Análise estilística do poema "Anseio" de Augusto dos Anjos

INTRODUÇÃO

Este trabalho tem por objetivo destacar a importância da estilística como recurso expressivo e desvio de linguagem, presente em toda literatura. O trabalho abordará o poema “Anseio” do poeta Augusto dos Anjos. A análise estilística de um poeta nunca foi tarefa fácil, principalmente quando se trata de Augusto dos Anjos, poeta pré-modernista, ao qual ainda hoje, não se estabelece um lugar historicamente coerente, entre o final do simbolismo no Brasil e os primeiros resquícios de uma poesia moderna que surgirá só em 1922.

Nasceu na Paraíba em 20 de abril de 1884, Augusto de Carvalho Rodrigues dos Anjos. Ainda jovem perde o pai, Alexandre Rodrigues dos Anjos, em 1905, e depois de seu tio, Dr. Aprígio Carlos Pessoa de Melo, em 1908, fatos trágicos que marcaria sua vida. Presenciou a perda das posses da família, e de toda classe latifundiária nordestina conseqüência das transformações sociais, políticas que acompanharam a virada do século conjunto de acontecimentos que acentuaram a miséria na região. Personificou-se a destruição de seu mundo.

Formou-se em direito em 1907, teve no mundo acadêmico contato com muitas disciplinas relacionadas ao materialismo e o evolucionismo. Foram base para sua formação nomes como: Haeckel, Darwin, Spencer, Schopenhauer.

A partir deste ponto passa a entender a morte como fato da vida, e que todos nós estamos condenados a ela.

Parte da Paraíba para o Rio de Janeiro em 1910. Pensava em alcançar condições favoráveis para sua sobrevivência. Foi infeliz! Não teve sua obra reconhecida e foi tachado como autor de mau gosto.

Poucos entenderam sua obra, Francisco de Assis Barbosa, Orris Soares e Heitor Lima estão entre eles.

Sua única obra intitulada “EU” teve sua primeira edição em 1922, mas só passou a ser reconhecida após o movimento de 1922, oito anos após sua morte.

ANSEIO

Que sou eu, neste ergástulo das vidas

Danadamente, a sofrer de dor?!

–Trinta trilhões de células vencidas,

Nutrindo uma efeméride interior.

Branda, entanto, a afagar tantas feridas,

A áurea mão taumatúrgica do Amor

Traça, nas minhas formas carcomidas,

A estrutura de um mundo superior!

Alta noite, esse mundo incoerente

Essa elementaríssima semente

Do que hei de ser, tenta transpor o Ideal...

Grita em meu grito, alarga-se em meu hausto,

E, ai! como eu sinto no esqueleto exausto

Não poder dar-lhe vida material!

Em anseio, poema da terceira fase do poeta, tentar-se-á elencar os elementos estilísticos que caracterizam a marca do autor, elementos que o aproximam dos poetas modernistas e que o distanciam dos seus contemporâneos.

O poema é composto por rimas misturadas, sendo que, na primeira e segunda estrofes são rimas cruzadas, já, na terceira e quarta estrofes, as rimas são misturadas. Por ocorrerem em palavras que pertencem a categorias gramaticais diferentes (substantivos e adjetivos) são classificadas como rimas ricas .

Quanto à métrica, temos os versos decassílabos heróicos com E.R. 10(6-10), “verso musical de grade efeito” (Goldstein, 2005).

Na primeira estrofe, tem-se, logo de saída, a indeterminação do “Eu lírico” seguida por uma pergunta que manifesta um conflito existencial e o prenuncio de uma condenação:

“Que sou eu, neste ergástulo das vidas

Danadamente a sofrer de dor”!?

Nesta passagem tem-se uma metáfora associada à palavra ergástulo, o significado denotativo desta palavra é cárcere subterrâneo escuro e úmido, como elemento metafórico, assume o sentido conotativo de prisão no corpo material. A presença do advérbio “Danadamente” intensifica a atmosfera de sofrimento. Os acentos de exclamação e interrogação são recursos estilísticos conhecidos como metágrafos “no esforço de sugerir a intensidade da surpresa e do espanto ou da perplexidade e da dúvida” (MONTEIRO, 2005 p.66).

No terceiro verso, ainda na primeira estrofe, se nota que surge uma outra voz, a qual responde a pergunta feita, fato que pode ser percebido pelo uso do travessão, recurso de estilo que além de enfatizar expressividade do verso, marca o discurso direto, que caracteriza o dialogo na esfera da escrita :

“–Trinta trilhões de células vencidas

¬ Nutrindo uma efeméride interior.”

Neste trecho, pode-se interpretar esta outra voz como se fosse à voz da própria morte, sentenciando a vida, revelando ao extremo a triste condição da existência humana. Os dêiticos “células e efeméride” também são recursos semânticos importantes nesta estrofe, pois são eles que retomam a idéia de corpo e existência espiritual, ora, o que mais poderia ser as células vencidas, senão o ergástulo das vidas (prisão das vidas) e efeméride interior, senão o próprio “eu lírico” que faz a pergunta no primeiro verso?

Na estrofe seguinte, percebe-se uma quebra de expectativa, o ritmo macabro é rompido por uma condescendência presente nos versos:

“Branda, entanto, a afagar tantas feridas,

A áurea mão taumatúrgica do Amor

Traça, nas minhas formas carcomidas,

A estrutura de um mundo superior!”

A causa do efeito condescendente é a figura de oposição (antítese), que se manifesta pela presença de da conjunção adversativa “no entanto”, que no verso tem suprimida a preposição mais o artigo definido: em + o = “no”. No próximo verso, a assonância da vogal “a” sugere a intensificação do significante e significado da palavra “Amor”:

“Sendo o fonema mais sonoro, mais livre, de todo o nosso sistema fonológico, o [a] traduz sons fortes, nítidos e reforça a impressão auditiva das consoantes que acompanha.” (MARTINS 2003, p.29)

Escrito com letra maiúscula, que remete à idéia de amor platônico, ou melhor, à concepção que Platão tinha sobre tal tema. “A maiúscula pode ainda sugerir uma personificação, uma idealização, ou a intenção de uma profundeza metafísica” (MARTINS, 2003, p.65). Os versos terceiro e quarto confirmam a observação feita acima: “Traça, nas minhas formas carcomidas, A estrutura de um mundo superior!”. Outra observação pode ser feita na segunda estrofe, a mão do Amor que suaviza e cura as feridas, além de ser uma metáfora, é apresentada como revelação divina, neste sentido, se abre a possibilidade de interpretar tal passagem como sendo epifania, considerando a etimologia da palavra: epiphanéia (= manifestação, aparição), de origem grega (epi = sobre; phaino = aparecer, brilhar), que pode ter duas acepções:

“A primeira num sentido místicoreligioso, que a define como aparição ou manifestação divina ou festividade religiosa com que se celebra essa aparição, cujo exemplo traz o Novo Testamento, na ocasião das aparições de Jesus Cristo. No calendário cristão, a igreja celebra a Festa da Epifania para comemorar a vinda de Jesus ao mundo”. (MORAES apud HOLANDA, 1975, p.541).

A segunda:

“relato de uma experiência que a princípio se mostra simples e rotineira, mas que acaba por mostrar toda a força de uma inusitada revelação. Sant'Anna tenta assim definir esse fenômeno pelo termo revelação, ou seja, um episódio provocado por atos comuns do dia-a-dia, que resulta num momento de êxtase em que se percebe uma “realidade atordoante”. (MORAES apud SANT ’ANNA, 1973, p. 187).

Na terceira estrofe, a atmosfera continua calma, que deixa passar quase que despercebida, outra voz, implícita nas entrelinhas, a voz de alguém que ainda não tem vida material, que sai do imaginário para o real:

“Alta noite, esse mundo incoerente

Essa elementaríssima semente

Do que hei de ser, tenta transpor o Ideal...”

O uso do superlativo intensifica o sentido de simplicidade da semente, que tem como, uma dentre tantas, possível interpretação o sêmen masculino, tendo como forte indicio de confirmação à locução verbal “hei de ser” ao invés de serei, recurso eleva o grau do significado da expressão. Logo em seguida, se tem a passagem “tenta transpor o Ideal...“ conclui o fluxo de consciência dando lógica ao discurso. Outra vez, há o uso de letra maiúscula como recurso estilístico, enfatizando e ampliando o significado da palavra Ideal seguida de reticências, que indica continuidade do fato. É como se esta semente estivesse no processo de germinação, crescendo e se transformando.

Na última estrofe, o sentimento de dor e angustia é retomado marcado pelas palavras grita, grito, com a ocorrência da vogal “i” que tem considerável valor sonoro, recurso de estilo conhecido como anominação que “consiste no emprego de palavras derivadas do mesmo radical.” (idem, ibidem).

“Grita em meu grito, alarga-se em meu hausto,

E, ai! como eu sinto no esqueleto exausto

Não poder dar-lhe vida material!”

No segundo verso, apresenta-se a interjeição “ai!” expressão de forte significado e valor sonoro anuncia o pressagio de tragédia. E, de quem é essa voz que diz não poder dar vida material? A quem? Talvez, seja a manifestação do eu lírico no intuito de revelar à dor que sente todo aquele que tem sua vida ceifada ainda no útero de sua mãe. Ou seja, a dor da inconformidade diante da grande e única verdade a qual estamos todos condenados. O que se deve considerar é que a grandeza deste autor, tão criticado e pouco lido, o projeta como um dos expoentes da poesia brasileira.

O último verso. Consuma-se tudo! Vê-se neste verso a expressão maior do sofrimento, sofrimento que não se restringe ao eu que fala, mas se amplia a todos os seres viventes, a todas as pessoas, esta é a personificação de um algo, ao qual, nenhum de nós poderá escapar. A Morte.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em Augusto dos Anjos, podem-se perceber traços estilísticos que estão presentes em poetas contemporâneos a ele. Contudo, não são estes traços que o aproximam dos poetas modernistas, mas a dialética de seu poema, como também, o caráter prosaico e a aproximação com a realidade nua e crua:

“Não e um dos procedimentos típicos da poesia moderna exprimir os sentimentos humanos – e tudo o que é abstrato – através dos atos e das coisas banais em que eles se objetivam?” (GULLAR, 1995, p.46)

A linguagem de Augusto é caustica com termos científicos e degradados, marcas de sua expressão poética, “a linguagem se despiu da velha retórica, a experiência concreta da vida se tornou a matéria da poesia” (GULLAR, 1995, p.36).

O autor questiona a literatura “tendo consciência implícita ou explícita, de que a literatura é um instrumento de conhecimento e transformação da realidade, através do qual o homem atualiza (formula, comunica) um tipo especifico de experiência vital”. (idem, ibidem).

O autor, apesar de ainda não ser muito estudado, foi o primeiro, segundo Ferreira Gullar, a mostrar traços do que seria o movimento concretista no Brasil:

“Augusto conduz a expressão verbal, como também o rompimento com a concepção literária acadêmica, o que o situa como precursor, a meu juízo, da poesia que se fará no Brasil depois do movimento de 22” (GULLAR, 1995, p.26)

Acredita-se que o objetivo deste trabalho, relevando-se alguns equívocos que eventualmente possam ter ocorrido, foi atingido, considerando a importância do Poeta e os questionamentos levantados sobre os elementos estilísticos, marca caracterizadora, do autor.

BIBLIOGRAFIA

MONTEIRO, José Lemos. A Estilística. 5ª ed. São Paulo: Vozes, 2005

GULLAR, Ferreira. Toda Poesia de Augusto dos Anjos. 3ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 1995

MARTINS, Nilce Sant’Anna. Introdução à estilística. 3ª ed. São Paulo: T.A. Queiroz, Editor, LTDA., 2003

GOLDSTEIN, Norma. Versos, Sons, Ritmos. 13ª ed. São Paulo: Editora Ática, 2005

MORAIS, Maria Alves de. “Epifania e Crise” Uma análise Comperativa em Clarice Lispector e Marguerite Duras.<WWW.cchla.ufrn.br/.../l_Rosana_Alves_de_Morais.pdf > Acesso em: 13 de Maio de 2010.

AleWie
Enviado por AleWie em 23/03/2019
Reeditado em 23/03/2019
Código do texto: T6605437
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