As palavras-xodó.

Todo escritor tem as suas palavras de estimação, aquelas às quais recorre em momentos de apuro, em não raros casos emprestando-lhes significados que elas não receberam no momento cada qual da sua concepção, ou, simplesmente, porque por elas tem afeição, cuja origem desconhece - ou talvez a conheça mas não lhe sabe explicar a existência, quais sentimentos seus estão a elas vinculados. Pode ser da afeição razão sentimental relacionada com algum personagem ou real, ou fictício, que lhe faz evocar um episódio importante de sua vida, um momento de felicidade inexcedível, ou por outras razões quaisquer. Não sei se há estudos a respeito - a minha ignorância no tocante ao tema é patente, e não tenho porquê escondê-la de quem quer que seja, de mim tampouco - do amor, do apreço, da paixão, mesmo, incondicional, irracional, doentia, dos escritores por estas e aquelas palavras cada um deles com as de sua estima das quais acreditam serem os proprietários exclusivos - e enciumam-se ao vê-las em obras alheias, e em tais momentos sentem ganas de esganar os delas iníquos seviciadores.

Quais são as palavras pelas quais se apaixonaram o escritor Fulano, o escritor Beltrano e o escritor Cicrano, não sei. Sei as palavras pelas quais me apaixonei, as que são de minha estima, as minhas palavras-xodó - assim eu as apelidei, entendo, e que ninguêm ouse contradizer-me, apropriadamente -, aquelas palavras que sempre me vêm à mente quando estou a escrever, e ao escrever emitir certos pensamentos, descrever este ou aquele personagem, esta ou aquela cena, este ou aquele objeto, a narrar este ou aquele episódio, independentemente da substância moral do texto, da psicologia e do temperamento das personagens, do espírito que empresto ao assunto - e se eu não me disciplino, não ponho em ordem a minha cabeça, acabo, inadvertidamente, por usar, na descrição desta ou daquela cena, deste ou daquele personagem, na narração deste ou daquele episódio, uma palavra, das que me são xodó, ou um montaréu delas, ao texto emprestando um espírito que lhe não pertence. Há palavras adequadas para uma narrativa épica; outras, que se encaixam nas cômicas; e umas que ficam bem nas góticas; outras mais, nas românticas. Pode-se usar palavras que se saem bem em aventuras de terror em narrativas de romance água-com-açúcar? E em aventuras de suspense repletas de episódios tensos que põem em suspenso a respiração do leitor é de bom tom usar de palavras que se encaixam à perfeição em peripécias picarescas recheadas de reviravoltas rocambolescas comuns aos folhetins? Não. E não. E não é raro abordarem-me, atrevidas e desinibidas, dentre as minhas palavras-xodó, as que têm espírito joco-sério, e justo no momento em que estou a narrar uma aventura de terror, ou a quebrar a cabeça pensando num texto cujo tema é política brasileira - neste caso nem sempre as minhas palavras-xodó joco-sérias são inapropriadas, e nem as comuns às tramas de terror, afinal é a política brasileira trama, e da pior espécie, de aventura picaresca e romance gótico.

Estou a ponto de acreditar que são as palavras seres vivos, entidades cósmicas omnissapientes, que sabem, infalivelmente, quem e quando assediarem.

As palavras que me são inescapáveis, aquelas das quais não posso me esquivar, as quais infalivelmente procuram-me, ou se me põem à disposição, e são-me servis, nunca se me fazem de rogadas. São-me acolhedoras, e sempre as procuro, e mesmo que eu não as queira elas me vêm à mente. É tal fenômeno impressionante, inexplicável. Vivemos eu e elas na mesma sintonia, e apreciamos a mesma sinfonia. Há um elo a nos vincular no tecido do cosmos, conservando-nos unidos por toda a eternidade. Somos elas e eu as duas metades da maçã. Imagem desprovida de encanto poético, brega.

Estou a me enredar numa rede que me prende os pensamentos, enredando-me numa trama que, se eu não me cuidar, acabará por, dominando-me, obrigar-me a estender-me, indefinidamente, perdido num enredo sem pé nem cabeça, esquecido do tema que me inspirou este artigo, que estou a redigir sem ocupar-me de me pôr freios aos pensamentos.

Estou a falar de mim, e de mim apenas, e de minhas palavras-xodó.

Discreto a meu respeito, e a respeito de qualquer outra pessoa, embora em meus textos eu me revele, e o faço com a descrição que me identifica, e porque, mesmo que eu não o queira, exponho o que pretendo conservar comigo a guarda exclusiva, eu me dedico à redação deste texto aqui revelando uma das facetas - ou mais de uma - da minha personalidade.

Tenho, o que não é de surpreender quem quer que seja, as minhas palavras preferidas, as palavras de minha estima, as minhas palavras-xodó. E as minhas veleidades. E idiossincrasias. E uma das minhas palavras-xodó eu há pouco a evitei, e com muito esforço, esforço hercúleo, a empreender, dir-se-ia, uma tarefa ingente, que de mim exigiu força sobrehumana: "conquanto". Por alguma razão usei, esforçando-me para conservar firme a minha decisão, em vez de "conquanto", "embora". Estou a mentir?! Em alguma linha acima desta lê-se a palavra que usei no lugar da que por ela eu substitui. Confira, leitor, se digo certo, e, se certo, bem, ou se estou a brincar.

E outra das minhas palavras-xodó é "disparate", que aprendi a estimar durante a leitura de um dos livros que mais me agrada, Dom Quixote de La Mancha, do quixotesco Miguel de Cervantes Saavedra, herói de Lepanto. E há outras? Há. E não são poucas.

Ora, se eu sou leitor dedicado e escritor ocupado, de muito ler, e escrever demais, preciso, para a redação dos textos que minha parca inteligência concebe, de palavras, e muitas, e das muitas que uso, e de muitas delas abuso, há aquelas que, mais do que quaisquer outras, são do meu agrado, as minhas palavras-xodó, digo uma vez mais. E apresento-te, querido leitor, algumas delas: "incontinenti", que sempre encontro quando a pressa, acossando-me, obriga-me a passar sebo nas canelas; "balacobaco", que uso sempre que tenho em mente dizer que o que eu tenho a dizer ou o que chegou-me ao conhecimento é do balacobaco; "escalafobético", que é uma das palavras mais estranhas, esquisitas, de que tenho notícia; "paradigma", que me faz pensar em regras, em visões-de-mundo, em independência; "teratológico", que é das mais monstruosas que eu conheço, e ao nela pensar vêm-me à mente aquelas criaturas terribilíssimas das história de Homero e dos cantos mitológicos de inúmeros povos antediluvianos; "estapafúrdio", que é uma palavra que me cheira a absurdo, coisa do arco-da-velha; "pêta", que aprendi a gostar durante a leitura de O Sítio do Picapau Amarelo, do Monteiro Lobato, meu vizinho; "mínimo", que acho o máximo; "diáfano", que de mim nada esconde e que me traz aos sonhos as ninfas, as hamadriades, as naiades e outras entidades oníricas; "impassível", que é daquelas que jamais perdem a majestade; "transcendente", que escapa à matéria; "translúcido", que me revela belezas feminis que as beldades querem (e não querem) conservar ocultas de olhos indiscretos; "songomongo", que é coisa de bobalhões, patetas, pacóvios e pascácios; "tanglomanglo", que me cheira à feitiçaria e a caiporismo; "peripatético", que às vezes me faz pensar em filosofia, e da alta, aristotélica, às vez em patetice; "escatológico", que me parece coisa do fim do mundo; "dantesco", que me inspira medo ao inferno, ao inferno de Dante Alighieri - sempre que penso no inferno, vêm-me à mente o do autor da Divina Comédia, que nem um pingo de comédia tem, o inferno dantesco, e um vórtice assustadoramente tétrico de imagens infernais invadem-me a mente: as ilustrações de Gustave Doré, horripilantes, assustadoras, dantescas, para o Inferno, o primeiro dos três livros que compõem a obra máxima do mais mal-encarado dos florentinos; "inconstitucionalissimamente". Mentira. Desta não gosto, não.

Algumas das minhas palavras-xodó aqui eu não as listei, mas as usei na redação deste texto, que é do balcobaco, um tanto quanto estapafúrdio, e translúcido, pois nele revelo, não direi ninharias, mas singularidades não necessariamente irrelevantes da minha personalidade.

Aqui, então, para apreço do leitor, que me é querido, uma palha das minhas palavras-xodó. Delas gosto, estimo-as.

Falei das minhas palavras-xodó, das palavras que são do meu agrado, das que atendem ao meu gosto. E as pelas quais nenhuma simpatia eu tenho quais são? Ora, se delas não gosto...

Ilustre Desconhecido
Enviado por Ilustre Desconhecido em 01/11/2023
Código do texto: T7921758
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