A HISTÓRIA DO HIDROAVIÃO - UMA ANÁLISE CRÍTICO-LITERÁRIA

A HISTÓRIA DO HIDROAVIÃO

UMA ANÁLISE CRÍTICO-LITERÁRIA

COSTA1, Irene Cristina dos Santos

RABELO2, Sebastião Augusto

1. RESUMO

Este artigo destina-se à realização de uma análise crítico-literária do texto “A HISTÓRIA DO HIDROAVIÃO”, do escritor e psiquiatra português António Lobo Antunes, que traz como principal marca, o saudosismo da África e o rio Tejo como pano de fundo para as reminiscências do personagem Artur, do tempo passado em sua infância e juventude, em sua terra natal. Pretende-se realizar uma análise dos aspectos literários de uma narrativa, linguísticos e talvez, históricos que forem possíveis flagrar no texto estudado.

Palavras-chaves: Leitura crítica, Literatura, Estrutura textual, Paralelismo.

2. INTRODUÇÃO

Ao se propor a realização de uma análise crítica de um texto qualquer, faz-se necessário observar as diferentes tipologias textuais dentro do gênero textual que se pretende analisar e as possíveis abordagens que o texto literário pode apresentar, seja no que tange à estrutura, à semiologia, ao momento histórico real, ou em uma reflexão psicológica dos fatos, o ambiente e/ou personagens, (ou ainda), seja em um estreitar com a biografia do próprio autor.

No caso do conto “A História do Hidroavião”, em que se narra sobre a vida miserável de refugiados angolanos, fugidos da guerra, cujas habitações encontram localizadas em uma favela próxima e sobre a lama no estuário do rio Tejo, ao pé dos fumos de uma Siderúrgica; cuja visão referência física era o rio Tejo e o bairro Alcochete, no lado oposto à sua margem, ao passo que (paralelamente), a referência psicológica é Luanda, Angola, em África.

No texto, o personagem principal e seu melhor (talvez único amigo) comparavam sua situação atual com a que levavam, no passado, em Angola e achavam-na melhor, pelo menos em termos de comida, habitação digna e profissão. Deve-se atentar que a “aventura” final é um suposto passeio de hidroavião (pilotado por Artur) para mostrar a cidade do Tejo, que ele tanto insistia em saber. Todavia, pela afirmação do indiano, não se sabe se, realmente, ele conseguiu a façanha ou se enganou ao cego insistente em saber como era Lisboa.

O Hidroavião se desenha como o elemento fantástico/misterioso a partir do qual, se constrói um final aberto, com a dúvida de que eles voaram com ele para Angola ou se aquele esqueleto de avião não havia sido removido dali para um ferro velho (ou coisa assim).

Ele é um meio de transporte híbrido, meio avião de pequeno porte, meio lancha que navega, possuindo partes dos dois móveis. É constituído de uma armação metálica coberta de lonas, com asas, calda e 2 hélices, na parte avião e dois barquinhos e leme na parte lancha. Decola e pousa na superfície da água.

Também, simbolicamente, pode assumir a personificação da liberdade, da possibilidade do escapismo (da fuga) da realidade e alcançar o idealizado (o desejado retorno à Luanda do passado, dos 47 anos de motorista de camião, dos tempos de criança à casa materna).

Conforme se pode notar, tem um significado importante neste conto, observável pelo seu título, que, apesar de possuir personagens, é justamente o hidroavião que se destaca nele, isto é, a história não é de Artur, não é do cego, não é do indiano, antes, é “A História do Hidroavião”, a qual se propõe analisar neste trabalho.

3. CONTEXTO HISTÓRICO

Em princípio, ao se ater na leitura do conto “A História do Hidroavião”, de António Lobo Antunes e, por conseguinte, tomando o recorte histórico que se observa pelos subsídios que os detalhes do texto oferecem, é possível identificar a luta armada de libertação de Angola, que teve seu marco inicial em 4 de fevereiro de 1961. Observa-se, nesse ínterim. Angola, Moçambique e Guiné-Bissau como os cenários da guerra colonial na África, entre 1961 e 1974.

Em se tratando de Angola, somente em 11 de novembro de 1975 foi proclamada sua independência, pelo MPLA em Luanda, e pela FNLA e UNITA, em conjunto no Haumbo. Porém, as forças armadas portuguesas que ainda permaneceram no território algum tempo. Mesmo com a independência, Angola ainda não havia pacificado seu território. Iniciaram-se dois processos no País que se condicionaram mutuamente:

• Foi a adoção como modelo político e econômico pelo MPLA, do marxismo-leninismo dos países deste bloco socialista;

• Foi a guerra civil angolana entre os três movimentos (MPLA, FNLA e UNITA), pois esses dois últimos não aceitavam a derrota militar e a exclusão do sistema político do primeiro.

Estas guerras internas duraram até 2002 e terminou com a morte, em combate, do líder histórico da UNITA, Jonas Savimbi. Custou milhares de mortos e feridos e destruições de vulto em aldeias, cidades e infraestruturas, segundo PAIVA (2019, p. 8).

Em se tratando do autor António Lobo Antunes (natural de Lisboa, Portugal, que nasceu em 1942), estudou na Faculdade de Medicina de Lisboa e especializou-se em Psiquiatria, exercendo a profissão de médico psiquiatra até, em 1970, após ter sido mobilizado para o serviço militar, embarcou para Angola no ano seguinte, onde permaneceu até 1973, onde, certamente, reuniu as vivências e todo o aporte de experiências, de conhecimentos, emoções e impressões que embasaram fazer literário.

Assim, em 1979 publicou “Memória de Elefante” e “Os Cus de Judas”; em 1980, “Conhecimento do Inferno”. Tornando-se, imediatamente, em um dos autores contemporâneos mais lidos e discutidos no âmbito nacional e internacional.

Ao longo dos anos, seu trabalho literário tem sido objeto dos mais diversos estudos e o autor, por sua vez, tem conquistado importantes prémios, nacionais e internacionais, dentre os quais, o Prémio Europeu de Literatura (em 2001), o Prémio Ovidio (em 2003), o Prémio Jerusalém (em 2005), o Prémio Camões (em 2007) e o Prémio Juan Rulfo (em 2008). Sua obra encontra-se traduzida em inúmeros países e recentemente foi anunciada a sua edição na coleção Pléiade.

No que se refere ao conto “A História do Hidroavião”, ela, notoriamente foge à convencionalidade de um texto contemporâneo, para jovens e adultos, utilizando-se de estruturas paratextuais ao aludir expressões que seriam próprias de uma literatura infantil e, em seguida, surpreende o leitor com a temática desenvolvida, que traça um perfil psicológico, dos sentimentos e emoções daqueles que, de forma abrupta e involuntária, se veem obrigados a uma vida de pobreza, miséria, nostalgia, sujidade e total escassez ali naquele lugar, as guerras na África influenciaram bastante essa problemática.

No conto, observa-se o espaço a partir do qual se refere ao presente em face do passado. Nota-se, também, a centralidade da capital na narrativa em num plano físico, já que o protagonista (Artur) - um homem que tinha recém-chegado de África (há umas três semanas, aproximadamente), após quarenta e sete anos, “... sem mais roupa que a do corpo e sem mais bagagem que um baralho de cartas...” (Antunes, 1998, p. 2), constantemente em suas evocações interiores e íntimas. Voltava à Luanda, à Angola de sua memória.

A imagem de Lisboa apresentada pelo narrador de uma cidade infeliz, feia, tétrica, suja e nada hospitaleira, este lado da capital portuguesa, que geralmente não se mostra, uma favela, onde se sobressaem barracas, caldos, cachorros vadios sempre à cata de sobras e os pântanos do Tejo, que recebe os dejetos da Siderúrgica. Pode-se dizer que estes aspectos se refletem das seguintes formas:

• No agir nostálgico de Artur, que prefere escapar da realidade cruciante, alcançando e tramitando entre Malanje e Luanda de sua saudosa Angola, em África, numa idealização arraigada no passado de seus 47 anos de motorista para os holandeses do diamante, mais ainda, de sua infância livre e feliz junto de sua mãe, nos prados de sua terra;

• Na constatação verbal e desiludida do indiano que só enxerga infelicidade ao espraiar os olhos pela paisagem ao redor,

• E, porque não dizer, pelos olhos cegos do personagem que, por não conseguir ver a paisagem real, nutria por ela a curiosidade e o desejo do oculto pela escuridão da cegueira.

Além disso, apresenta as reflexões das vivências do momento histórico e social em que Lobo Antunes, o médico que esteve no Ultramar, borbulhando intensamente; serviu na guerra e as imagens (únicas) capitadas por ele e, até as marcas repetitivas de oralidade do autor, onde Lobo Antunes está presente de corpo e alma, ou de estilo e universo se quiser, dentro de seu conto.

4. CONTO E SUAS CARACTERÍSTICAS

4.1. O TÍTULO:

Pela análise do título, “A História do Hidroavião”, atentando-se ao significado polissêmico da palavra “história”:

• História: ciência que estuda eventos passados com referência a um povo, país, período ou indivíduo específico podemos afirmar que há nele um jogo significativo entre tempo e espaço;

• História: texto narrativo sob forma de legenda real ou ficcional, com uma estrutura e características próprias com finalidade de entreter, educar, transmitir valores. Tomando a polissemia desta palavra, percebe-se duas possibilidades na leitura do título.

Esse dualismo reforça uma ideia de paralelismo no texto Assim, se por um lado a história do hidroavião voltar-se para o aspecto real de um aeroplano que originalmente deveria decolar e pousar ("amarar" ou "amerissar") sobre a superfície da água, é descrito no texto sob condições precárias de existência e, segundo o indiano, sem qualquer condição de alçar voo, quanto mais voar:

“— Esse hidroavião não vale nada, coitado.

E realmente não parecia valer nada: em três semanas que o homem ali estava, sentado diante de casa com o baralho de cartas, o hidroavião quietinho, sem que um farrapo de lona se mexesse ao vento, sem que o leme da cauda desse sinal de abano, sem que qualquer luz se acendesse na carlinga. Resumindo: sem nenhuma vontade de voar. Um trambolho, decidiu o homem, uma coisa inútil, uma gaivota morta,” (ANTUNES, 1994, p.4).

Por outro, há toda uma descrição fantástica da ação dos dois personagens (Artur e o cego) decolando nele, sobrevoando os céus de Alcochete, Lisboa, ou Paris, alcançando de forma fantástica os ares de Malanje, de Luanda, de Lisboa:

“...Mas há também quem afirme, pronto a jurar, que o hidroavião, com o homem e o cego lá dentro, correu um nadinha na água, subiu a pino, e partiu, sobre Lisboa, na direção de Luanda, na direção do mar. E acrescenta quem sabe que se via um braço, saído de uma janela, a mostrar monumentos e igrejas a uns óculos de mica, e uma pretinha de tanga, muito alegre, suspensa de um cordel, a dar-a-dar no para-brisas em acenos de adeus.” (ANTUNES, 1994, p.4-5).

Assim sendo, deve-se considerar, de início, a necessidade de se identificar de definir conto. Esta tipologia textual, em uma definição rápida e objetiva, caracteriza-se por ser uma narrativa curta, que em sua estrutura, apresenta, basicamente, os mesmos elementos de um romance (narrador, personagens, enredo, espaço e tempo).

4.2. DIFERENCIANDO CONTO DE ROMANCE

No entanto, o conto difere-se do romance pela sua concisão característica, pela linearidade e, também, pela unidade, a qual se apresenta sob três modos distintos:

4.2.1 UNIDADE DE AÇÃO: que se caracteriza pela existência de um só conflito caracterizado aqui pela atitude do personagem Artur em consequência do saudosismo que sente de sua terra, sua infância, sua vida em Angola, África, em ver e não ver a paisagem à sua frente (em relação ao personagem principal, Artur) e em não ver e desejar ver pelos olhos do outro (em relação ao personagem secundário, sequer destacado com um nome próprio (o cego).

4.2.2 UNIDADE DE TEMPO: o supracitado conflito acontece em um breve espaço de tempo cronológico, remonta das reminiscências dos então 47 anos em Angola do personagem principal enquanto, sentado à frente de sua casa/barraco, olha o rio Tejo sem vê-lo e se lembra da paisagem e da vida em seu país de origem, das coisas boas que tinha lá, enquanto o tempo real, físico demarca a passagem do dia para a noite e a promessa de que ao amanhecer, sobrevoariam Lisboa, para que o cego pudesse conhecer. Porém, anos depois, através do indiano (personagem secundário também sem nome próprio no texto), ainda não se sabe se realmente realizaram tal façanha ou não. Ou seja, flash e/ou recortes de tempos que amalgamam memória e reminiscências (tempo psicológico) à alguns marcos temporais cronológicos.

4.2.3 UNIDADE DE ESPAÇO: o conflito, desenvolvido em um curto espaço temporal, também é delimitado pelo espaço físico que, neste caso, se desenha e localiza no aglomerado humano formado pelos refugiados da guerra na África trazidos pelo Boeing de Angola e despejados ali, próximos da Siderúrgica, à margem do rio Tejo, o qual, neste lugar, é apenas um pequeno sinal cinzento e poluído de rio que se estende até Alcochete), e ainda, pela presença reduzida de personagens (Artur, o amigo cego e, de certa forma, o rio Tejo, que se fixa como um a elemento antagonista ao personagem principal (Artur).

A narrativa relaciona fatos e elementos da história, política e economia destas pessoas envolvidas na trama, onde António Lobo Antunes apresenta muito bem as suas memórias do tempo em que esteve na guerra colonial.

Assim, atentando ao que afirma Hans Robert Jauss (1994), em seu estudo “A Teoria da Literatura Como Provocação à Teoria Literária”, o contexto histórico como elemento inerente à estrutura do texto literário, assume sentido amplo (na construção da imagem de uma época, de um momento histórico e social, como no sentido restrito, no que concerne às experiências que envolvem o leitor neste mergulho literário.

Segundo Wolfgang Iser, o texto literário “possui uma estrutura de apelo”, essencial na compreensão da leitura que se faz do texto literário. Logo, atentando a esse aspecto, pode-se observar que nele, apresenta-se a típica expressão de contos de Literatura Infantil (contos de fadas), “Era uma vez um homem sentado diante de casa. a olhar para o rio.” Este início que se assemelha às expressões típicas de narrativas fantásticas, contos de fadas na marcação indefinida de tempo (era uma vez...) e de personagem (um homem), todavia a marcação de lugar não é indefinida, como se observa no trecho “a olhar para o rio”, o artigo definido revela que não é um rio qualquer, mas um rio específico, importante dentro da narrativa.

A seguir e opostamente a esta expressão de início de contos de fadas, o narrador, (alternando realidade e reminiscências, misturam-se dois espaços e tempos distintos, de/em Lisboa e Luanda, correspondentes, respectivamente, ao presente e ao passado do personagem principal, o que dá ao leitor, um choque de realidade ao descrever a residência do homem “sentado â frente de casa”, localizada em um espaço físico real (em Cabo Ruivo, ao pé dos fumos da Siderúrgica).

“...uma barraca de tábuas costuradas com arame e reforçadas de placas de cartão, com um pedaço de zinco a servir de telhado. Mas nessa parte da cidade, em Cabo Ruivo, ao pé dos fumos da Siderurgia, quem tinha chegado de África, como o homem, sem mais roupa que a do corpo e sem mais bagagem que um baralho de cartas, era dessa forma que se governava...” (ANTUNES, p.1)

4.3. O AMBIENTE (ESPAÇO):

O ambiente descrito contrasta drasticamente com a ideia inicial de um conto de fadas e demonstra um realismo/naturalismo, em um flash da miséria e abandono em que vivem os refugiados da guerra da África, alocados ali à margem do rio Tejo (Portugal), trazidas de Angola - “O Boeing de Angola desembarcava em Lisboa as pessoas fugidas à guerra”.

Assim, a imagem do homem sentado à frente de sua casa/barraco vai se construindo, como um angolano refugiado que olha para o Tejo, mas não o vê, porque seus olhos sentem a saudade de Angola, observa-se aqui o saudosismo de quem se encontra expatriado, exilado de seu país, talvez o mesmo sentimento de banzo que os negros d’África nutriam quando arrancados de sua terra pelo tráfico negreiro para alimento do sistema escravocrata, só que agora, era pela guerra.

O espaço descrito pelo narrador demonstra uma situação de flagrante miséria em que os indivíduos (que formavam “um acampamento de pobres”) coexistiam em sub condições de vida, sem habitação adequada, saneamento básico, sem assistência do governo seja angolano ou de Portugal.

“Barracas assim contavam-se para cima de três dúzias, umas mais perto outras mais longe da água, feitas com os desperdícios de uma obra (tijolos, pranchas, areia, ruínas de andaime) que não se completara sabe Deus porquê, deixando ferramentas oxidadas, buracos de cabouco e sacos de cimento, de que as pessoas se serviam para inventar moradias. Passeava-se por ali corno num acampamento de pobres, numa aldeia de miséria: (...)” (ANTUNES, p.1)

4.4. O TEMPO:

Ele se caracteriza, basicamente pelo tempo real, cronológico marcado pelas semanas, horas, (havia três semanas que o homem sentado à frente de sua casa chegara àquele lugar; o dia foi escurecendo e se acenderam e outros marcos temporais.

“se calculava que fosse Alcochete, a brilhar, à noite, lantejoulas de leque sevilhano.” (...) O homem morou quarenta e sete anos em África” (ANTUNES, 1994, p. 1)

[...]

“...à medida que pelas redondezas começava uma agitação de ralhos e de caldos em púcaros de folha...” (ANTUNES, 1994, p.2)

[...]

“demorava-se crepúsculo adentro até o hidroavião desaparecer nas luzinhas de Alcochete ou de Paris...” (ANTUNES, 1994, p.2)

Mas, ao mesmo tempo, concomitantemente, revela o tempo da memória, o tempo do passado feliz em sua terra, onde tinha sua família, tinha uma vida melhor e feliz junto aos seus, sem esse desterro e essa carência de tudo.

4.5. O FOCO NARRATIVO:

Como se sabe, o foco narrativo pode ser de 1ª ou de 3ª pessoa, dessa forma, definir o tipo de narrador que pode ser:

4.5.1. OMNISCIENTE (que narra não só o que vê, mas o que os personagens sentem intuem, desejam, etc.);

4.5.2. PERSONAGEM (que participa da narrativa e narra na 1ª pessoa do discurso, com o narrador sendo narrador e personagens);

4.5.3. OBSERVADOR (também chamado de narrador câmera ou narrador testemunha). Limita-se a contar uma história sem entrar no "cérebro" ou "coração" das personagens.

No caso de “A História do Hidroavião", nota-se um narrador omnisciente, que conhece a mente e o coração dos personagens, que transita entre o fluxo espaço/temporal fotografando com palavras (descrevendo) a realidade de todos que se encontram ali naquele lugar miserável, infeliz, sujo, abandonado, onde os refugiados da guerra em Angola, sobrevivem como podem e, ao mesmo tempo revelando todas as boas recordações e bons sentimentos do personagem Artur em relação à sua terra da infância, seu paraíso pessoal.

Em outras palavras, é um narrador que tudo sabe e que tudo vê, mergulhando no psiquismo e no emocional de seus personagens. Narrar seus sentimentos e pensamentos e emoções, suas reminiscências, seus estados de espírito, numa construção narrativa em 3ª pessoa, apresentando um discurso indireto na maior parte do conto, principalmente no que ser refere ao personagem Artur.

As poucas vezes em que dá voz aos personagens, é justamente no diálogo (quase monólogo) do cego insistindo repetidamente na pergunta: “__ Como é Lisboa?”, na curta resposta dada pelo indiano: “— Lisboa é esta infelicidade, amigo.”

O narrador conhece tudo sobre os personagens e sobre o enredo, sabe o que passa no íntimo das personagens, conhece as suas emoções e pensamentos (sabe e sente a saudade e o desejo de Artur pelo regresso à Angola, ele sofre a inquietude da escuridão nos olhos do cego, ele conhece experimenta a desilusão e a infelicidade do indiano que capita todo esse cenário de desesperança sem perspectiva alguma de mudança, como o peru em véspera de natal, conhece seu futuro predestinado.

4.6. CARACTERIZAÇÃO DOS PERSONAGENS:

O narrador faz uma descrição bastante impessoal dos indivíduos que ali conviviam, como se apenas servissem como pano de fundo à narrativa, observa-se isso na opção pelo verbo haver no singular (com significado de existir) ao se referir a algumas pessoas, a cidade e o rio.

4.6.1. NARRADOR:

O narrador (quem conta a história, sob a perspectiva de narrador onisciente, principalmente em relação ao personagem principal, Artur) caracteriza-se pela narrativa em terceira pessoa transitando, simultaneamente, ora entre a realidade daquele amontoado de gente desterrada de sua pátria e esquecida naquelas condições de subvida, ora no subconsciente das lembranças de um tempo feliz. Cita Alcochete (município de Lisboa, capital de Portugal) onde supostamente o autor imaginava que ia dar o rio Tejo descrito como “um pântano cinzento, horizontal até aos morros de Alcochete”.

E independentemente de qualquer lugar que fosse, não se comparava, aos olhos do personagem, com Luanda, capital de seu país. O narrador conhece e nos faz conhecer por sua narrativa, os sentimentos de saudosismo de seu personagem, tal qual o sentimento observado em o poema “Canção do Exílio” (Minha terra tem primores / Que tais não encontro eu cá / Em cismar sozinho à noite / Mais prazer encontro eu lá /...”), de Gonçalves Dias (1843), ao mostrar a memória visual de seu lugar de origem enquanto olhava (sem ver) o rio Tejo a sua frente.

4.6.2. PROTAGONISTA:

O personagem Artur, que aparece como protagonista da trama deste texto vai paulatinamente sendo desenhado com adjetivos que esboçam sua nostalgia, suas limitações financeiras, sua quietude e introspecção e aparente dificuldade de se adaptar a esta nova realidade de exílio de sua terra natal provocado pela fuga da guerra em seu país. Homem de poucas palavras, de poucas frases que eram reservadas para quando se atinha a jogar baralho, conforme se observa no trecho a seguir:

“O homem morou quarenta e sete anos em África, a trabalhar de motorista de camião ao serviço dos holandeses dos diamantes, e custava-lhe habituar-se a uma terra de frio onde ninguém o conhecia, (...) calado como era.” (ANTUNES, p. 4).

Este marco espaço temporal aqui ,“quarenta e sete anos em África a trabalhar de motorista de camião dos holandeses do diamante”, apresenta aspectos históricos econômicos e sociais da realidade de exploração das riquezas do solo africano por companhias estrangeiras, multinacionais, quando cita os holandeses do diamante; ressalta aspectos climáticos das diferenças de um país /continente para outro, quando afirma que “custava-lhe habituar-se a uma terra de frio onde ninguém o conhecia”, além da solidão de alguém que se encontra afastado sem o desejo de estar, de sua terra natal, por forças que não são inerentes à sua vontade, apesar de se amontoarem no local, outros que se encontravam nas mesmas condições que ele.

4.6.3. PERSONAGENS SECUNDÁRIOS:

- Um cego, sem nome próprio, inquieto, insistente, curioso por saber como era Lisboa:

“um cego de óculos de mica. Muito direito, atento com os ouvidos que é como os cegos veem, a enrolar uma mortalha com deditos de croché, e mal os sons rareavam, sinal de que o homem hesitava a pensar, o cego perguntava logo, inquieto;” (ANTUNES, 1994, p. 2)

[...]

“o cego ao lado dele. também sem caldo, impassível nos óculos de mica, a puxar fósforos e a acender o cigarro na colher da mão.” (ANTUNES, 1994, p. 2)

[...]

“curioso, a chupar o cigarro, numa voz que se confundia com os grilos:” (ANTUNES, 1994, p. 2)

[...]

“O cego era criatura de adereços: possuía uma bengala de metal que se encolhia e aumentava como os metros articulados dos carpinteiros, e nas raras ocasiões em que se levantava do balde caminhava de queixo ao alto, varrendo os passos com aquela espécie de antena: ia do balde à arrecadação ali perto, em que escondia um cobertor, e como, por assim dizer, era sempre noite para ele, a bengala impedia-o de esbarrar em algerozes e de tombar em valados. Talvez fosse o único, dos que chegaram de África, capaz de caminhar na cidade, seguindo a haste mágica que devia ter um mapa das ruas no castão. Se quisesse ia de certeza de Cabo Ruivo à Amadora (é um exemplo) sem uma hesitação para amostra,” (ANTUNES, 1994, p. 3)

[...]

“De ideias fixas” (ANTUNES, 1994, p. 4)

- Um indiano, também sem nome próprio, desencantado e desiludido, cujo olhar se limitava a ver apenas a realidade nua e crua como se lhe apresentava ali, aquele cenário infeliz da capital de Portugal, sem qualquer perspectiva de algo melhor:

“Um indiano de sandálias tinha acendido um candeeiro de petróleo num contentor tombado, (...) à espera que os clientes recebessem o subsídio do Governo,”

[...]

“E o indiano entrincheirado no caixote, a designar com o desprezo do dedo as gaivotas, o hidroavião a desfazer-se e os pântanos do Tejo, o indiano das gasosas, desiludido com a clientela que lhe não pagava, (...) o indiano, inchado de desgosto, a arrastar-se no contentor como um peru de Natal:” (ANTUNES, 1994, p. 3)

4.7. ENREDO:

Caracteriza-se pela estrutura (as partes que o compõem) e sua natureza ficcional. Suas partes geralmente são:

4.7.1. EXPOSIÇÃO: (ou introdução ou apresentação) geralmente coincide com o começo da história, apresentando os fatos inicias (observa-se a descrição dos personagens, a construção do tempo e o espaço no texto). Ajudando o leitor a se situar no contexto da história.

4.7.2. COMPLICAÇÃO: (ou desenvolvimento) é a parte do enredo na qual se desenvolve o conflito, que no caso é representado pela própria situação de desterro, miséria e abandono em que aquelas pessoas se encontravam ali ao pé dos fumos da Siderúrgica, no pântano do Tejo, tão distantes de sua terra e sem perspectiva de vida e sem poder voltar.

4.7.3. CLÍMAX: é o momento culminante da história e pode ser visto no momento em que eles (Artur e o cego) planejam e hipoteticamente iniciam seu sobrevoo por entre Alcochete e Lisboa, mas que poderia ser entre Malanje e Luanda (ou vive versa);

4.7.4. DESFECHO (desenlace ou conclusão): é a solução dos conflitos, boa ou má, vale dizer configurando-se num final feliz ou não. Há muitos tipos de desfecho: surpreendente, feliz, trágico, cômico etc.

No caso do Texto de António Lobo Antunes, o desfecho é aberto, mesmo que o indiano (anos depois do desaparecimento de Artur e do cego) ainda repita a quem se dignar a ouvi-lo que o Hidroavião não arredou sequer um milímetro do lugar, há quem diga que o Hidroavião ganhou o céu e se via os dois sobrevoando Lisboa, tomando os rumos de Luanda, ganhando aquele espaço tão saudosamente registrado pela memória e os olhos de amor de Artur. Assim, o desfecho, seja o real e desiludido do indiano, ou o fantástico e maravilhoso do mergulho no espaço das reminiscências, fica a critério do leitor.

Esse dualismo na perspectiva final do conto, essa entrega de responsabilidade e interlocução com leitor na decisão do fim que melhor lhe agrada torna o texto mais emocionante e deixa na imaginação o gosto de quero mais, o desejo da descoberta.

4.8. A LINGUAGEM DO CONTO

Em relação à linguagem no conto A História do Hidroavião” observa-se que ela caracteriza-se pela construção simples, de um nível padrão, porém sem erudições, marcada pelo léxico da língua portuguesa lusitana com termos e/ou expressões tais, como: “alforrecas”, “quarta de chouriços”, “calhaus”, “contentor”, ”truca truca”, “a dar-a-dar”, “musseque”, “algerozes”, “imbondeiros”, Expressões estas, as quais, muitas delas têm significados diferentes do português falado no Brasil, sendo necessário recorrer ao dicionário. O texto, justamente por se tratar de um conto de um autor português, de Lisboa, é todo recheado de expressões do português lusitano,

Ainda sobre a linguagem, cabe destacar um aspecto interessante, que se estabelece pela escolha do aspecto verbal (do tempo e o modo) na maioria das formas verbais, predominando:

O pretérito imperfeito do modo indicativo referindo-se a um fato ocorrido no passado, mas que não foi completamente terminado, observável desde o início do conto com a expressão “Era uma vez um homem...” (ANTUNES, 1994, p. 1);

O imperfeito do subjuntivo utilizado na expressão de desejos, probabilidades e acontecimentos que estão condicionados por outros. Pode indicar uma ação presente, passada ou futura, como se observa em: “havia quem secasse camisas numa corda entre dois paus, quem soprasse o lume de uma panela de esmalte, agachado para um borralho de cinzas, havia cães arredios, medrosos de pedras,” (ANTUNES, 1994, p. 1);

Isto pode transferir ao texto a conotação do aspecto do tempo imperfeito que é o tempo não acabado, é um passado que continua enquanto se recapitula nas recordações, no mergulho das lembranças e evocações da infância. Assim sendo, esta linguagem vai sendo trabalhada e construída de tal forma, a expressar e marcar um paralelismo marcante no texto.

Outro aspecto da linguagem que é significativo é a volta sempre as mesmas palavras e expressões, e mesmo na construção frasal presente na pouca demarcação de diálogo (quase monólogo) do texto onde o cego, insistentemente, pergunta: “_Como é Lisboa, Artur?” (ANTUNES, 1994, p. 2, 3)

Então, cria-se uma espécie de paralelismo dentro do texto ao caracterizar algumas situações, alguns sentimentos, algumas sensações dos personagens dentro do contexto da história, e até mesmo, observa-se este paralelismo em flagrantes da construção e caracterização dos próprios personagens que, no desenrolar do texto, tramitam entre a realidade cruciante ali, naquele aglomerado de humanos desterrados e sem perspectiva de vida e suas evocações do passado.

5. CONCLUSÃO

Após a leitura deste conto, com intenção de estabelecer uma análise crítica, de reconhecer nele os elementos estruturais de um conto e tentar dialogar com o autor, através de sua construção textual, é possível tecer algumas considerações importantes.

Uma delas é constatar que o autor (escritor e psiquiatra) António Lobo Antunes, em seu texto, apesar de lisboeta, mostra Lisboa de uma forma não convencionalmente apresentada, focalizando um aspecto dela que os cartões postais ou a propaganda turística não mostraria (a favela de Lisboa), um lugar deprimente, feio, desolador, triste, sujo capitado pelos olhos do outro.

Este outro, representado pelos olhos do personagem principal, Artur, que prefere fugir dessa realidade concreta e atual para uma passada e idealizada, que guarda os encantos do princípio do prazer (sua infância feliz); pelos olhos desiludidos e conformados do indiano racionalmente acomodados à deplorável visão, e por isso permanece no lugar até o fim tentando racionalmente provar o óbvio a quem se dignasse a ouvi-lo e; pelos olhos cheios de desejos do cego, justamente por não poder ver a realidade, sendo, talvez, facilmente enganado pelo amigo Artur. Três visões distintas que, ajudam a formar os argumentos que subsidiam a formação de um paralelismo espaço temporal no texto.

Uma outra conclusão seria em relação ao Hidroavião que, como, por um lado é a carcaça velha, o esqueleto de um veículo imprestável, do outro, é o símbolo do elemento mágico capaz de libertar os personagens daquela realidade infeliz, seja através do escapismo pela ilusão (ou fantasia ou loucura ou morte) do voo sobre Lisboa, sobre Luanda, sobre o passado em seu lugar ideal.

Por fim, nota-se que apesar de ser um texto curto (como caracteriza-se um conto), de sua linearidade de espaço, tempo e ação, é riquíssimo em conteúdo histórico, social, linguístico, simbólico e se agiganta à medida que se vai tecendo a leitura.

É muito improvável conseguir esgotar todas as possibilidades de leitura e análise nele. Além do fato de que, seu desfecho em aberto, cria com o leitor a perspectiva da dúvida: o que será mesmo que aconteceu? E a oportunidade de atuar como coautor deste fim, imaginando-o como melhor aprouver.

E esta, que dá por encerrada esta análise, prefere crer que eles ganharam o céu e se coloca dentro do Hidroavião também, com destino à Luanda...

6. REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

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N.A.: Trabalho realizado como pré-requisito de avaliação para a disciplina Teoria da Literatura e Ensino, no curso de Especialização Lato Senso em Especialização em Literatura e Ensino, pela UFRN – Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Professor Orientador: Sebastião Augusto Rabelo.

Nina Costa
Enviado por Nina Costa em 29/08/2021
Reeditado em 06/12/2021
Código do texto: T7330735
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