Música e literatura, artes que se fundem e transformam vidas.

Não há dúvidas de que a literatura é uma arte interligada a diversas outras expressões artísticas, entre elas, podemos mencionar a música como uma de suas mais importantes companheiras e parceiras de longas datas. O próprio conceito de gênero lírico, vindo da Grécia Antiga, nos remete a versos declamados ao som da lira (um harmônico instrumento musical). De lá pra cá, certamente surgiram novos gêneros e conceitos, mas a essência literária ainda se mantém presente nas diversificadas expressões musicais. Historicamente, vários autores já desenvolveram projetos musicais inserindo obras literárias consagradas.

“Ainda que eu falasse a língua do homens

E falasse a língua do anjos, sem amor eu nada seria”

(1 Coríntios 13:1 ).

[...]

“O amor é o fogo que arde sem se ver

É ferida que dói e não se sente

É um contentamento descontente

É dor que desatina sem doer”

(Luís Vaz de Camões - O Amor é Fogo).

Em Monte Castelo, canção da Legião Urbana, Renato Russo faz um recorte bíblico de Coríntios em conjunto com o 11º Soneto de Camões. Além de fazer referência à importância do amor na vida dos homens, o músico também faz uma homenagem a um tio que foi combatente na batalha de Monte Castelo durante a Segunda Guerra Mundial. Música e Literatura expressam, de alguma forma, sentimentos relacionados à própria vida. Além da Legião, diversas outras bandas e músicos (consagrados) já desenvolveram trabalhos relacionados a outras obras literárias. Por exemplo, Dom Quixote, canção dos Engenheiros do Hawaii - 1984, de David Bowie (impossível não observar a influência da obra de George Orwell) - Já os britânicos do Iron Maiden, trazem referências a uma das mais incríveis obras de ficção científica de todos os tempos (Duna, de Frank Patrick) por meio da música To Tame a Land. Seria impossível não mencionar, aqui, Bob Dylan e o seu prêmio Nobel de Literatura. Paulatinamente, vamos percebendo que os gêneros são híbridos, fundem-se e estimulam um amplo debate para muito além das academias.

Falaremos apenas de músicos brancos, europeus e clássicos literários? Certamente, não. A música negra, brasileira e periférica também expressa um papel significativo dentro deste contexto. Desde os tempos do Romantismo, cujo propósito era formar um Estado-nação para justificar uma alternativa liberal, a exemplo da genialidade literária de nomes como o realista Machado de Assis e do pré-modernista Lima Barreto, há mais de um século, pouquíssimos autores negros tiveram papel tão significativo na crítica social, e no combate ao racismo, como o grupo Racionais MCs. "Peraí"... Racionais é literatura? Sim tudo é literatura, não como a “moldamos” ou tentamos julgá-la, mas como a percebemos em nossas vidas. Em 2018 a Universidade de Campinas anunciava, em sua lista de leitura obrigatória de obras poéticas, “Sobrevivendo no Inferno” junto aos sonetos do consagradíssimo poeta português Luís Camões e da poesia marginal da carioca Ana Cristina Cesar. Como podemos observar, há espaço para todos e, na Arte, tudo é bem-vindo porque tudo se completa.

Defendo veemente a causa de que o ensino de Música deveria ser mais estimulado e incentivado nas escolas públicas. Seria uma grande oportunidade de explorar conceitos acerca de gêneros diversos, abranger e estimular conhecimento de obras literárias sob todos os aspectos, dos clássicos do Barroco aos ritmos cotidianos presentes nas periferias de nossas cidades. Uma oferta aos nossos estudantes de uma forma mais peculiar e particular. A Literatura é um “alimento para alma”, enriquece a cultura e o senso crítico, já o poder da música é transformador, estimula funções cognitivas, concentração, foco, percepção de sons, timbres e ritmos. Ambas, juntas, podem transformar a vida de muitos jovens.

Infelizmente, ainda há muito a se percorrer em ambas categorias. É importante perceber o risco de tudo isso, entender que não existem "espaços vazios" para arte. O lamentável reflexo de movimentos significativamente crescentes em todo o país, gerador de gêneros musicais com batidas atrativas, letras vulgares, apelativas, e até pornográficas, só se dá por causa da ausência de um senso crítico mais apurado, por parte dos envolvidos e pela abissal falta de bagagem cultural. Produto do descaso e do abandono de jovens da periferia aos que "faturam (alto) com a ignorância". Descaso promovido, principalmente, pelos que poderiam incentivar a arte, pelos que poderiam fazer a diferença, mas não a fazem, porque, a esses, essa não os importa.

Edilson Neres
Enviado por Edilson Neres em 23/11/2022
Reeditado em 18/03/2024
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