SEM SENTIDO

SEM SENTIDO

Desde muito jovem sou atento às nuanças da linguagem, em especial, no que concerne às palavras. Sempre me causou espécie que o significado das palavras não pudesse ser fixado de forma exacta. Muito pelo contrario, que seu sentido cambiasse em função do contexto histórico, social, profissional ou mesmo do tom utilizado na pronúncia da palavra. Escrever poesia, de certo modo, é um exercício de achar conexões interessantes entre as ideias e a linguagem. É aquela velha história do "trouver-trovar", ou seja, trovar seria achar na linguagem uma combinação rara e curiosa que potencializa a ideia passada pela mensagem. Isso faria da poesia, em última análise, um modo de linguagem somente possível quando autor e leitor se colocam liricamente diante do texto. Não há poesia, por mais que o autor deseje, se o leitor ler o poema com o mesmo espírito com que lê uma reportagem jornalística ou uma exegese constitucional. Ler Camões com a entonação de quem lê uma lista de compras destrói qualquer sabor do texto e prejudica seu entendimento. Não há poesia sem a boa vontade do leitor. Nunca se pode duvidar da miopia ou da apatia do público em face da interpretação canhestra que um texto poético venha a receber, condenando-o ao abandono por puro preconceito estético ou por mera indiferença intelectual. Os riscos de fracasso para um poema são, também, problemas de leitura.

Em todo caso, eis a palavra sentido. Não deixa de ser curioso que a palavra que expressa o âmago da comunicação expresse tantas outras coisas, a saber:

sentido

sentido| adj.| n. m.| interj.| n. m. pl.

masc. sing. part. pass. de

sen·ti·do

(particípio de sentir)

adjetivo

1. Que se sente, nota ou percebe facilmente(ex.: movimento sentido; sismo sentido).= PERCEPTÍVEL, SENSÍVEL≠ IMPERCEPTÍVEL, INSENSÍVEL

2. Que mostra mágoa ou ofensa.= MAGOADO, MELINDRADO, OFENDIDO, RESSENTIDO

3. Que demonstra tristeza ou pesar.= CONTRISTADO, PESAROSO, TRISTE≠ ALEGRE, CONTENTE, FESTIVO

4. Que se ofende facilmente.= MELINDROSO, SENSÍVEL, SUSCETÍVEL≠ INSENSÍVEL, INSUSCETÍVEL

5. Que tem o caráter ou o tom de lamentação.= LAMENTOSO, PLANGENTE, QUÉRULO≠ ALEGRE, ANIMADO, FESTIVO, JUBILOSO, REGOZIJANTE

6. Que é dito ou feito com convicção ou sentimento(ex.: discurso sentido).= CONVICTO

7. Que está um pouco estragado ou apodrecido(ex.: fruta sentida).

substantivo masculino

8. Faculdade que têm o homem e os animais de receberas impressões dos objetos exteriores(ex.: sentido da audição; sentido da visão; sentido do olfato; sentido do paladar; sentido do tato).

9. Capacidade para sentir(ex.: tem um grande sentido de humor).= SENSO

10. Capacidade de pensar.= PENSAMENTO, RAZÃO, SENSO

11. Aquilo que é pensado(ex.: a ideia não lhe sai do sentido).= CABEÇA, ESPÍRITO, PENSAMENTO

12. Manifestação de vontade, depois de admitir como hipótese(ex.: estamos a trabalhar nesse sentido).= INTENÇÃO, INTENTO, INTUITO, MIRA, PENSAMENTO, PROPÓSITO

13. Relação ou ligação lógica ou racional(ex.: esta explicação não faz sentido; que sentido é que isso tem?).= COERÊNCIA, CONEXÃO, LÓGICA, LOGICIDADE, NEXO≠ ILOGICIDADE

14. Preocupação de olhar, de ouvir e deter concentração mental para compreender o que se passa ou para cuidar de algo.= ATENÇÃO, CUIDADO, DESVELO≠ DESLEIXO, DISPLICÊNCIA, NEGLIGÊNCIA

15. Memória.

16. Lado de uma coisa em relação ao espaço circundante ou para onde algo ou alguém se movimenta ou se vira(ex.: mudaram a disposição do sentido norte-sul para o sentido este-oeste).= DIREÇÃO, ORIENTAÇÃO, RUMO

17. Cada uma das duas direções opostas em que algo ou alguém se pode mover(ex.: rua de sentido único; sentido proibido; é nesta direção, mas no sentido oposto).

18. [Linguística] Cada um dos significados que tem ou toma uma palavra (ex.: sentido depreciativo; sentido figurado; sentido literal; uma palavra polissêmica tem vários sentidos).= ACEPÇÃO, SIGNIFICAÇÃO

19. Modo, aspecto, ponto de vista, maneira de agir, de considerar ou de distinguir(ex.: sentido de humor; sentido de orientação; sentido de responsabilidade).

interjeição

20. Expressão usada para pedir concentração ou cuidado em relação a algo.= ATENÇÃO, CUIDADO

21. [Militar] Voz de comando a exigir prontidão e atenção de militares ou afins.

"sentido", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2021, [consultado em 17-08-2022].

São tantos os sentidos a caber na palavra sentido, que a palavra se torna uma perigosa criadora de ambiguidades textuais. Não sei se o leitor concorda, mas um texto em que se valha de palavras polissêmicas precisa ser conduzido no sentido (olha a palavra aí...) de não confundir, sob pena de deixar o escrito sem sentido (olha de novo!)... A não ser que o autor deseje propositadamente ser confuso, polissêmico e delirante n'um jogo de palavras barroquista rebuscado. Isso, quando acontece, geralmente é em textos poéticos. O poeta joga com os sentidos e os sons se preocupar muito com a coerência do que está criando, ensejando digressões gratuitas ou raciocínios tortuosos em que os liames entre os argumentos dependem antes do capricho estilista que da compreensão das ideias. O jogo de palavras, por via de regra, é muito prazeroso para o autor e desafiante para o leitor sem que se garanta um final feliz de compreensão mútua. O texto segue para o público com senões que nem mil notas de rodapé seriam capazes de conciliar. É mais um, portanto, entre os riscos do poema, haja vista se falar demais sem ter nada a dizer. Não raro, o leitor se sente ludibriado por tomado a sério uma espécie de enigma engenhoso que pouco ou nada lhe adiantou.

Todo esse preâmbulo fora necessário para nos debruçarmos sobre a pedra de toque da poesia: a intenção de sentido. Trata-se d'aquilo que, a despeito dos recursos poéticos e quaisquer concessões artísticas, o poeta queria dizer. Sem sentido, portanto, é todo poema sem intenção; sem pretensão. O poema tem de querer dizer o que o poeta quer dizer. Não raro, falando do poema o poeta percebe que não está presente no texto certos aspectos que são essenciais para sua interpretação-apreciação. Em geral, afirmar que um poema não é para pensar, mas antes para sentir é desejar uma liberdade delirante para o texto poético, a saber, não fazer qualquer sentido. Se dizer qualquer coisa é poesia, tudo é poesia e nada é poesia. Assumir que o poema seja difícil de entender é diferente de aceitá-lo impossível de interpretar. A possibilidade de descobrir uma intenção de sentido que ligue ideais-imagens díspares pode dar ao leitor um grande prazer intelectual ou uma emoção artística, tornando mais complexa essa visão de que a poesia fale apenas à sensibilidade.

É possível que estejamos jogando frases soltas no tempo e somente a vivência de tragédias nos reconcilie com o texto poético, mas o exigir uma reposta do leitor continua, a despeito dos labirintos do autor, uma necessidade do poema ser, de facto, poesia. O poeta, tomado dos sentidos de suas frases, abre múltiplas leituras, mas também delimita a interpretação àquilo que está no texto, ainda que subentendido. Ler um poema e entender aquilo que ele não diz é reduzir o poeta a um apanhador de temas a partir dos quais o leitor reescreva outras versões, poéticas ou não, de quanto o escrito inicial suscitou. O leitor de poesia deve se colocar diante o poema com muito cuidado para não perder o que está contido n'ele na ânsia de projetar suas próprias questões e desencontrar às do poeta. Ter consciência de que a leitura pessoal é apenas mais uma leitura precária e provisória permite abrir novas possibilidades na compreensão do texto. Trata-se de uma questão deixada propositadamente em aberto. O poema é um texto a ser revisitado ao longo da vida, não um enigma a ser abandonado tão logo seja decifrado.