Roald Dahl, autor de A Fantástica Fábrica de Chocolates, a mais recente vítima dos censores.

O caso já está acima das raias do absurdo, e possui muitos tons de insanidade. Toda e qualquer palavra que ofende este e aquele floquinho-de-neve hipersensível, histérico, ridículo, tem de ser excluída do vocabulário usualmente empregado pelo comum das gentes, vide o auê que há décadas se faz com "denegrir", cuja etimilogia as pessoas que policiam a linguagem ignoram, e, mais recentemente, com "criado-mudo", substantivo que emprestamos a um móvel simpático que se põe à cabeceira da cama.

Numa era, e de gente desmiolada, o que se faz com a obra de Roald Dahl não surpreende quem tem os pinos nos seus lugares apropriados. Todavia, o caso incomoda, perturba, e, se não se se cuida da saúde mental, enlouquece-se.

Veio-me o caso, por vias acidentais, ao conhecimento, quando eu procurava, no Substack, por canais que tratam de literatura. Chamou-me a atenção o título de um artigo, "Debate: Obras clássicas com visões ultrapassadas devem ser editadas?", do canal "Notícias Literárias de Letras do Brasil", canal que trata do mercado editorial brasileiro, e traz o artigo à baila um debate acerca das alterações feitas, à revelia dos escritores, já mortos, nas obras deles, delas suprimindo-se trechos inteiros, adicionando-se outros, substituindo-se palavras consideradas ofensivas, desrespeitosas, discriminadoras, por outras, entendidas, pelos censores, apropriadas para os leitores atuais. Em tal matéria, informa-se que em nova edição dos livros Roald Dahl substituiu-se a palavra "gordo" por "grande", para adequar o vocabulário aos leitores de hoje. Perguntei-me, assim que li o que li se os destruidores da obra de Roald Dahl têm na conta de burros os leitores da obra dele e desde quando "grande" é, obrigatoriamente, sinônimo de "gordo". Se alguém me diz que é João gordo, imagino-o um homem gordo; mas se alguém me diz que é ele grande, imagino-o ou um homem de dois metros de altura, magricela, ou um homem robusto, irmão gêmeo de Lou Ferrigno, ou um homem gordo, volumoso, ou um gigante das dimensões de Golias. "Grande" não é, necessariamente, "gordo". E assim que me fiz a pergunta, que está nas linhas acima, escrevi na caixa de comentários ao artigo:

"Não há razões para se alterar o vocabulário de um livro para se adequar à sensibilidade dos leitores. Cabe ao autor, e apenas a ele, ainda em vida alterar seus livros, suprimir trechos, adicionar outros, e não seus herdeiros, e tampouco os editores. Imaginemos como ficaria a Odisséia se cada editor em tal obra empreender mudanças que entende necessárias para atender às demandas de intelectuais modernos, de gente que se arvora os intérpretes dos sentimentos e dos valores modernos! Além do mais, quem tem a última palavra para definir o que é desrespeitoso, preconceituoso, discriminador?! Li, há pouco, alguns textos de Henry James a respeito de seus próprios livros, e das mudanças que ele neles executou. Neste caso, sendo Henry James o criador de sua obra cabe a ele, e a mais ninguém, dar-lhe o tratamento que ele entende correto. Uma adaptação de um romance clássico (por exemplo: Guerra e Paz), para o público jovem, ou infantil, entende-se, terá seu tamanho reduzido, o texto reescrito para se adequar ao público ao qual será dirigido, é justificada, desde que se respeite a essência da obra. Mas alterar a obra, em uma nova edição, para o público adulto, dela excluindo-se este e aquele vocábulo, este e aquele trecho, é injustificado. Se se pode alterar o vocabulário, e trechos, ao bel prazer (e sem se consultar o autor) de quem a tal trabalho se dedica, então é o livro obra do autor original?! Se se justifica, para atender à sensibilidade dos leitores de hoje (ou seria melhor dizer às demandas de militantes ideológicos?), alterar de um livro clássico o vocabulário, quem poderá ir contra alterações de todo um livro, alterações que fazem de um livro outro, e dizer que é o livro outro?"

Foram estas as palavras que o artigo inspirou-me. Minutos depois, assisti ao vídeo "Inaceitável Censura a Roald Dahl", de Rodrigo Gurgel, professor de literatura, escritor e crítico literário, vídeo no qual, o título já declara, ele trata do tema envolvendo o escritor americano. E as palavras dele, distintas das minhas, as que escrevi para o site que mencionei acima, coincidem com elas, têm com elas idêntico espírito. E há poucos minutos, li, de Heather Heying, publicado na newsletter "Natural Selections", o artigo "The Age of Censorschip", no qual a autora trata, expandido o tema, do imbróglio que envolve Roald Dahl, à revelia dele, e contrariando-lhe o espiríto. E do fundo de minha alma desejo que a alma-penada de Roald Dahl puxe pelas pernas, toda noite, aqueles sujeitos que estão a adulterar-lhe as obras, desfigurando-as, destruindo-as.

Outras vítimas dos censores, pessoas, estes, abnegadas, que vivem de aporrinhar, com suas baboseiras identitárias, politicamente corretas, todo filho-de-Deus, são Monteiro Lobato, o nosso amado pai da Emília, e Tolkien, e Rowling, e Jordan Peterson, e mais uma infinidade de gente. E dias destes li, para meu espanto - e quem não soube da coisa irá espantar-se com as palavras que irá ler nas próximas linhas -, que serviços de inteligência, e os ingredientes da inteligência de quem tal serviço presta desconheço-os, estão a declarar que são extremistas de direita, fascistas, as pessoas que lêem as obras de Shakespeare, de Cervantes, dos gregos de há dois mil e quinhentos anos, e de outros escritores, filósofos, dramaturgos, poetas, romancistas, novelistas, brancos todos eles, e, vigilantes, a observar-lhes cuidadosamente, e atentamente, os passos. Não sei se tais informações procedem; todavia, ciente de que vivemos numa era orwelliana...

É tanta a presunção de tal gente (a que está a reescrever os livros de escritores mortos) insana, intolerante, inculta, insensata, que não encontro os adjetivos que melhor as qualificam. Chegaram a ponto de afirmar, com outras palavras, que Tolkien não pôs na sua mais famosa obra, O Senhor dos Anéis, as idéias corretas, e que, portanto, eles, os tipos pernósticos e estúpidos, que estão a estudar-lhe novas adaptações para a película, irão reescrevê-la, e com as idéias corretas, as idéias certas, que Tolkien negligengiou.

O nosso querido Monteiro Lobato, o pai de personagens icônicos da literatura e da cultura popular brasileiras, também sofre imensamente, sufocado pelo garrote que lhe puseram ao pescoço pessoas descerebradas, que desejam melhorar-lhe, dizem, a obra. E faz-lhe companhia na via-crucis Machado de Assis.

No seu artigo, Heather Heying informa que, reescrevendo os livros de Roald Dahl, os diligentes moralistas, paladinos dos bons costumes, substituíram "branco" (referindo-se aos humanos) por "pálido" e "frágil", e "bedouin tribesman" (conservo o original, em inglês), para não ferir suscetibilidades, por "local person".

Vai a coisa de mal a pior, e se se seguir a coisa, sem obstáculo, na toada em que vai, na próxima edição de Dom Quixote veremos com silhuetas irreconhecíveis o Cavaleiro da Triste Figura e o seu braço-direito, Sancho Pança, e a Dulcinéia del Toboso. E qual tratamento os censores concederão ao Rocinante?! Estou a imaginar o que eles irão fazer com O Último dos Moicanos, e com O Guarani, e com Robinson Crusoé, e com O Livro de Jângal; e com as fábulas de Esopo e as de La Fontaine; e com os contos dos irmãos Grimm, e os de Perrault; e com os livros de Kafka, e os de Proust, e os de Thomas Mann; e com o Sherlock Holmes, e o doutor Watson, e com o Mister Hyde, e o doutor Jekyll, e com o Hercule Poirot, e com o Mogli, e com o Quasímodo, e a Esmeralda, e com o doutor Franskentein, e a sua criatura, e com o Drácula; e com os robôs do Asimov, e os andróides de Phillip Dick; e com as obras de Aretino. Que inferno na Terra tal gente está a criar!

Ilustre Desconhecido
Enviado por Ilustre Desconhecido em 27/02/2023
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