Dias Chuvosos

Os dias chuvosos trazem sempre alguma compensação. Mesmo nos ociosos momentos à beira-mar, é possível dedicar algumas horas à leitura e à meditação, que haverão de significar um saldo útil para a vida.

Em Um Casamento em Florença, Somerset Maughan conclui a obra com a frase pronunciada por Rowley: Minha querida, é para isto que a vida foi feita: nos arriscarmos.

 

Certos são os riscos permanentes, desde o dia em que abrimos os olhos para o mundo; mas podemos construi-la como o resultado de nossos pensamentos e conduta.

 

 O romance de Somerset culmina com o casamento de Rowley e Mary. Ele a ama e está disposto a correr um risco calculado, pois o passado de Mary não constitui suficiente credencial para garantir o casamento; mas, como escreveu Platão no Banquete, se verdadeiramente os deuses sabem apreciar a força que nasce do amor, mais apreciam e recompensam se é o que ama a se sacrificar pelo amado. E a razão é esta: o que ama é, de certa maneira, mais divino que o objeto amado, pois possui em si a divindade; é possuído por um deus.

 

Rowley arrisca-se por sentir em si a força da divindade ao lhe dar confiança e esperança.

 

No mesmo Banquete, Platão, através dos lábios de Sócrates, ali convertido numa personagem, diz ser a procriação e o nascimento coisas imortais num ser mortal. A procriação é um sinal de imortalidade e uma aspiração humana, como a aquisição do Bem e da Verdade; o amor se confunde com a imortalidade. A natureza mortal é impelida à imortalidade. A procriação não se resume na física, deve significar a mental e sensível: criar pensamentos e sentimentos, a perdurar no tempo, independente dos dias e anos de vida, e podem transcender o limitado trecho contido entre o dia do nascimento e o do desenlace fatal.

 

O criador ama o criado. Pode ser um filho, um pensamento, uma pequena obra, porque vive ali e pressente um sinal de eternidade.

 

É possível criar pela fecundidade do corpo, como do espírito, que permite o surgimento de pensamentos, sentimentos e virtudes a beneficiar uma família, um Estado ou toda a humanidade.

 

O entendimento da eternidade, e a possibilidade de experimentá-la no físico existir, está intimamente ligado à experiência pessoal do criador, aprendiz feito à imagem e semelhança de um maior, constantemente a segredar todas as possibilidades abertas aos que têm ouvidos para ouvir e inteligência para entender.

 

Tudo quanto façamos aqui na Terra tem que ser grato ao nosso espírito e encerrar um valor positivo para a nossa existência, escreveu o pensador González Pecotche. Há um vislumbre de eternidade através das próprias realizações. E acrescenta: a vida do homem na Terra é de incalculável valor para a existência que o anima.

 

A consciência individual do ser humano pode ser ampliada no processo da vida através da evolução, implicando aquisição de conhecimentos. Ela pode, também, sucumbir, debilitada pela inércia, desaparecendo do cenário humano, para dar lugar a um outro movimento. A ampliação dos conhecimentos tem a ver com a sede por eternidade, ou com a fonte da eterna juventude, pressentida e procurada pelos antigos.

 

A ampliação da vida se tornará possível expandindo-a nas próprias obras e pessoas com as quais se tem a possibilidade de conviver, deixando nelas as marcas inconfundíveis daquele que por aqui passou e foi útil a si e aos demais. Isso seria maior que a imortalidade através da arte, mencionada por Platão. Essa sede por eternidade nos permitiria projetar um futuro e construir um passado a se converter num infinito presente chamado eternidade.

 

 Se num dia ensolarado podemos vislumbrar um amanhã melhorado, os dias chuvosos podem nos fazer recordar do sol e pressentir a eternidade.

Nagib Anderáos Neto

www.nagibanderaos.com.br