Os personagens da literatura clássica.

Sem delongas, e em poucas, quase nenhumas, palavras, digo: conta Miguel de Cervantes Saavedra, na sua mais famosa obra, Dom Quixote de La Mancha, uma história das mais bestas, mas o fez com tanta graça que o universo conquistou e fez de seu herói uma personagem universalmente conhecida e admirada: um velho maluco e um gordinho cretino perambulam, erráticos, pelas terras da Mancha, e fazem tantas besteiras, infinitas asneiras, inúmeros disparates, e são tantas e tantos que não cabem no gibi, que levam no lombo, vezes sem conta, pancadas sem fim, que lhes administram sem dó os tipos mais abestalhados, de que se têm notícias, que vagueiam por aquelas terras das quais só se fala porque Cervantes teimou em contar a história daqueles dois aos quais respeitosamente aludi no início deste texto, Dom Quixote e Sancho Pança. Ah! Esquecia-me: outro personagem da obra é um portento de força cavalar: Rocinante, besta irracional da estirpe da Babieca, a bela e vigorosa montaria do Charlton Heston.

E quem é o personagem de Crime e Castigo, do genial Dostoiévki?! Um toleirão de marca-maior, o tal de Ródion Romanovitch Raskolnikov (não sei porque cargas-d'água, até há uns meses, antes de eu me pôr a ler tal livro segunda vez, eu acreditava que era o nome dele Rasputin - não sei por onde me entrou este nome na cachola). O sujeito é tão sem-noção, tão despirulitado, que, certa feita, ao conhecer as peripécias e as façanhas do Napoleão, o Bonaparte (se o primeiro, se o segundo, se o terceiro, se o quarto, se o quinto, e etecétera, e tal, não sei), soube que ele, porque fez o que fez, isto é, matou um batalhão de gente, é um herói universal, resolveu matar uma velhinha. Coitada da velhinha! Ródion deu-lhe uma cacetada daquelas, mandando-a desta para a melhor. E ferrou-se o senhor Raskolnikov! Besta-quadrada! Acreditava que iriam tê-lo por herói só porque ele matou uma velhinha - melhor, duas (e a segunda, um efeito colateral, porque estava, na hora errada, no lugar errado, dele tomou uma cacetada daquelas, e foi-se para o reino de além-túmulo).

Aqui estãos dois exemplos, dentro os melhores que eu poderia citar, dos tipos de personagens que os gênios da literatura tiram do bestunto. Cá entre nós: Os escritores têm cada idéia de jerico! E os dois aqui mencionados, o espanhol e o russo, estão na conta dos gênios!

Que o leitor não pense que estou, despeitado, desdenhoso, estupidamente iconoclasta, a desrespeitar o Cervantes e o Dostoievski, e, por extensão, os outros escritores clássicos, e os personagens que eles criaram. Longe disso. Muito longe disso. Muitíssimo longe. Muitíssimo longíssimo dissíssimo. Respeito-os imensamente. A admiração que tenho por eles não encontra limites. Sei que eles, falando de seres humanos, criaram tipos humanos, e os tipos humanos que eles criaram, imperfeitos porque humanos, falhos em sua condição humana, não são modelos de perfeição; são tipos, pode-se dizer, comuns, encontradiços em toda esquina, daí serem universais, modelos, direi, de perfeição literária e modelos porque têm imperfeições, que não são poucas.

Quem não conhece um velho doido-de-pedra a fazer das suas (e as das suas são dele)?! Quem não conhece, ou não sabe da existência, de tipos que se igualam ao Raskolnikov?! Para a sorte de muita gente, estes são mais raros do que aqueles. Vai que me aparece à frente da bela estampa um Rasputin... quero dizer, um Ródion Romanovitch Raskolnikov! Deus me livre! E eu não terei um Fiódor Mikhailovitch Dostoievski para contar ao mundo a minha história!

Ilustre Desconhecido
Enviado por Ilustre Desconhecido em 24/09/2023
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