se transforma em Paz, a paz interior de cada um, a Paz que aconselha o travesseiro nas noites de tormenta, a Paz de uma criança dormindo, como disse Dolores Duran em sua imortal canção, alcançada pelo equilíbrio dos humores, dos sentidos, dos impulsos, na meditação, pelo pensamento elevado, é a paz interior ou interna.

Mas não só a paz interna adorna a vida das pessoas. Há, também, a paz externa. Se a Paz interna é a ausência de contradições, a Paz externa se revela na ausência de conflitos sociais, sejam bélicos ou de qualquer ordem. É a Paz que leva à convivência pacífica os povos do mundo todo. Esta depende de todos os homens, é mais difícil conseguir à vista de que cada ser humano é um indivíduo com caracteres e formação próprios e dono de seu livre arbítrio, que o autoriza a ser e pensar igual ou diferente dos demais. Sãos os conceitos de bom e de mal direcionando a Paz do mundo.

Contudo, os caminhos a serem seguidos na busca da Paz externa são os mesmos exigidos pela Paz interna: o aperfeiçoamento do ser humano, não no sentido de que venham a pensar igualmente, mas conservando suas individualidades e, no caso de nações, sua soberania, se utilizem da tolerância e da compreensão, como condimentos essenciais a sua concecussão. A verdadeira paz só pode ser alcançada através da colaboração de todas as pessoas de boa vontade, incluindo aquelas que professam ideologias consideradas erradas em certas perspectivas e com a indispensável redução da distância social e econômica entre os seres humanos, ou seja, a distância entre a miséria e a riqueza. A Paz nunca foi a parteira da história, mas a filha desejada por toda a humanidade. As Organizações civis mundiais, de ordem supranacionais, a buscam incessantemente. Embora a Paz entre as nações do mundo seja considerada uma utopia, aos homens de boa vontade assim não se mostra, continuam eles a trabalhar pelo aperfeiçoamento do ser humano com o objetivo de alcançá-la; aos povos compete a busca e a sua manutenção, mas ela, a Paz, enquanto espera sua vez para reinar, repousa serena e tranquila no olhar manso do cordeiro de Deus que, por ela e pelo bem-estar de todos, deu a sua vida.

ANTÔNIO COLETTO
Enviado por ANTÔNIO COLETTO em 19/12/2018
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