FORMAS DE RESISTÊNCIA E LIBERTAÇÃO EM ÁFRICA, DESCONSTRUINDO O IMAGINÁRIO COLONIAL

O IMAGINÁRIO COLONIAL

O imaginário europeu dedicou para o continente africano um amplo conceito de desqualificação, condenando a África como sendo o espaço periférico da humanidade, sendo este Continente olhado através de mitos, ficções e imagens exóticas e fantasiosas. Visões estereotipadas e um véu de preconceitos ainda marcam a percepção da realidade africana.

Esses mecanismos simbólicos da exclusão da África tem suas raízes no pensamento cultural do europeu, pois até mesmo o clima quente foi motivo para desqualificar o continente africano. O pensamento cristão da Europa associa o calor à sensualidade, surgindo expressões como o fogo ou o calor dos infernos. Foi construída uma imagem dos africanos como diferentes e exóticos, como diz Chinua Achebe:

Esse problema de imagem não tem origem na ignorância, como às vezes somos levados a pensar [...] Foi, grosso modo, uma invenção deliberada, concebida para facilitar dois gigantes eventos históricos: O tráfico transatlântico de escravos e a colonização da África pela Europa. (ACHEBE, 2012, p, 83).

Todo esse imaginário foi criado com o objetivo de justificar o domínio capitalista mercantilista do europeu que, considerando-se “civilizado”, sentia o direito de dominar e escravizar “os selvagens africanos”. Nessa perspectiva, o continente europeu iria civilizar a África, libertar “as bestas selvagens”, usando o povo africano como mão de obra para a evolução do mundo civilizado.

A África se tornou o foco da ambição europeia, tanto que decidiram na Conferência de Berlim, no século XIX, dividir o continente africano entre as potências coloniais, reorganizando o espaço como bem entendiam. Essa arrogância vinha de um pensamento ideológico de que ela não possuía condições de conduzir seu próprio destino, até mesmo para justificar a escravidão.

A escravidão foi um dos maiores crimes contra a humanidade. Os europeus foram responsáveis pelo tráfico transatlântico, onde cerca de 40 a 100 milhões de africanos foram levados para Europa e América, em condições desumanas. Tais condições teriam dizimado mais de 60 milhões de africanos. (MUNANGA, 2007, p.80-81)

Porém, no imaginário europeu o que faziam era correto e “da vontade de Deus”, pois tinha em mente cristianizar os seres demoníacos, só que na verdade criaram essa ideologia para ocultar o verdadeiro objetivo que era o lucro extraordinário.

Para o colonizador outra forma de reafirmar sua superioridade era através da escrita, já que na literatura os colonizados africanos não apareciam como personagens e sim como forma de paisagem. Por não terem uma escrita, os africanos foram estigmatizados como selvagens e sem cultura.

É certo que houve uma transculturação entre o colonizado e o colonizador, através da zona de contato que foi “o espaço de encontros coloniais”. (PRATT, 1999, p.31).

O que se conhecia sobre a África era escrito pela visão do colonizador, através dos relatos de viagens, sempre como o exótico. O choque de culturas era o fator principal para a criação desse imaginário. É perceptível a violência de naturalizar o lugar do “negro” na sociedade, julgar o outro inferior por suas crenças e costumes, em nome do poder.

FORMAS DE RESISTÊNCIA EM ÁFRICA

A África, ao contrário do que foi criado no imaginário europeu, foi persistente em sua resistência contra o colonialismo, ainda que inferiorizados em número e em armas, os africanos não se deixaram intimidar. Lutaram e resistiram de diversas formas.

Um exemplo dessa resistência foi o episódio de enfrentamento organizado pela famosa rainha Nzinga no século XVII, para expulsar os portugueses de Angola. (SERRANO e WALDMAN, 2007, p.225).

Os africanos angolanos sabiam o que aconteceria se a dominação dos brancos fosse efetivada, qual posição seria reservada para eles, escravizada e oprimida. Desse modo não se acovardaram e lutaram em todas as partes, mas o predomínio da tecnologia europeia com suas armas de fogo foi à palavra final nos enfrentamentos dos africanos. Restava-lhes marcar oposição contra os portugueses, utilizando apenas a coragem.

Essa parte da história só mudou quando os africanos tiveram acesso aos arsenais modernos de guerra e armas de fogo; uma vez bem armados foi impossível manter o domínio europeu em África.

No princípio do século XX, muitos grupos de diversas etnias se unem contra os colonizadores, grupos esses antes separados e rivais, mas unidos pela luta de libertação. Tinham por objetivo o elemento comum que era a expulsão do estrangeiro e forçar mudanças em sua política . (CABAÇO).

Nos anos que sucedem à primeira guerra mundial, existiu um aumento efetivo das manifestações de resistências armadas contra a ocupação colonial. A repressão se torna ferrenha, mas, mesmo assim, as elites urbanas reivindicaram os direitos dos negros e a valorização da dignidade dos colonizados, lutaram pela riqueza nacional, justiça social e participação na administração do território, esse período ficou conhecido como Nativismo.

A resistência da áfrica começa com o foco na permanência da língua nativa, uma defesa cultural dos africanos angolanos. É a forma de preservar suas origens e identidade. Dessa forma os idiomas nativos que tinham relação com a dança, escultura, e transmissão oral do passado reforçam a identidade do colonizado africano. Mesmo com as tentativas de repressão do europeu, a expressão oral e corporal não foi eliminada, mesmo que reprimidas.

A África se levanta em busca de suas referências fora do quadro colonial criado pelos europeus, essa busca leva tanto os povos negros de África quanto os da Diáspora a encontrarem uma origem única, uma só raça. (CABAÇO). Com essa consciência de unidade, vem à luz a dimensão de exploração e exclusão que sofre a raça negra. Nesse período e com essas lutas de resistências, surgem os primeiros textos de denúncia, com o pensamento de reivindicações, liberdade, dignidade e de autonomia, criando assim o projeto Panafricanismo.

Foi através dos mais velhos que a cultura africana voltou a surgir com força, pois era uma forma de revisitar o passado no qual ainda vivia os costumes, práticas, rituais, valores e tradições preservados na memória dessa comunidade, conhecidos como tradicionalistas. É através dessa volta ao passado que a autoestima dos africanos vai se restabelecendo, pois faz um elo com a cultura africana que existia antes do colonialismo. Assim como o imperialismo oprimia a cultura do outro para dominar, a libertação só poderia acontecer com essa cultura voltando à liberdade.

O movimento literário em África nasce com a Negritude, se transforma numa corrente ideológica que exalta a alma negra, sua cultura, história, estética, psicologia e os valores civilizacionais que possui. (CABAÇO).

A consciência nacional necessita de uma literatura voltada para o povo, uma literatura de combate, onde os negros africanos passam a ser protagonistas nessa luta de libertação. A partir desse momento é que efetivamente se ouve falar de uma literatura nacional. Como diz Fanon:

[...] Há, ao nível da criação literária, retomada e clarificação dos temas tipicamente nacionalistas. É a literatura de combate propriamente dita, no sentido de que convoca todo um povo à luta pela existência nacional. Literatura de combate, porque informa a consciência nacional, dá-lhe formas e contornos e abre-lhes novas e ilimitadas perspectivas. Literatura de combate, porque assume um encargo, porque é vontade temporalizada. (FANON, 1968, p. 200).

A literatura oral existente passa a ter modificações, as epopeias, cantos populares se transformam, os narradores animam introduzindo episódios que já aconteceram como exemplo, cita nome dos heróis e as armas usadas, evocando o povo à luta. Logo esses narradores foram perseguidos e presos, mas a literatura continuou em sua forma de resistência e denúncia. Essa literatura apresenta um novo homem ao povo, um homem no modelo nacional africano.

Essas mutações renovam as intenções culturais para o combate, o despertar da consciência está evidente em todas as manifestações culturais, seja na música, no artesanato ou na literatura. Todas com vigor e reestruturação da percepção de um inevitável confronto. O processo da luta desenrola novas direções culturais, trazendo um novo humanismo.

O surgimento da consciência nacional em África se relaciona com a contemporaneidade, uma responsabilidade do africano com a cultura negro-africana. (Fanon, 1968).

O foco do homem intelectual africano é a construção de sua nação, efetivamente a descoberta de valores universais. A nação que luta pela sua libertação se faz presente na cena da história e adquire o reconhecimento internacional.

Remendos de estrelas

Passajadas no espaço

Reconstroem todo o céu

Mãe:

E se não houvesse estrelas

Se o teu ventre me não gerasse

E se o céu em vez de infinito

Fosse de pergamóide azul?

Que espécie de poesia, mãe

Faria um poeta que não renuncia

Exatamente como eu

À cor com que nasceu?

José Craveirinha: Antologia Poética

RESISTÊNCIA NA MÚSICA E NA LITERATURA

Assim como em outras manifestações culturais em África, a música teve um papel importante na luta de libertação, sua resistência foi contagiante e por meio dela denúncias eram feitas e evocava uma luta para uma nova consciência nacional.

Nesse contexto surge uma banda que teve destaque por ter como objetivo preservar a cultura angolana e afirmar a identidade do negro africano, uma tentativa de reagir ao colonialismo que proibiu e vetava qualquer tipo de manifestação cultural autóctone .

Seus integrantes foram Carlos do Aniceto Liceu, Nino Ndongo, Domingos Van-Dúnem, Mário da Silva Araújo, Manuel dos Passos, Vieira Dias, entre outros. Essa banda criava suas músicas com instrumentos e letras na língua nativa, de uma forma dançante e contagiante, traduziam músicas tradicionais do campo em uma música popular. Adaptaram instrumentos africanos para substituir os instrumentos europeus, como foi o caso da dikanza (reco-reco), que usavam para traduzir os acordes da guitarra.

Eles cantavam as histórias e as músicas que ouviam de suas mães e avós quando eram crianças. Vieira Dias transcreveu algumas canções e ritmos, que ouvia quando viajava pelo país com seu pai, que era funcionário público. Ele transformou a música em Angola, com o toque quimbundo gênero Semba, revolucionava e mostrava sua resistência durante um período que o regime colonial reprimia todas as línguas locais.

A banda Ngola Ritmos só podia tocar para amigos, festas de aniversários e em espetáculos no bairro operário, onde estimulava a luta de libertação de Angola. Nunca permaneciam em um local por muito tempo, sempre tinham que estar em movimento, mudando de lugar, pois foram perseguidos e alguns presos.

Apesar de todos os problemas e perseguição que enfrentaram, eles gravaram dois discos e em 1950 sua popularidade era tanta que tocavam em estações de rádios por todo o país. Porém, conseguiram mudar a música em Angola, resistiram e lutaram pela libertação de sua nação. O Ngola Ritmos foi tão importante na luta de libertação em Angola que em 1978, foi feito um filme sobre a banda, no qual esteve presente pela última vez o grupo todo.

A música também esteve presente na literatura, como é o caso da banda Ngola Ritmos, que foi citada no livro Nós do Makulusu de Luandino Vieira, com a mesma consciência de resistência e libertação. Dando ênfase ao que o escritor defendia que era a reimaginação da nação e a criação de identidade cultural dos africanos.

Assim como na música a literatura surge com a chamada do leitor atento para à luta de libertação, Luandino vieira cria uma obra que revoluciona, surgindo como a nova literatura de Angola, com uma linguagem diferente utilizando a língua local com a língua do colonizador. Denuncia às formas de opressão e busca uma identidade nacional.

A literatura nacional angolana estabelece um novo conceito de sistema próprio, uma nova abordagem que descreve o colonialismo denunciando o sangue derramado por ele. Além disso, busca reimaginar a nação transformando a dialética local em um fator poderoso contra o sistema colonial.

A poesia surge com a musicalidade e simbologia de sua própria terra, os poetas angolanos descreviam a luta e cantavam para sua gente. Narrativas transformadas em poesia para africanizar, conhecida como oralidade de quintal.

A literatura africana é uma literatura social e política, denuncia a repressão vivida pelo seu povo e faz sua gente pensar em revolução, trazendo o novo como o passado perdido para o meio atual vivido, buscando mudanças e valorizando sua gente, suas lutas diárias.

Os musseques sempre aparecem como o campo onde mais resiste essa ideia de nação. Na literatura esse local sempre surge como referência, pois lá viviam os proletariados que sofriam com a ditadura desse colonialismo.

O mais importante da literatura africana não é só sua denúncia social, mas sua resistência presente, a transformação cultural no intelectual. Nela os africanos começam a se enxergar como personagem e não paisagem, a literatura africana humaniza seu povo.

Dessa forma o imaginário colonial cai quando vê surgir no campo do domínio, no caso o da escrita, uma ponta de lança que acorda o povo colonizado. Por mais que tentem reprimir não conseguem porque o povo anseia por mudanças.

CRUZ, Marília Pereira da. São Paulo, 2019.

REFERÊNCIAS

ACHEBE, Chinua. A educação de uma criança sob o protetorado britânico. São Paulo: Companhias das Letras, 2012.

CABAÇO, José Luís. Breves anotações sobre Protonacionalismo, Nativismo, Panafricanismo, Negritude: Resistência e Libertação. (Data não informada)

CHAVES, Rita. MACÊDO, Tânia. VECCHIA, Rejane. (Orgs). A Kinda e a Misanga, Encontros brasileiros com a literatura angolana. Rio de Janeiro: Editora Cultura acadêmica, 2007.

CRAVEIRINHA, José. Poetas de Moçambique: “José Craveirinha: antologia poética”. Organizadora: LEITE, Ana Maria Mafalda. Minas Gerais: Editora UFMG, 2010.

FANON, Frantz. Os condenados da terra. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira S.A. 1968.

MUNANGA, Kabengele. Origens africanas do Brasil contemporâneo: Histórias, línguas, culturas e civilizações. São Paulo: Editora Gaudí, 2012.

MACÊDO, Tânia. Ngola Ritmos, um breve histórico. Apostila literaturas Africanas de língua portuguesa I, p. 45-46. Universidade de São Paulo. (1º Semestre-2017)

PRATT, Mary Louise. Os olhos do império: relatos de viagem e transculturação. Bauru: Edusc, 1999.

SERRANO, Carlos. WALDMAN, Maurício. Memória d’África: A temática africana em sala de aula. São Paulo: Editora Cortez, 2008.