OS NÃO-CONTOS DE "NATO" AZEVEDO

OS NÃO-CONTOS DE "NATO" AZEVEDO

Vá se preparando, leitor, por diversas razões você nunca leu e nunca lerá nada igual a “... Um novo dia há de chegar”. Nunca um escritor começou e terminou contos de maneira tão inusual, tão “surpreendente”, como diz "Nato" Azevedo já no subtítulo do livro. Este é, sobretudo, um livro que se propõe a “contrariar” todos os preceitos do que seja um conto, ou um conto “acadêmico”, por assim dizer. Um dos ensaios mais importantes sobre contos, “Pequeno Manual do Escritor”, do argentino Ricardo Piglia, preconiza que um conto sempre conta duas histórias, uma em primeiro plano, que se vai desenrolando e é quase o conto em si, outra história em segundo plano, e esta só terá desfecho no final. Ou seja: a arte de contar o conto se centra na habilidade em escondê-lo, de o ir mostrando por nesgas literárias que tanto escondem quanto revelam aos pouquinhos o que se revelará de todo ao final. O conto se conta escondendo-se. De forma geral, também a teoria literária já definiu bem o que é um conto “acadêmico”: você faz uma introdução que anuncia a história, os personagens, conquista a atenção do leitor e então desenvolve o que se anunciou, com o final arrematando tudo, de preferência com surpresas a quem lê.

Não é o caso das histórias de “... Um novo dia há de chegar”, que parecem se esmerar em subverter quaisquer preceitos. Então talvez o melhor seja chamar as 52 histórias aqui reunidas de relatos, ou, ainda melhor, de causos, como às vezes nomeia o próprio autor. Outra questão, não só referente a contos, mas à literatura de forma geral, é a questão sociológica inerente à prosa, em que ao final das leituras você tem uma cidade, um tempo, uma cultura, um país; e alguns personagens, sobretudo, em detalhes, um protagonista, um “herói”, que viverá as situações e será o condutor (narrador ou não em primeira pessoa) do enredo e das peripécias. Neste livro não se busque, ao menos de forma direta, uma “sociologia” ou a “construção” de personagens (principal qualidade do nosso Machado de Assis, um dos maiores contistas de todos os tempos).

Depois de subverter tantos preceitos universalmente aceitos como “fundamentos”, qual o interesse real que estes causos aqui despertam, ou de que forma estas subversões foram superadas nas narrativas? Pondere-se ainda uma terceira circunstância, para chegarmos ao estilo. Já se disse que Oscar Wilde, o autor irlandês de clássicos como “O retrato de Dorian Gray”, não diferenciava “escrever” de “falar”. Sua narração, portanto, constitui-se em “conversar” com o leitor, de forma simples, mas, como testemunha a História, encantadora. "Nato" Azevedo também “conversa” com o leitor. Não exatamente como um escritor, mas como um transeunte, alguém que encontramos na feira, na rua: aqui o autor usa, por assim dizer, o carisma e o “charme” do povo nas narrativas.

Esse povo é o brasileiro. Este narrador é o brasileiro. As ruas, as cidades, os cenários são brasileiros. Aos poucos, como num mosaico, vão “dando as caras”, como diria o próprio "Nato" , o jogo do bicho, a corrupção, a concupiscência, as infidelidades matrimoniais, os costumes de cidades de interior ou de metrópoles como Rio de Janeiro, etc.. Portanto, temos, sim, uma sociologia, ainda que de forma indireta, que só se revela não no início do livro, ou nos primeiros contos, mas no corpo total do volume, ou, como queria Ricardo Piglia, o que se esconde aqui é este painel geral, o Brasil, só ao final revelado. A mesma coisa quanto aos personagens: não são construídos de forma direta, suas características, suas idiossincrasias, e, de forma indireta, o que estes personagens vivem. Os personagens aqui vão se somando a cada história. Não só suas vivências (as histórias em si), mas a forma como acontecem essas vivências.

Esta soma (das centenas de personagens) é que constituem o grande personagem, e este personagem acaba sendo um mosaico: não é João, nem José, ou que nomes estapafúrdios tenham: é o Brasileiro: o nome do personagem único desse livro é Brasileiro. Da mesma forma, o autor. Não é "Nato" Azevedo. Não é um intelectual, um professor, um “acadêmico”. Aqui não é o conto que se esconde, não é a história, o desfecho: o que está por trás de tudo, e que no final se revela, é o autor. E quem narra é o brasileiro. A bossa, o senso de humor, o imprevisto, certas circunstâncias no mínimo imprevistas, só mesmo um brasileiro poderia contar. Com palavras de brasileiro. Com a sem-cerimônia brasileira. Com o jeitinho que só um brasileiro sabe ter. O narrador é mesmo o Brasileiro. Mas algo, em verdade, foge ao “popular”, se aproxima do “acadêmico”: o texto. Sempre bom, com tiradas brilhantes, comentários desconcertantes, gírias utilizadas de forma criativa e original. Este o interesse real que estas subversões despertam. Não é mesmo pouco. “... Um novo dia há de chegar” reúne causos que, afinal, ou ao final, são contos. O autor tem assinatura, é mesmo "Nato" Azevedo. O resto, como nos melhores relatos, depende mesmo é do leitor, da participação e perspicácia do leitor. Garanto que você nunca se deparou, mesmo, com narrativas como estas.

EDSON COELHO - escritor paraense

**************

OBS: confira também meus "comentários" a estas preci(o)sas observações, na seção crônicas, texto "ENFIM, UM ESCRITOR... DIFERENTE", ou no link anexo... https://www.recantodasletras.com.br/cronicas/8017352