"A ÚLTIMA CRÔNICA" - de Fernando Sabino

"Democracia é oportunizar a todos

o mesmo ponto de partida.

Quanto ao ponto de chegada,

depende de cada um."

(Fernando Sabino)

A última crônica

*Fernando Sabino*

"A caminho de casa, entro num botequim da Gávea para tomar um café junto ao balcão. Na realidade estou adiando o momento de escrever. A perspectiva me assusta. Gostaria de estar inspirado, de coroar com êxito mais um ano nesta busca do pitoresco ou do irrisório no cotidiano de cada um. Eu pretendia apenas recolher da vida diária algo de seu disperso conteúdo humano, fruto da convivência, que a faz mais digna de ser vivida. Visava ao circunstancial, ao episódico. Nesta perseguição do acidental, quer num flagrante de esquina, quer nas palavras de uma criança ou num acidente doméstico, torno-me simples espectador e perco a noção do essencial. Sem mais nada para contar, curvo a cabeça e tomo meu café, enquanto o verso do poeta se repete na lembrança: "assim eu quereria o meu último poema". Não sou poeta e estou sem assunto. Lanço então um último olhar fora de mim, onde vivem os assuntos que merecem uma crônica.

Ao fundo do botequim um casal de pretos acaba de sentar-se, numa das últimas mesas de mármore ao longo da parede de espelhos. A compostura da humildade, na contenção de gestos e palavras, deixa-se acrescentar pela presença de uma negrinha de seus três anos, laço na cabeça, toda arrumadinha no vestido pobre, que se instalou também à mesa: mal ousa balançar as perninhas curtas ou correr os olhos grandes de curiosidade ao redor. Três seres esquivos que compõem em torno à mesa a instituição tradicional da família, célula da sociedade. Vejo, porém, que se preparam para algo mais que matar a fome.

Passo a observá-los. O pai, depois de contar o dinheiro que discretamente retirou do bolso, aborda o garçom, inclinando-se para trás na cadeira, e aponta no balcão um pedaço de bolo sob a redoma. A mãe limita-se a ficar olhando imóvel, vagamente ansiosa, como se aguardasse a aprovação do garçom. Este ouve, concentrado, o pedido do homem e depois se afasta para atendê-lo. A mulher suspira, olhando para os lados, a reassegurar-se da naturalidade de sua presença ali. A meu lado o garçom encaminha a ordem do freguês.

O homem atrás do balcão apanha a porção do bolo com a mão, larga-o no pratinho - um bolo simples, amarelo-escuro, apenas uma pequena fatia triangular. A negrinha, contida na sua expectativa, olha a garrafa de Coca-Cola e o pratinho que o garçom deixou à sua frente. Por que não começa a comer? Vejo que os três, pai, mãe e filha, obedecem em torno à mesa um discreto ritual. A mãe remexe na bolsa de plástico preto e brilhante, retira qualquer coisa. O pai se mune de uma caixa de fósforos, e espera. A filha aguarda também, atenta como um animalzinho. Ninguém mais os observa além de mim.

São três velinhas brancas, minúsculas, que a mãe espeta caprichosamente na fatia do bolo. E enquanto ela serve a Coca-Cola, o pai risca o fósforo e acende as velas. Como a um gesto ensaiado, a menininha repousa o queixo no mármore e sopra com força, apagando as chamas. Imediatamente põe-se a bater palmas, muito compenetrada, cantando num balbucio, a que os pais se juntam, discretos: "Parabéns pra você, parabéns pra você..." Depois a mãe recolhe as velas, torna a guardá-las na bolsa. A negrinha agarra finalmente o bolo com as duas mãos sôfregas e põe-se a comê-lo. A mulher está olhando para ela com ternura - ajeita-lhe a fitinha no cabelo crespo, limpa o farelo de bolo que lhe cai ao colo. O pai corre os olhos pelo botequim, satisfeito, como a se convencer intimamente do sucesso da celebração. Dá comigo de súbito, a observá-lo, nossos olhos se encontram, ele se perturba, constrangido - vacila, ameaça abaixar a cabeça, mas acaba sustentando o olhar e enfim se abre num sorriso.

Assim eu quereria minha última crônica: que fosse pura como esse sorriso."

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[Consta na Lápide de Fernando Sabino]

"Fernando Sabino, que nasceu homem e morreu menino!"

((Fernando Sabino))

FERNANDO SABINO

Fernando Tavares Sabino (Belo Horizonte, 12 de outubro de 1923 — Rio de Janeiro, 11 de outubro de 2004) foi um escritor, jornalista e editor brasileiro. Foi considerado um dos mais importantes cronistas brasileiros,

tendo também exercido atividades como cineasta.

É pai da cantora e compositora Verônica Sabino.

Fernando Tavares Sabino com 13 anos, escreveu seu primeiro texto, para a revista da Secretaria de Segurança de Minas Gerais.

Com 15 anos torna-se colaborador regular das revistas Alterosa e Belo Horizonte, onde publica artigos, contos e crônicas. Em 1941 ingressa na Faculdade de Direito de Minas Gerais. Em 1941 publica seu primeiro livro de contos “Os Grilos Não Cantam Mais”.

Fernando Sabino muda-se para o Rio de Janeiro, em 1944, onde em 1946 conclui o curso na Faculdade Nacional de Direito. Nesse mesmo ano, vai para Nova Iorque, trabalha no Escritório Comercial do Brasil e posteriormente no Consulado Brasileiro. Durante esse período envia crônicas para o diário carioca, O Jornal. Em 1948 retorna ao Brasil.

Em 1960 passa a colaborar com o Jornal do Brasil. Publica “O Homem Nu” (1960) e “A Mulher do Vizinho” (1962), que recebeu o prêmio Fernando Chinaglia do Pen Clube do Brasil. Nesse mesmo ano, junto com Rubem Braga, inaugura a “Editora do Autor”. Em 1971, em parceria com David Neves, começa a organizar uma série de documentários sobre escritores brasileiros, que é lançada em 2006, em curtas e DVD.

Em 1979, depois de 23 anos, quando começou a obra, publica “O Grande Mentecapto”, que lhe rendeu o Prêmio Jabuti e foi adaptado para o cinema e teatro. Em 1999 recebeu o Prêmio Machado de Assis, Pelo Conjunto da Obra.

Fernando Sabino faleceu em sua casa em Ipanema (zona sul no Rio de Janeiro), vítima de câncer no fígado, às vésperas do 81º aniversário[10][11]. Foi sepultado no Rio, no Cemitério São João Batista. Seu epitáfio, escrito a seu pedido, é o seguinte: "Aqui jaz Fernando Sabino, que nasceu homem e morreu menino!"

Mais um de seus pensamentos:

"De tudo, ficaram três coisas:

a certeza de que ele estava sempre começando,

a certeza de que era preciso continuar e

a certeza de que seria interrompido antes de terminar.

Fazer da interrupção um caminho novo.

Fazer da queda um passo de dança,

do medo uma escada,

do sono uma ponte,

da procura um encontro."

((Fernando Sabino))