Versos Febris (Wilma Martins de Mendonça)xx

À memória do Amigo Sindicalista Dráuzio Macedo; da Geriatra Fátima Cartaxo; do Colega Aluísio Costa Filho e da Amiga Cleonice dos Santos, vitimados pela Covid-19.

A morte de tão depressa

nem repara no que fez.

Carlos Drummond de Andrade i

A temática da coletânea, Poesia em plena pandemia,ii de Osman Matos, pode parecer, a algum leitor mais desavisado, especiosa e inabitual. Nada mais enganoso. Ao versejar sobre a pandemia que assola o planeta, Osman Matos filia sua obra à tradição poética ocidental, aproximando-a de um dos temas da Ilíada, poema épico da Grécia Antiga.

Atribuída a Homero, a Ilíada desfruta de uma posição ímpar, em nossas letras: é a fundadora do lirismo no Ocidente. Dividida em vinte e quatro cantos, a epopeia homérica traz, no seu canto inicial, a descrição do infenso um letal morbo, ou da epidemia, que ocorre durante a guerra entre gregos e troianos, causadora das inúmeras mortes dos guerreiros gregos, como se lê na tradução de Odorico Mendes. Vê-se, assim, que, desde o texto de Homero, o tema epidêmico frequenta a literatura europeia:

Canta-me,/ ó deusa, do Peleio Aquiles/ A/ ira tenaz, que, lutuosa aos Gregos,/ Verdes/ no Orco lançou mil fortes almas,/ Corpos/ de heróis a cães e abutres pasto: / Lei/ foi de Jove, em rixa ao discordarem/ O/ homens chefe e o Mírmidon divino./ Nume/ há que os malquistasse? o que o Supremo leve/ Em Latona. Infenso um letal morbo. iii

Esse tópico discursivo seria responsável pela criação de grandes obras no mundo europeu, conhecidas de maneira geral, notadamente nesses tempos grassados pela pandemia da Covid-19. Entre elas, destacamos Decameron ou Decamerão (1348 – 1353), de Giovanni Boccaccio; Um diário do ano da peste (1722), de Daniel Delfoe; A peste (1947), de Albert Camus, e, mais recentemente, Ensaio sobre a cegueira (1995), de José Saramago.

Se, na Europa, o tema epidêmico surge através da poiese, em solo latino-americano desponta através da mimese. Entre nós, de Latino-América, sobressai a extraordinária obra de Gabriel García Márquez: O amor nos tempos do cólera (1985). Entretanto nos deparamos, na literatura brasileira, com a tematização de epidemias, circulando em vários romances, desde a nossa fundação literária, notadamente com os primeiros escritos romanescos, a exemplo de Lucíola (1865), de José de Alencar.

Em sua primeira narrativa, de cunho epistolar, o escritor cearense representa o surto da febre amarela de 1850, que atingiu duramente o Rio de Janeiro, nos fins do século XIX. Constituindo um verdadeiro flagelo à sua população, acredita-se que o número oficial de mortos foi manipulado pelo poder imperial, não correspondendo, assim, à proporção de mortes ocorridas. Na verdade, a população fluminense foi reduzida em de mais de terço, como advoga Sidney Chalhoub. iv

Inúmeras vidas foram interrompidas ou modificadas irremediavelmente, como se deu com o destino da personagem, Maria da Glória, então com catorze anos. A ocorrência fatídica transfigurou, de maneira nefasta, o viver da adolescente. A febre amarílica traria o desmantelamento e a pobreza familiar que a arrastariam ao indesejado universo das cortesãs.

Mesmo tendo sua vida preservada, em meio a tantas mortes causadas pela pandemia, que se aliava ao mal da tuberculose no ceifar de vidas, a personagem semantiza o seu ingresso nesse mundo de mulheres como falecimento. A metáfora indicia a internalização, da própria protagonista, dos valores patriarcais que regiam profundamente a sociedade brasileira, e ainda regem, para a desgraça feminina:

Maria da Glória! – É o meu nome [...] – E o que é feito de sua família? – Lembra-se da febre amarela em 1850? [...] Foi um ano terrível. Meu pai, minha mãe, meus manos caíram doentes; só havia em pé uma tia e eu. Uma vizinha que viera acudir-nos adoecera à noite e não amanheceu [...] Estávamos na penúria [...] Nalgum momento de repouso ia à porta e pedia aos que passavam. Pedia para o meu pai enfermo e para minha mãe moribunda, não tinha vexame. Uma tarde perdi a coragem [...] Passou um vizinho. Falhei-lhe: ele me consolou e disse-me que o acompanhasse à sua casa. A inocência e a dor me cegaram {...] O dinheiro ganho com a minha vergonha salvou a vida do meu pai [...] Saí de casa [...] Nisto uma moça de minha idade veio morar comigo; a semelhança de nossos destinos fez-nos amigas; porém Deus quis que eu carregasse só a minha cruz. Lúcia morreu tísica; quando veio o médico passar o atestado, troquei os nossos nomes, Meu pai leu no jornal o óbito de sua filha [...] “Morri para o mundo e para a minha família. v

A obra romanesca de Machado de Assis se revela como um farto material da memória da saúde, da então capital do Império. Desde o seu segundo romance, as epidemias e as doenças, que abatem a população do Rio de Janeiro, se desdobram entre os fios narrativos de Machado, de maneira recorrente, conforme se afere da leitura de sua obra.

Em seu segundo romance, A mão e a luva (1874), contextualizada no período de surgimento da epidemia do cólera, o narrador matiza esse contexto com as nuances da frívola irresponsabilidade e da negligência da Corte, dos homens maduros e endinheirados que permaneciam em festas, em clubes e cassinos, enquanto o mal colérico, à vontade, ia adentrando o chão fluminense, como registra, insistentemente, o narrador:

A corte divertia-se, como sempre se divertiu, mais ou menos, e para os que transpuseram a linha dos cinquenta anos divertia-se mais do que hoje [...] A corte divertia-se, apesar dos estragos recentes do cólera –; bailava-se, cantava-se, passeava-se, ia-se ao teatro. O Cassino abria os seus salões, como os abria o Clube, como os abria o Congresso, todos três fluminenses no nome e na alma. Eram os tempos homéricos do teatro lírico [...] Um dia de manhã soube-se que em Cantagalo havia aparecido o terrível inimigo. vi

Nas Memórias póstumas de Brás Cubas, publicado em 1881, o panorama social tecido é marcado pela presença da tuberculose, da bexiga e da febre amarela. Nessa narrativa, o narrador descreve a grande mortalidade ocorrida, com a primeira entrada do mal amarílico, no Rio de Janeiro. A epidemia avizinha-se do próprio narrador. Sua futura esposa, a jovem Eulália Damascena de Brito, com 19 anos, falece em meio à letalidade geral:

Ficam sabendo que morreu; acrescentarei que foi por ocasião da primeira entrada da febre amarela. Não digo mais nada, a não ser que a acompanhei até o último jazigo, e me despedi triste, mas sem lágrimas. Concluí que talvez não a amasse deveras [...] Doze pessoas apenas, e três quartas partes amigos do Cotrim acompanharam à cova de sua querida filha. E ele fizera oitenta convites. Ponderei-lhe que as perdas eram tão gerais que bem se podia desculpar essa desatenção aparente. Damasceno abanava a cabeça de um modo incrédulo e triste. vii

Em Quincas Borba (1891), além do mal da alienação, sofrida por Quincas Borba, enfermidade que o levaria à morte, encontramos o registro da presença dos males da erisipela e dos pleuris. A inflamação da pleura arrastaria a viúva Maria da Piedade, irmã de Rubião e a pretendida de Quincas, à sepultura. viii

Como se sabe, entre o primeiro (década de 1850) e o segundo surto (inícios de 1870) do mal amarílico, no Rio de Janeiro, a moléstia percorreu o Brasil, como insinua o narrador machadiano. Quincas Borba cuidara de seus parentes com desvelo e solidariedade em Barbacena. Essa alusão apareceria, também de maneira implícita, na nota do jornal da Corte, anunciando a morte do filósofo Quincas Borba. A insanidade adquiriu, assim, o mesmo potencial mortífero gerado pela epidemia amarílica:

Quincas Borba tivera ali [Barbacena] alguns parentes, mortos já agora em 1867; o último foi o tio que o deixou por herdeiro de seus bens [...] Faleceu ontem o sr. Joaquim Borba dos Santos, tendo suportado a moléstia com singular filosofia. Era homem de muito saber, e cansava-se em batalhar contra esse pessimismo amarelo e enfezado que ainda há de chegar aqui um dia; É a moléstia do século[...] Já então delirava Deixa muitos bens. O testamento está em Barbacena. ix

Mesmo às voltas com a suposta traição de Capitu, Bentinho não se esquece de nos informar da existência da hanseníase, no solo fluminense. Ao narrar o falecimento precoce de Manduca, o narrador, que revê sua vida, se debruça sobre a moléstia que acometera o seu vizinho: “Manduca padecia de uma cruel enfermidade, nada menos que a lepra. Vivo era feio; morto pareceu-me horrível”. x

Constata-se que a obra de Machado de Assis, recheada de referências aos males que atingiram o Rio de Janeiro, é também um acervo que preserva as memórias das pestilências e doenças no Brasil, embora seus escritos tenham como cenário o espaço fluminense, espécie de vestíbulo de recepção de enfermidades. Das letras do nosso romancista desponta um país sombrio, soturno e doentio. Machado de Assis não para de nos surpreender. Em meio ao ficcional, nos lega um tratado sobre a história das doenças do Brasil da Corte e do Império

Em Aluísio Azevedo, de maneira mais particular em O cortiço (1890), João Romão, já contrariado com a presença de Bertoleza, então vista como um obstáculo e um grande empecilho aos seus novos planos de ascensão social, se alarga em desaforos aos que encontram no caminho, terminando por despenhar o seu furor sobre os moradores do cortiço: “Quero isso limpo! Bramava furioso. Está pior que um chiqueiro de porcos! Apre! Tomara que a febre amarela os lamba a todos!”xi

Na verdade, logo após a invasiva e brutal presença dos europeus, as endemias brancas se transformam em grandes epidemias em nosso solo, em acordo com as epístolas dos próprios jesuítas. Homens enfermiços, senhores das mais variadas moléstias, os missionários cristãos do colonialismo, como tanto outros nos dias atuais, se tornam verdadeiros veículos de transmissão e de alastramento das moléstias europeias.

Atropelam e dizimam grandes contingentes populacionais, em especial os habitantes do litoral brasileiro, sem apresentarem nenhum vestígio de inquietação de ordem moral, ética ou religiosa. A vida ameríndia indígena não lhes é útil, para lembrar a obra do filósofo indígena, Ailton Krenak, escrita nesses tempos pandêmicos.xii

Agentes da globalização capitalista,xiii aqui e alhures, os jesuítas veem, com indiferença e descaso, a matança que provocavam, tentando fazer crer que era obra do castigo divino. Nessa armadura ideológica, pretensamente religiosa, não fazem o menor caso das mortes dos viventes brasileiros. Sequestram, além dos lares, das línguas, das religiosidades, a saúde e a vida de nossas gentes, enrijecidos diante da dor de nossos povos. Uma hecatombe originada do culto ao capital mercantil e do velho farisaísmo, que não cessa de exibir suas consequências tormentosas.

Inserindo-se nessa tradição, Osman Matos elabora sua coletânea, Poesia em plena pandemia. Tecidos numa sutil aproximação com os sintomas da Covid-19, os versos da antologia são febris e ofegantes, oscilando, raramente, num tom que instaura uma atmosfera de urgência cruciante. Emergência, essa, que aflige os inficionados em busca dos cuidados médicos e os que temem contrair o vírus que, apressados e irrequietos, se desdobram em cuidados quando saem às ruas, quase entorpecidos pelo uso do álcool nas mãos e quase sem respirar pela acomodação recente às máscaras. Nesse caminhar métrico, Osman Matos descreve, simbolicamente, o desespero e a agonia decorrentes do surgimento inesperado da Covid-19.

Ledor cuidadoso da poesia brasileira, Osman Matos arquiteta seus versos, em confabulação explícita e íntima com vários de nossos poetas. Nessa trilha poética dupla, dialoga e atualiza a poesia de vários de nossos trovadores, a exemplo de Castro Alves, de Manuel Bandeira, de Mário Quintana, de Carlos Drummond de Andrade, desenvolvendo, com este último, uma interlocução mais assídua.

De cunho profundamente humanista, a coletânea de Osman Matos se caracteriza pelas contínuas indagações e reflexões acerca da natureza e dos pendores humanos. Nesse exercício inquietante, Osman Matos apreende, com uma notável acuidade, o contexto da pandemia de 2020, segundo aquiesce a epígrafe de abertura da obra, tomada de empréstimo ao poeta abolicionista.

A epígrafe sinaliza para a espantosa mortalidade, decorrente da catástrofe pandêmica, que se agiganta em escala global. No caso brasileiro, a pandemia se espalha desenfreada, de rédeas soltas. A completa ausência de empenho do presidente do Brasil e de seus ministros, principalmente o da saúde, torna mais trágica a evolução do desastre da letalidade, como aponta um eu-lírico perplexo e aflito, no poema “– E daí?”, escrito em 3 de maio de 2020:

Enterros coletivos./ Valas abertas/ às pressas por tratores/ em Manaus./ / Que cena! Que cena!/ O caos na saúde, o caos./ Em todo Brasil, a curva sobe/ de forma exponencial/ e do pico, ainda não se sabe./ Tentam achatar a curva/ mantendo o isolamento social, pra barrar a calamidade./ mas “– E daí?”/ “— Eu sou Messias mas não faço milagres”,/ Disse, hoje, o presidente-caos,/ durante passeata contra a democracia/ em plena pandemia [...] Até nos hospitais de campanha/ feitos para ter mais UTIs,/ faltam UTIs, médicos, especialistas,/ enfermeiros, remédios e EPIs./ — Falta respirador!/— Respirador! Por favor!/ — Respirador! (Matos, 2020, p. 96-97).

Na verdade, o número exorbitante de óbitos se deve, comprovadamente, a essa equipe governamental e aos seus aliados políticos, principalmente os que detêm a mão de obra brasileira, que se derramam em notas públicas, minimizando a gravidade da pandemia. O presidente da República, que ora se arria num negacionismo delinquente, ora numa inércia também delituosa, conduz parte de nosso povo a ignorar a calamidade que adentrou o país, segundo se confere no dístico de Osman Matos: “o povo ora, lava as mãos.”/ “O governo ora, lava as mãos.” (MATOS, 2020, p. 68).

Insatisfeitos com a quarentena, aconselhada pelos cientistas da saúde, os capitalistas bradam, a uma gente desnorteada, que o imprescindível e necessário é salvar a economia. Salvar a economia. Essa é a prioridade. Salvar a economia, gente, não, como verseja Osman Matos, em seu “Pneumologia”, destacando um dos maiores sintomas da covid-19, que conduz a um crudelíssimo tratamento médico, à intubação, em contraposição aos benefícios à natureza:

Que ironia!/ A Covid 19, ímpar e ciente,/ atacou os pulmões dos pacientes/ e todo o sistema respiratório/da economia impaciente// Mas socorreu a natureza,/ finalmente,/ que respira melhor/ sem poluentes. (MATOS, 2020, p. 45).

Examinando a discursividade da comoção pela economia, e o consequente desprezo pela vida humana, Ailton Krenak elabora um discurso, em defesa da vida e do planeta. Em sua elocução, na qual toma assento a antiga ironia indígena, Krenak questiona as ideias propaladas acerca da economia: vista como bem supremo e essencial à nossa existência. Assim, o pensador indígena desmascara a falácia da velha cantilena economicista, que lhe parece imaginária ou ficcional, enquanto nos dá uma apreciável e benfazeja sugestão. Hábito de indígenas...

Pode ser uma ficção afirmar que se a economia não estiver funcionando plenamente nós morremos. Nós poderíamos colocar todos os dirigentes do Banco Central em um cofre gigante e deixá-los vivendo lá, com a economia deles. Ninguém come dinheiro [...] Talvez a pista mais recente sobre isso seja aquela história dos bilionários que estão construindo uma plataforma fora da Terra para irem viver, sei lá, em Marte. A gente deveria dizer: “Vão logo, esqueçam a gente aqui. Deveríamos dar um passe livre para eles [...] Podem deixar o endereço que depois a gente manda suprimentos”.xiv

O primeiro poema da coletânea, “Especulações em torno da Covid-19”, um dos mais longos da antologia, é um verdadeiro exercício de inquirição acerca do vírus e da natureza humana. Lançando mão dos versos castroalvianos, o poeta se auto perscruta e inquieta o leitor com suas divagações indagativas que aludem ao desnorteio humano com a chegada abrupta da pandemia. Ela traria em si, ocultada, algum propósito divino? Unificaria as humanidades?

Sem o acento encrespado e sacrílego de Castro Alves, Osman Matos, num rodopio poético, apresenta o Deus invisível, surdo e silente, ante a abjeta mercancia humana, representado por Castro Alves, num Deus atencioso e benevolente às rogativas humanas. Um conforto poético:

Mas que coisa, um vírus,/que pegou carona/ na anatomia.// Algo unificante?/ [...] Onde estás ó Deus/ que não nos respondes?/ Qual a sua tática?// É ter fé no homem?/ Respondestes, sim,/ às Vozes D'África [...]. Por que vive o vírus?/ Quem o força a isso,/carniceiro atroz? (MATOS, 2020, p. 37-44).

Rico em sugestões temáticas, o poema inicial de Osman Matos não se perde em indagações abstratas acerca da criatura humana. Situa-a, no aqui e agora, sem nenhum traço de miopia, na sua poetização de nossa vivência social e de nossas pulsões. Através da agudeza desse olhar, o poeta sugere que enfrentamos duas pandemias, igualmente difusas, alastradas e ainda em célere expansão: a da Covid-19 e a do ódio, ambas letais:

Por que mente o homem?/ Tantas fakes News/ que são um afronte?/ Por que é que somos/ bem pior que o vírus, /propagando o ódio?// Mas que ódio, o homem./ Como pode, o vírus/ ter um aliado? [...] Ou foi o demônio/ escondendo o jogo,/ e o destino, a fonte?// Vírus, homem, vírus. [...] Vírus, homem, vírus./ Afinal, quem somos?/ Pra que tantos lucros? [...] Homem, vírus, homem./ Afinal, quem somos?/ Pra que tantos muros? (MATOS, 2020, p. 37-44).

Efetivamente, o ódio não nos é propriamente desconhecido como a Covid-19. Desde a presença europeia, o ódio de um eu é dirigido aos que lhe parece diferentes de si, como se verifica numa das epístolas, do Pe. Manoel da Nóbrega, na qual ele ressalta que o ódio dos cristãos, às nossas gentes, é a “raiz infernal de todos os pecados brasileiros”:

Não há paz, mas tudo ódio, murmurações e detrações, roubos e rapinas enganos e mentiras [...] E estes pecados têm sua raiz e princípio no ódio geral que os Cristãos tem ao Gentio, e não somente lhe aborrecem os corpos, mas também as almas, D’este mesmo ódio que se têm ao Gentio, nasce não lhe chamarem senão cães, tratarem-nos como cães [...] e se morrem os enterram nos monturos, porque deles não pretendem mais que o trabalho.xv

Alguns intelectuais do Brasil, como o historiador gaúcho Leandro Karnal, versátil em ministrar palestras e cursos, divulgados pela internet, tem propagado que o ódio no Brasil é originário e legado da sociedade indígena, se contrapondo aos relatos europeus que, continuadamente, afirmam a indisposição e o temor dos nossos antepassados indígenas à ira, em acordo com as anotações do capuchinho francês Yves d’Evreux:

:

Observei muitas vezes, quando viam um Francês enraivecido, ficarem como que fora de si, mudarem de cor, e fugirem da vista dele dizendo uns aos outros ‘Ymari turuçu está muito zangado, está muito enfurecido’. Ché-assequeié seta. “Tenho medo dele”. Aconteceu encolerizarem-se muitas vezes duas ou três pessoas da nossa equipagem na aldeia, em que estavam. Vieram por isto os Principais ao Forte de S. Luiz queixarem-se e pedindo que lhes tirassem de lá esses Franceses, porque lhes faziam medo, e especialmente a seus filhos, o que conseguiram. Se as questões de palavras e as raivas são temíveis, muito mais ainda o são os insultos.xvi

Desgraçadamente, os tempos continuam de ódio, de enganos e de mentiras. Os novos meios comunicacionais se transformaram em máquinas do ódio, segundo atenta a repórter Patrícia Campos de Mello.xvii Ódio, pegajoso, nauseante e mortal, que se distende, com novo vigor, na Europa e nos países que se originaram de um passado sombrio como o nosso. A ascensão do ódio foi analisada, também recentemente, pela estudiosa alemã Carolin Emcke. Esta assinala que a novidade da odiosidade consiste na forma desavergonhada com a qual se expressa:

Mas algo mudou na Alemanha. Agora odeia-se de forma aberta e descarada. Às vezes com um sorriso no rosto e às vezes não, mas na maioria das vezes sem nenhum escrúpulo. As cartas de ameaças, que sempre existiram, hoje são assinadas com nome e endereço. Delírios violentos e manifestações de ódio expressos na internet se escondem cada vez menos atrás de um pseudônimo [...] Muito mais ameaçador é o clima de fanatismo. Tanto na Alemanha quanto em outros lugares.xviii

O decrépito culto à brancura, ao patriarcalismo e à classe social, que detém o mando e a riqueza, adquiridas por propinas, roubos e falcatruas, se renova com inusitado furor, atingindo mulheres, indígenas, negros e pobres em geral. Em nosso país, também temos perdido a respiração, para nos lembrarmos da frase – “não consigo respirar” – proferida por Javier Ambler (+2019), e por George Floyd, (+2020), ambos assassinados, em via pública, por policiais estadunidenses.

Nós também não temos conseguido respirar. Contudo caberia aos indígenas e à população negra a pior porção. Em relação aos indígenas, a pandemia é equivalente a um extermínio, sob um obsequioso e beneplácito silêncio dos administrantes nacionais. Garimpeiros invadem-lhes a terra, com o intuito criminoso de alastrar o vírus entre as aldeias. Fazendeiros queimam-lhes a casa, a flora e a fauna. O fogo do ódio é aceso. O belo Pantanal é tornado cinzas. Mas a chama da fogueira da resistência indígena, a céu aberto, não se faz esperar. Em 02 de junho, os Yanomami reagem com o Manifesto #Foragarimpoforacovid#, numa equação curiosa em que a invasão dolosa dos garimpeiros é equiparada à pandemia da Covid-19.

Nesse contexto, se amiúda a criminalidade bestial contra as nossas gentes negras. Aqui, mata-se nas ruas, nas invasões de lares, nos moderníssimos centros de consumo, como em shopping centers e supermercados, como ilustra o assassínio de João Alberto Silveira Freitas, 40 anos, espancado até a morte por um segurança e um policial militar. Aqui, os assassinatos são cometidos, principalmente, por policiais, por milicianos e por funcionários de segurança desses espaços comerciais. A insegurança é total.

O racismo, ou a bruteza endêmica, oriunda do narcisismo europeu, vai adquirindo, nesses tempos pandêmicos, a mesma ligeireza da Covid-19, alastrando-se, como artrópodes, nos grandes centros do mundo ocidental. Uma insânia, como tematizam os versos de Osman que a situam no campo da irracionalidade, como se lê em “Segregação”:

O nosso colete à prova de balas/ mais eficiente nessa pandemia, / foram as máscaras de pano e o distanciamento social./Que o racismo, afinal,/ retire sua máscara irracional/ e caia na real/ que todo mundo é importante, igual e essencial (MATOS, 2020, p. 69).

Febris, os versos de Osman Matos extrapolam o tempo atual instituído pelo vírus, nos levando a refletir sobre os males mais antigos, como o ódio, o racismo, as mentiras e a roubalheira que infectam nossa sociedade. Seguindo as pegadas de Osman Matos, recorremos também a Castro Alves e exortamos, em uníssono: “Colombo! fecha a porta dos teus mares!”xix

Por fim, renovamos nossa homenagem a Dráuzio Macedo, à Fátima Cartaxo, a Aluísio Costa Filho, à Cleonice dos Santos, em nome dos quais expressamos nossa solidariedade a todas e a todos que pereceram vítimas da Covid-19. Esperamos que estejam, saudáveis e felizes, no reino por nós desconhecido.

Wilma Martins de Mendonçaxx

Em dezembro de 2020, mês da segunda investida violenta da Covid-19.

___________________

i ANDRADE, Carlos Drummond de. A morte a cavalo. In: Carlos Drummond de Andrade: poesia e prosa; obra organizada pelo autor. 6. ed. Rev. e atualizada. Rio de Janeiro: Nova Aguillar, 1988, p. 757-758.

ii MATOS, Osman José de Oliveira. Poesia em plena pandemia. Amazon: Washington, 2020.

iii HOMERO. Ilíada: Canto I. Trad. Manuel Odorico Mendes. Prefácio e notas, verso a verso de Sálvio Nienkötter. Cotia: Ateliê Editorial; Campinas: Unicamp, 2008.

iv CHALHOUB, Sidney. Cidade febril: cortiços e epidemias na Corte Imperial. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2017, p. 71.

v ALENCAR, José de. Lucíola. São Paulo: Ática, 1994, p. 108-110.

vi COUTINHO, Afrânio (Org.). Machado de Assis: obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguillar, 1994, p. 204; 250, v. 1.

vii “. Idem, ibidem, p. 621.

viii Op. cit., p. 644.

ix “. Idem, ibidem, p. 653.

x Id. ibid., p. 894.

xi AZEVEDO, Aluísio. O cortiço. São Paulo: Círculo do Livro, 1991, p. 110.

xii KRENAK, Ailton. A vida não é útil. São Paulo: Companhia das Letras, 2020

xiii Ver a obra, A globalização e os jesuítas: origens, história e impactos, organizada por Maria Clara Bingemer, Inácio Neutzling e João Dowell, de 2007.

xiv KRENAK, Ailton. Op. cit. p. 12-15.

xv NOBREGA apud MENDONÇA, Wilma Martins de. Memórias de nós: o Brasil no redemoinho do capital. Prefácio de Ailton Krenak. 3. ed. São Paulo: Porto das Ideias, 2017, p. 154.

xvi D’EVREUX apud MENDONÇA, Op. cit. p. 76.

xvii MELLO, Patrícia Campos. A máquina do ódio: notas de uma repórter sobre fake News e violência digital. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.

xviii EMCKE, Carolin. Contra o ódio. Trad. Maurício Liesen. Belo Horizonte: Âyiné, 2020, p. 17-19.

xix ALVES, Castro. Poesias completas. Prefácio de Manuel Bandeira. Rio de Janeiro: Ediouro, 1986, p. 138.

xx Profa. Dra. de Literatura Brasileira, da Universidade Federal da Paraíba.