As crônicas da guerra na Itália, por Rubem Braga.

O gênero literário crônica, por não ser comprada diretamente, ou seja, estar presente nos jornais, é um tipo de texto que oferece maior liberdade ao autor, possuindo aspecto central de conversa com o leitor. Esse aspecto “conversador” da crônica e de cumplicidade entre autor e leitor, faz-se presente mesmo com narrador em 1ª pessoa. Este gênero literário no qual o autor possui a possibilidade de colocar o subjetivo de forma mais evidente, juntamente com episódios de sua biografia, podendo assumir a forma de um texto mais despretensioso (com traços de informalidade e leveza, já que seu foco está na interlocução com o leitor), não possui a necessidade de estrutura tão fixa, permitindo uma variedade de assuntos e temas, e com a possível presença do humor e sentimentalismo.

O leitor é levado, portanto, em muitos momentos, a associar narrador com o autor da crônica. A crônica de Rubem Braga, enunciada por Afrânio Coutinho como uma crônica “poema em prosa ou lírica”, apresenta como característica a forte observação do narrador. Quanto a este renomado escritor, nascido em 1913, deparou-se com anos conturbados do ponto de vista político brasileiro, a partir da década de 20. Mesmo formado em direito, o jovem capixaba ingressou cedo, especificamente aos dezessete anos, no jornal “Diário da Tarde”, iniciando uma carreira bem-sucedida no campo do jornalismo. Reconhecido principalmente por suas crônicas, escrevendo mais de quinze mil e publicando quatorze livros desse mesmo gênero literário, Rubem Braga desfrutou de uma vida muito coerente com sua obra.

Aos vinte e três anos, em 1936, reuniu seu primeiro livro de crônicas: “Conde e o passarinho”. O autor, sobretudo cronista, possuía forte viés político, tendo realizado cobertura de revoltas e passado, em quatro anos, por oito cidades, fugindo também da ditadura de Getúlio Vargas, já que se constituía como militante. Braga, cronista lírico, juntamente com Fernando Sabino, também reconhecido cronista e contista, compartilharam experiência em sociedade na abertura e manutenção de algumas editoras, mas Braga em seus anos finais de vida, trabalhava para a TV Globo, diminuindo sua atividade como contista e militante.

As crônicas de Rubem Braga assumiram um caráter de crônica conversada, em estilo de “camaradagem” com o leitor. Como características centrais, estas apresentam simplicidade e viés lírico prezado no texto pela precisão e clareza. A maioria em 1ª pessoa, trazem aspectos contemplativos da realidade, com a observação do autor, que muitas vezes se apresenta como narrador (seu “eu” como personagem principal). A natureza política das crônicas de Braga trata-se da questão da memória (passado) com a relação do “eu” com o mundo.

Em 1944 Rubem Braga trabalhava no jornal “Diário Carioca” e se propôs a cobrir a atuação da FEB (Força Expedicionária Brasileira) na Itália durante a Segunda Guerra Mundial acompanhando a tropa brasileira no front: “suas crônicas ajudam a formar no leitor do Diário Carioca uma ideia sobre os significados do conflito mundial, uma espécie de arcabouço informativo sobre as batalhas que se desenrolam na Europa” (SANTOS, 2011, p. 63). Quanto a essa temática, vale destacar o aspecto da circunstância de escrita das suas “crônicas de guerra”, onde Braga coloca-se como observador direto, transformando a guerra em um tema “humano” e dando ao povo carioca uma visão interna dos acontecimentos.

Essas crônicas possuem uma unidade e criam um vínculo emocional com o leitor, além de uma contemplação lírica para o mundo, presente como traço fundamental do lirismo de Braga, sempre fundado em 1ª pessoa, ou seja, sempre pessoalizado, na tentativa de construir essa intimidade com o leitor, introduzindo observações sobre histórias pessoais, detalhes do cotidiano e compartilhando aflições, utilizando-se, muitas vezes de críticas e ironias.

Nas crônicas de guerra, Braga coloca-se como testemunha ocular. As principais características presentes nessas crônicas estão voltadas à questões de unidade, linguagem, maturidade do autor e a presença de um lirismo aceso. Na crônica “Primeiras impressões”, por exemplo, apresenta-se o cotidiano, as personagens do front e a vida miúda. Ela é, portanto, menos lírica. Já em “Moleques de Nápoles”, apresentam-se informações concretas e veracidade. Em “A menina Silvana”, encontra-se um texto denso, forte em termos de construção, contrapondo a atrocidade da guerra à figuras solares e heroicas.

Quanto a maturidade do autor, Ricardo Santos, em sua dissertação “A desordem dos dias: Rubem Braga e a Segunda Guerra”, afirma que “mais do que a experiência de vida do "velho Braga", contudo, o que parece pesar mais é a experiência do Braga jornalista, leitor de despachos de agências internacionais de notícias e observador do cotidiano brasileiro. ” (SANTOS, 2011, p. 77). Vale ressaltar que seu engajamento e criticidade, segundo Santos, teve de manifestar-se dentro dos limites da censura (durante o Estado Novo) e até mesmo da crônica.

O uso dos diálogos e adjetivos, nas crônicas de guerra na Itália, foram bem pensados pelo autor, a fim de desenvolver uma narrativa próxima tanto ao personagem quanto ao leitor. Como correspondente de guerra é possível identificar a preocupação de Braga acerca do seu olhar sobre o outro, já que suas crônicas não se tratam somente de um relato das ações do FEB, mas também de dar voz para diferentes personagens: pracinhas, mulheres, crianças, entre outros, utilizando-se de um discurso direto e indireto.

“Deus sabe que tenho visto alguns sofrimentos de crianças e mulheres. A fome dessas meninas da Itália que mendigam na entrada dos acampamentos, a humilhação dessas mulheres que diante dos soldados trocam qualquer dignidade por um naco de chocolate- nem isso, nem o servilismo triste, mais que tudo, dos homens que precisam levar pão à sua gente, nada pode estragar a minha confortável guerra de correspondente. ” (BRAGA, 1996, p.153)

Não se pode saber as marcas e traumas causados pela guerra no autor das crônicas, mas é possível perceber que, através do reconhecimento dado por Braga a personagens “secundários” no contexto de guerra, como a “menina Silvana” e “os meninos de Nápoles”, o correspondente de guerra enviado pelo Diário Carioca mostra sua revolta criticando não só a situação na qual a guerra se faz posta como a sociedade, relacionando e unindo, por exemplo as meninas de Toscana, como a menina Silvana com as também vítimas de injustiças, meninas do Ceará: “é bastante freqüente em sua obra a simpatia por personagens indefesos, fracos - "bons e simples", (...) Nas colunas para a seção Ordem do Dia, Braga mostra sua ternura com as vítimas da guerra e dos efeitos da guerra.” (SANTOS, 2011, p. 75). Com isso, Braga expande a temática da guerra e traz sofrimentos e injustiças do seu próprio território, dando destaque à questão da problemática moral:

“E às vezes um homem recusa comover-se: meninas da Toscana, eu vi vossas irmãzinhas do Ceará, barrigudinhas, de olhos febris, desidratadas, pequenos trapos de poeira humana que o vento da seca ia a tocar pelas estradas. Sim, tenho visto alguma coisa, e também há coisas que homens que viram me contam: a ruindade fria dos que exploram e oprimem e proíbem pensar, e proíbem comer, e até o sentimento mais puro torcem e estragam, as vaidades monstruosas que são massacres lentos e frios de outros seres” (BRAGA, 1996, p. 154).

A personagem ocupa lugar de destaque, caracterizando a narrativa das crônicas de guerra, assim como o tempo, espaço e sequência de fatos, conferindo uma flexibilidade de formas narrativas por parte de Braga. As sensações humanas presentes no cotidiano dos pracinhas, assim como suas individualidades e especificidades, conferem à crônica do enviado do diário carioca uma mescla da linguagem jornalística e a linguagem literária, aproximando emocionalmente os leitores brasileiros da situação vivida na Itália no contexto da guerra:

“O escritor tenta deixar claro, por exemplo, que a ida dos pracinhas, embora indubitavelmente necessária, envolveria perdas, dificuldades, sofrimentos. (..) ao humanizar o pracinha, ao não pintá-lo como invencível ou infalível, o cronista toma-o digno de ainda maior admiração; não são homens de rara coragem ou espírito cívico que marcham com a tropa pelas avenidas antes de partirem” (SANTOS, 2011, p. 97)

Rubem Braga consegue fazer presente em suas crônicas de guerra o humor, poeticidade, lirismo e uma força humanista, que se contrapõe com a frieza e impessoalidade da guerra. Na tentativa de minimizar as diferenças entre cronista e leitor, o correspondente de guerra adota em vários textos, tom de articulista: “quando parte do "exército de retaguarda", Braga mescla com frequência a função de cronista com a de comentarista, e tenta construir uma intimidade com o leitor por meio de recursos que ora envolvem uma aproximação entre o escritor e seu público (como no uso da primeira pessoa do plural), ora envolvem o uso de um tom mais próximo do formador de opinião. ” (SANTOS, 2011, p. 99).

A crônica “A menina Silvana”, já citada neste presente texto, trata-se da procura de Braga por Martim Afonso dos Santos, pracinha e enfermeiro da companhia que mesmo atingido por uma bala (“alojada nas nádegas”), continuou a trabalhar e atender os feridos: “Mas não importa onde a bala pegue um homem: o que importa é o homem” (BRAGA, 1996, p. 152). Durante essa busca, Braga depara-se com Silvana Martinelli, menina de dez anos de idade, extremamente machucada:

“A menina estava quase inteiramente nua, porque cinco ou seis estilhaços de uma granada alemã a haviam atingido em várias partes do corpo. Os médicos e enfermeiros, acostumados a cuidar rudes corpos de homens, inclinavam-se sob a lâmpada para extrair os pedaços de aço que haviam dilacerado aquele corpo branco e delicado -agora marcado de sangue” (BRAGA, 1996, p.153).

Possui uma linguagem simples, próxima ao leitor, no entanto, o lirismo está presente, principalmente quanto caracteriza a personagem da menina Silvana e seu estado, utilizando a repetição do adjetivo “firme”, para conferir a menina força e heroísmo, ainda que destacando sua fragilidade:

“A explosão estúpida poupara aquela pequena cabeça castanha, aquele perfil suave e firme que Da Vinci amaria desenhar. (...) Nos seus olhos eu não vi essa expressão de cachorro batido dos estropiados, nem essa luz de dor e raiva dos homens colhidos no calor do combate (...) Ajeitei-lhe a manta sobre a cabeça, protegendo-a da luz, e ela voltou a me olhar daquele jeito quieto e firme de menina correta. ” (BRAGA, 1996, p. 153).

Braga utiliza nome das pessoas como quem quer dar-lhes maior destaque e subjetividade (como o pracinha e enfermeiro Martim Afonso dos Santos), dando sua devida importância dentro de um contexto frio e impessoal da Guerra. Braga utiliza, nas crônicas de guerra na Itália, alguns recursos narrativos como a repetição de palavras, frases e expressões para destacar algum fato ou ideia: “Vai-se tocando, vai-se a gente acostumando no ramerrão da guerra; é um ramerrão como qualquer outro: e tudo entra nesse ramerrão (...)” (BRAGA, 1996, p. 153). Aqui, a palavra ramerrão, que possui como significado ruído sucessivo e monótono; repetição fastidiosa de rotina, ganha sentido quando se lê o trecho da crônica em voz alta, tendo sido utilizado de forma muito interessante.

No penúltimo parágrafo da crônica “A menina Silvana, o termo “É preciso acabar com isso” é utilizado também repetidas vezes, e Braga parece ao mesmo tempo em que tenta se conformar, de certa forma, com a realidade de guerra (a qual todos sofrem), denunciar e criticar os culpados pelo sofrimento e injustiças trazidos pela guerra, pelo esquecimento “humano” por parte dos poderosos. É como se o autor estivesse alterado emocionalmente, impressionado pelo olhar da menina Silvana (repetindo a frase “Pelo corpo inocente, pelos olhos inocentes da menina Silvana”), lembrado dos sofrimentos das “irmãzinhas do Ceará” e inconformado com a opressão e massacre consequentes de escolhas de “privilegiados”, chegando a conclusão de que “é preciso acabar com isso”:

“Agora é tocar a guerra- e quem quer que possa fazer qualquer coisa para tocar a guerra mais depressa, será um patife se não ajudar (...) É preciso acabar com isso, e acabar com os homens que começaram isso e com tudo o que causa isso- o sistema idiota e bárbaro de vida social, onde um grupo de privilegiados começa a matar quando não tem outro meio de roubar. (...) pelo corpo inocente, pelos olhos inocentes da menina Silvana (oh! negociantes que roubais na carne, quanto valem esses pedaços estraçalhados?)- por esse pequeno ser simples, essa pequena coisa chamada uma pessoa humana, é preciso acabar com isso, é preciso acabar para sempre, de uma vez por todas.” (BRAGA, 1996, p.154).

Braga, em “A menina Silvana”, tenta criar uma intimidade com o leitor direcionando-o frases como: “Vocês já sabem dessa história,que aconteceu no fim de novembro” (BRAGA, 1996, p. 152) ou acrescentando informações sobre sua biografia: “Há 13 anos trabalho nesse ramo” (BRAGA, 1996, p.154). Ele também narra fatos e situações em ordem cronológica, o que permite um maior entendimento ao leitor. Os adjetivos são usados cuidadosamente para caracterizar as personagens, possuindo, portanto, fim específico: “Quem estava ali não era um desses homens barbudos de botas enlameadas e uniforme de lã sujo que são os fregueses habituais do posto” (BRAGA, 1996, p.153).

O cronista capixaba tenta novamente aproximar as realidades brasileira e italiana comparando, no início da crônica “Os moleques de Nápoles”, o preço do quilo de pão: “Um quilo de pão custa 130 liras, e isso quer dizer 26 cruzeiros” (BRAGA, 1996, p.31). Além disso, Braga contextualiza e utiliza datas para situar o leitor em uma ordem cronológica dos fatos e acontecimentos da guerra: “Mussolini caiu em 25 de julho de 1943. Em 8 de setembro foi assinado o armistício. Em 26 de setembro os americanos bombardeavam Nápoles, e suas tropas avançadas estavam em Palma Campania, a cerca de 30 quilômetros”. (BRAGA, 1996, p. 32).

Após a saída dos nazistas de Nápoles, Braga caracteriza a situação da cidade por meio da crônica “Os moleques de Nápoles”. Braga apresenta na crônica certo encantamento pela história que irá contar: “Isso é uma bela e grande história, e um dia certamente será melhor contada”. Trata-se da libertação dos italianos devido a bravura e sagacidade dos “scugnizzi”: “belos moleques esfarrapados que andam por toda a parte, são vorazes por cigarro, dormem em algum buraco e comem vagamente o que aparece. ” (BRAGA, 1996, p. 32). Braga apresenta mais uma vez em sua crônica de guerra a valorização de personagens menos conhecidos e reconhecidos. O autor ressalta os feitos e valentia dos “scugnizzi”, “técnicos em esconderijos”, nomeia-os de “ratos e pardais humanos”, mostrando fatos surpreendentes da guerra de luta e resistência do povo dominado e sofrido: “O heroísmo dos scugnizzi arrebatou homens e mulheres. Por toda parte se ergueram barricadas, todas as armas foram desenterradas, e na cidade que os americanos bombardeavam, o povo lutou contra seus dominadores. ” (BRAGA, 1996, p. 33).

Braga escreve em momentos desta crônica como se estivesse vendo a cena naquele momento em que a escreve, trazendo posteriormente a data do acontecimento, a fim de provocar no leitor a sensação de estar presente nesses acontecimentos: “Um deles lançou contra os nazistas alguma coisa que poderia ser uma pedra, mas era exatamente uma granada de mão” (BRAGA, 1996, p. 33). O correspondente do “Diário Carioca” finaliza sua crônica com um certo ar de contentamento e orgulho pelo ocorrido:

“A cidade estava muito danificada, mas não tanto quanto os nazistas gostariam de tê-la deixado. Os pelotões de destruição não tiveram tempo para fazer bem o seu trabalho: os scugnizzi, com a sua audácia, defenderam o patrimônio comum. E aqui estão eles, esses belos moleques esfarrapados. Aqui estão por toda parte, livres como os ratos e os pardais. Essa liberdade, eles a merecem: eles a conquistaram com seu sangue. Os italianos sabem que devem sua libertação às armas aliadas. Mas perguntem a qualquer homem do povo, em Nápoles, quem expulsou os nazistas da cidade, e ele, apontando para alguns moleques, e sorrindo, dirá com verdadeiro orgulho: -Gli scugnizzi!” (BRAGA, 1996, p. 33)

Rubem Braga, em sua crônica de guerra “Primeiras impressões”, apresenta aos seus leitores um panorama geral do contexto vivido pelos pracinhas brasileiros, incluindo fatos de seus cotidianos: “Já escrevi que os brasileiros são bem recebidos onde chegam. O mesmo acontece com todas as forças aliadas, mas há um fator que facilita especialmente a boa compreensão de brasileiros e italianos: a semelhança das línguas, que em muitos casos se resolve em camaradagem” (BRAGA, 1996, p. 37). O cronista também tenta trazer ao seu leitor um cenário um pouco mais otimista quanto a guerra, sabendo que alguns familiares dos pracinhas pudessem ser leitores do Diário Carioca: “A guerra é dura, mas muitas vezes acontecem coisas aos nossos rapazes nesta guerra de que eles nunca se queixarão, nem terão vontade de esquecer. ” (BRAGA, 1996, p. 38)

No início de sua crônica, Braga mescla informações e fatos da vida de um pracinha, nomeado como Nélson Neves, com a sua, revelando também fatos históricos do Brasil, na tentativa de aproximar o leitor ao autor da crônica e seus personagens, no caso soldados brasileiros, com o intuito também de humanizá-los. O curto diálogo, mas preciso e muito significativo, é uma ferramenta usada por Braga para destacar aspectos quanto ao contexto da guerra: “Apressou-se depois a acentuar que a luta aqui é dura mas a gente tem a vantagem de saber de que lado está o inimigo. Quando lhe pedi a impressão sobre os nazistas, respondeu: -Lutam como a gente. Mas nós damos neles. ” (BRAGA, 1996, p. 36). Braga ainda se utiliza de metáforas para expressar a crueldade dos nazistas, que “têm fome de braços”.

Percebe-se o tom jornalístico presente em “Primeiras Impressões”, apresentando informações e vocabulários nos quais o autor explica, por exemplo, o significado de “partigiani”: “São os guerrilheiros libertários italianos que lutam nas montanhas dos Apeninos contra os nazistas (...) são ainda muito úteis às nossas tropas porque, atravessando as linhas, vêm nos trazer as mais úteis informações sobre o adversário” (BRAGA, 1996, p. 37). Vale ressaltar aqui o uso da 1ª pessoa do plural, utilizada preferencialmente por Braga em suas crônicas de guerra na Itália. No entanto, apesar do tom jornalístico, o correspondente de guerra, ao comparar a situação em que se encontram as populações das cidades, em contraposição às do campo, utiliza-se de um lirismo muito aceso:

“Em resumo, essa gente passa muitas necessidades, mas quem deixa os tristes becos das grandes cidades, o de ruínas antiquíssimas alternam com ruínas recentíssimas, e a miséria agrava todos os males sociais, tem uma impressão de pura beleza e alegria ao correr pelos campos bem plantados onde se amontoam, junto às casas dos camponeses, os doces montes cônicos de feno. ” (BRAGA, 1996, p. 38)

Braga conseguiu, em suas crônicas de guerra na Itália, garantir ao leitor do Diário Carioca, uma diversidade com relação à temáticas no contexto da guerra. A crônica “De Nápoles a Livorno” assemelha-se em parte à crônica “Imprensa de Trincheira” (analisada posteriormente) por tratar de temas mais “leves” e menos densos, em contraposição ao caso de “A menina Silvana”. O cronista detalha características de viagens da tropa, como o barco que fora utilizado, assim como as cartas dos pracinhas à seus familiares e “amores”. Como em “Os moleques de Nápoles”, no qual o autor faz logo no início de sua crônica uma relação entre Brasil e Itália a partir do preço de um quilo de pão, em “Nápoles a Livorno”, Braga compara o barco utilizado pela tropa (“Land Craft Infantry”) à um barco da Cantareira, assim como comparando o Mar Tirreno com a Baía de Guanabara. Para isso, Braga utiliza correlações didáticas e simples, além de uma linguagem divertida e leve:

“Um marinheiro me disse que este barco tem 157 pés, mas a verdade é que ele não marcha com a perfeita harmonia e coordenação de uma centopéia. Quando um de seus 157 pés está nas nuvens, o outro está no fundo do mar, um terceiro entre as espumas, um quarto dando coices em direção à terra, e um quinto chutando água para a Ilha de Sardenha. ” (BRAGA, 1996, p. 34).

Trata-se de uma crônica carregada de detalhes, ao qual o autor faz uso do tempo presente (utilizando várias vezes a palavra “agora”) e artifícios para criar uma intimidade com o leitor: “Quase todo mundo- e o correspondente do Diário Carioca acabou achando que devia ser solidário com a tropa. ” (BRAGA, 1996, p. 34). Um dos propósitos de Braga em suas crônicas de guerra, como já citado anteriormente, reside na intenção de humanizar os soldados, os pracinhas. Quanto a isso, em “Nápoles a Livorno”, Braga também deseja mostrar as características em comum dos solados em geral, e, consequentemente aproximar suas realidades aos leitores cariocas:

“Assisti hoje a um diálogo extraordinariamente comovedor de um marinheiro americano e um cabo brasileiro. Nenhum dos dois fala 10 palavras da língua do outro, mas trocaram cigarros e chocolate, com amplos gestos de gentileza. Depois disso, um tirou uma fotografia do bolso e mostrou ao outro. E ficaram ali os dois homens, cada um olhando em silêncio o retrato da noiva ou da mulher do outro- duas pobres mulheres distantes, em Minas e no Nebraska. (...) E é evidente que, depois desse diálogo mudo, eles ficaram muito amigos e se acharam muito distintos. ” (BRAGA, 1996, p.35)

Braga faz referência a censura que sofria na escrita das crônicas, mas que os próprios pracinhas sofriam também: “Todo mundo agora está escrevendo cartas para família, e o capitão que faz a censura me diz que todos falam bem da comida e do tratamento. ” (BRAGA, 1996, p.35). O cronista revela a necessidade dos pracinhas de terem notícias de sua terra, mas não somente com relação à saudade de suas esposas ou namoradas, utilizando tom irônico e divertido: “Por favor, minha senhora, mande capinar o quintal; ele ficará muito feliz. E a senhora não deixe de mandar dizer que o Bangu venceu” (BRAGA, 1996, p.35). Aqui, Braga utiliza o termo “minha senhora” mesmo sem saber ou identificar seu nome, como se essas questões não correspondessem a casos isolados de alguns pracinhas.

O correspondente de guerra, Rubem Braga, em “Imprensa na trincheira”, destaca a importância dos jornais nesse contexto, dando enfoque a imprensa e seu papel na guerra: “A imprensa não funciona apenas na retaguarda, nestas guerras de hoje. Ela não cuida apenas do “front interno”: “ataca” o inimigo, saltando sobre suas linhas” (BRAGA, 1996, p.77). O uso da ironia é recorrente, e o autor se coloca na crônica novamente com o objetivo de aproximação do leitor:

“Soldados inimigos que desertaram para as nossas linhas tiveram o cuidado de trazer consigo o pedaço escrito em várias línguas e que funciona como “salvo-conduto” para o homem que deseja se entregar. Nossos colegas da imprensa alemã retribuem, cuidando de fornecer literatura aos nossos soldados. Até agora, minha coleção inclui apenas dois espécimes em inglês e português” (BRAGA, 1996, p. 77).

Braga ressalta, nesta crônica, estratégias utilizadas na guerra para desestabilizar o inimigo e fazê-lo render-se. Os alemães, denominados pelos pracinhas como “os Fritz” (e sabe-se disso por meio da fala de um sargento, em um dos poucos diálogos da crônica), terem criado folhetos como espécie de propaganda contendo argumentos questionando, por exemplo, a vinda dos brasileiros para lutar na Itália. Nesta parte da crônica, Braga utiliza-se fortemente do tom irônico e de “deboche” para falar desses “volantes”:

“O principal argumento é perguntar porque os brasileiros estão lutando na Itália- embora seu autor não explique, afinal de contas, por que é que os alemães estão lutando no mesmo país. O volante promete boa comida ao prisioneiro, sem distinção de nação e raça, e não apenas boa comida como consideração, pois lá “não se desconsidera ninguém”. Nada, portanto, de racismo. A frase mais forte, que mereceu um tipo especial, é esta alta verdade filosófica: “O essencial numa guerra é voltar com vida ao seu lar.” Eis um belo pensamento posto na boca dos soldados alemães- que são os supostos autores do recado. Eis aí o Sr. hitler pacifista e anti-racista...em português” (BRAGA, 1996, p.78)

Em “Imprensa de trincheira”, Braga abusa das palavras simples, remetendo-nos à linguagem falada como “bobeou” ou “pingar”. No final do conto, Braga mais uma vez utiliza o diálogo como uma ferramenta narrativa carregada de significado e precisão, ilustrando uma situação de um desertor alemão ao ser interrogado por oficiais brasileiros, tentando, novamente, mostrar ao leitor carioca uma visão de “soldados humanos”. Nesse caso específico, o autor faz questão de trazer esse aspecto humano também ao desertor alemão:

“A atitude desse homem desertando não foi, certamente, fruto de nossa propaganda. O que agiu sobre ele foi a perspectiva de mais sofrimento e talvez a morte em uma guerra sem esperança: foi a terrível e incomparável propaganda dos fatos, que, a certa altura, acaba por impressionar mais que todas as palavras…” (BRAGA, 1996, p. 79)

Já a crônica de guerra na Itália “Em Barga”, muito truncada pela censura, refere-se a um ataque em frente a Barga, no final de outubro de 1944. Ela traz uma narrativa mais tensa, detalhada, utilizando-se mais diálogos se comparada a outras crônicas analisadas neste presente texto. Os diálogos parecem ter sido empregados para trazer as cenas para mais perto do leitor, trazendo também as tensões vividas pelas personagens da guerra, destacando a figura do pracinha brasileiro. A linguagem é fácil e simples, contendo traços jornalísticos, mas o lirismo encontra-se presente, principalmente para articular as contradições entre silêncio e natureza e os acontecimentos e batalhas da guerra.

“Olhando aquelas colinas e montanhas, não se via um sinal de guerra, nem se ouvia o menor ruído. Um pintor se postaria ali em sossego e disporia na sua paleta os verdes tênues, o amarelo outoniço e o cinza, sem suspeitar que nos bosques atapetados de grama e nas lavouras bem cuidadas espreitavam homens atrás de metralhadoras e morteiros” (BRAGA, 1996, p. 42).

Quanto a essa tentativa de criar uma intimidade e ligação com o leitor, o escritor situa seus leitores quanto ao vocabulário usado na guerra: “os tedescos (os brasileiros já não dizem “alemães”: por influência italiana, só falam em “tedescos”) ” (BRAGA, 1996, p.44). Ele também se utiliza, na crônica “Em Barga”, de expressões e gírias comuns ao povo brasileiro (“a cobra vai fumar”) e construções de frases “divertidas”, colocando o próprio repórter de guerra no texto para garantir essa finalidade de aproximação, como se fosse uma conversa íntima com o leitor.

“E num dia assim o repórter pensa: mas esta guerra é uma “marmelada”- ou um piquenique de mau gosto, com tanta chuva. Hoje, porém, fomos avisados laconicamente: a cobra vai fumar. (...) Atravessamos calmos vilarejos onde nossos soldados mantêm longas e alegres palestras com as jovens louras. Esses diabos desses pracinhas vivem por aí como se estivessem em casa”. (BRAGA, 1996, p.43)

A narração detalhada de Braga dos fatos e situações além de auxiliar a aproximação entre leitor, cronista (e narrador) como parece objetivar mantê-lo entretido e comprometido com a leitura, como se estivesse nas cenas dos acontecimentos a partir da descrição de Braga dos planos de ataque:

“Desde cedo nossos homens estão avançando por um bosque que sobre, à direita, uma grande montanha. As posições do inimigo são excelentes, no alto. A tarefa de hoje é exatamente expulsá-lo dessas elevações. O plano é desbordar sua posição mais forte e depois fazer um ataque frontal, morro acima, com apoio da artilharia” (BRAGA, 1996, p.43)

O correspondente de guerra apresenta também ao leitor, nesta crônica, as contradições da guerra, ainda que com um tom relativamente irônico e divertido, quanto a fartura de determinados alimentos, roupas e cigarros, por exemplo, endereçando comentários especificamente aos cariocas: “Esta é uma guerra estranha. Em primeiro lugar, é uma guerra feita sob o signo da fartura. A gasolina, oh! cariocas, existe em chafarizes “ (BRAGA, 1996, p. 44).

Além das expressões irônicas, destinadas a personagens específicos, como no caso dos ingleses: “E trabalham fora do horário- porque nos dias comuns esses calmos ingleses atiram quase à hora certa, e fazem sua pausa para tomar chá” (BRAGA, 1996, p.45), ferramentas para entreter e aproximar o leitor, Braga caracteriza elementos do tempo e clima para alcançar a realidade dos fatos, fazendo com que o leitor possa imaginar a cena: “Cai granizo, o frio aperta, depois a cerração começa a sumir. ” (BRAGA, 1996, p.45).

Referências Bibliográficas

BRAGA, Rubem. “Os moleques de Nápoles”; “De Nápoles a Livorno”; “Em Barga”; “Primeiras impressões”; “Imprensa de trincheira”; “A menina Silvana”. In: BRAGA, Rubem. “Crônicas da guerra na Itália”. Rio de Janeiro: Record, 1996, 3ª edição.

SANTOS, Ricardo Luis Meirelles dos. O cronista e a guerra. In: ______. A desordem dos dias: Rubem Braga e a Segunda Guerra. 2011. 216 f. Dissertação (Mestrado em Teoria Literária) – Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas (IEL-Unicamp), Campinas, 2001. p. 63-130.

Raquel de Freitas Branco
Enviado por Raquel de Freitas Branco em 24/01/2019
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