JOSÉ SARAMAGO- VIDA E OBRA

 


     Só pude entender um pouco do que rolava na cabeça do José Saramago depois que comecei a trabalhar com Programação Neurolinguística. Até então tinha lido o Ensaio Sobre a Cegueira e o Evangelho Segundo Jesus Cristo sem entender muito do que tinha lido.

      O Ensaio Sobre a Cegueira é um conto sobre como nosso cérebro é conformado pelas nossas próprias visões interiores. É um discurso crítico e psicológico que nos faz lembrar tanto as teorias de Fritz Perls (Gestalt-Terapia) quanto a crença gnóstico-maniqueísta que vê o mundo sendo construído por um embate entre as trevas e a luz.

      É que num mundo onde todos são cegos, a luz não deixa de existir. Ela só não tem canais para se manifestar. Porque ela está num plano de existência negativa. Por isso a Bíblia diz que Deus constrói o mundo tirando a luz de dentro das trevas. Para que a luz possa se manifestar positivamente é preciso que existam canais próprios para isso. Mas no plano da existência humana, tudo concorre para a sua obstrução. Necessidades, desejos, vaidades, vontade de poder e a busca do prazer interditam a passagem da luz. Não somos cegos de nascença, mas de repente ficamos. E há épocas em que a cegueira se torna uma verdadeira epidemia.

      Assim, passamos a maior parte da nossa vida mergulhados em nossas visões interiores. A verdade de cada um é construída em cima dessas visões particulares e não sobre o que o mundo realmente é. Vivemos cegos a maior parte do tempo. Toda a miséria humana é consequência da nossa incapacidade de ver, ao mesmo tempo, as mesmas coisas. Por isso o mundo é um manicômio onde cada um vive de acordo com o que ele consegue ver. Ou não ver.

      Quando li pela primeira vez o Evangelho Segundo Jesus Cristo, pensei: “Ousado, mas pouco original.” Nikos Kazantzákis (A Última Tentação de Cristo) já havia humanizado Jesus o suficiente para que precisássemos de outro ser tão fragilizado pelas paixões humanas como aquele que Saramago estava nos apresentando. Depois, vi que não era nada disso. O Jesus de Saramago era a antítese da tese que a mídia religiosa tem defendido nesses dois últimos milênios.

      O Jesus de Saramago não é um ser sobrenatural que Deus manda à terra para se sacrificar pelos erros da humanidade. Aliás, para Saramago, a humanidade não tem pecado algum. Ela é o que é. Um processo em evolução, onde tudo é resultado, bom ou ruim, segundo a ótica de quem analisa. Nem Deus é uma Entidade para além do bem e do mal. Deus é uma consciência em construção. Ele também não sabe o que é bem e mal. Ele também está à procura de um conceito segundo o qual Ele próprio possa construir a sua sabedoria. 

     O Cristo de Saramago não se sacrifica pela humanidade, mas sim pela culpa de seu pai José. José poderia ter poupado os inocentes de serem assassinados por Herodes, mas preferiu fugir para salvar a vida do seu filho e assim deixou que os recém-nascidos de Belém fossem mortos. Muito humano. Jesus carregou essa culpa pela vida inteira. Sua decisão de tornar-se instrumento de Deus foi motivada por essa culpa.

      Para Saramago, o Deus da Bíblia não é uma entidade benevolente que manda o próprio filho para o sacrifício para salvar a humanidade perdida e infeliz. Ele, na verdade, é como um sujeito oportunista e espertalhão, que usa as pessoas para realizar os seus projetos pessoais. É um deus tribal, que só tem poder sobre um povo primitivo e ignorante, que toda a vida foi servo dos outros. Primeiro ele usa o desejo sexual de José para gerar Jesus. Depois usa o Diabo para criá-lo. Jesus foi criado pelo Diabo travestido de Pastor. Nesse sentido, Saramago pensa como os gnósticos. O Diabo é o inverso de Deus. É a dialética dos opostos agindo para dar sentido a uma história que não teria nenhuma consistência se Jesus fosse um ser celestial que desce à terra e suporta sofrimentos extremos, como ensina a doutrina cristã oficial, para salvar uma humanidade que nem sabe que está perdida, e que fica mais perdida ainda depois disso.

      Já no romance intitulado Caim, lançado em 2009, também considerado ofensivo à fé católica, Saramago questiona os critérios de Deus para suas escolhas. Deus é apontado como um ser vaidoso, vingativo e contraditório, que  premia o filho que lhe agrada e castiga aquele que não faz o que ele quer. Na verdade, o que Saramago propõe na sua história sobre a metáfora bíblica de Caim e Abel é a sua própria visão histórica do conflito entre o povo de Israel e os palestinos, expressa na narrativa dos israelenses, que segundo o que ele  pensava, escreveram a Bíblia para justificar suas pretensões políticas e econômicas sobre a terra Palestina, onde a grande maioria dos povos ali existentes tinham etnia e crenças diferentes. Caim, na verdade, é o símbolo do povo palestino e Abel simboliza o povo de Israel. Deus ama Abel e aceita suas oferendas (Abel é pastor de ovelhas- principal atividade econômica do povo de Israel), mas recusa as de Caim (feitas de produtos agrícolas, principal atividade econômica dos palestinos). E o conflito entre eles se estabelece e perdura até os dias de hoje.

       José Saramago foi taxado de marxista e ateu pelas autoridades religiosas portuguesas e por grande parte do povo português, cuja cultura ainda é, em grande parte, conformada pela teologia cristã-católica. Ele nunca negou isso. Sua simpatia pelo comunismo era confessa. Mas para ele (como ele mesmo disse em entrevista no programa do Jô Soares) esses conceitos eram apenas rótulos sem sentido, pois ateus não existem, já que o ateísmo pressupõe a negação da existência de Deus, e para se negar alguma coisa é preciso primeiro supor que essa coisa possa existir.  Quanto ao marxismo, isso era apenas uma formulação sem sentido para designar as forças que constroem uma sociedade. No fundo, para ele, tudo era hedonismo puro, ou seja, tudo que o homem faz tem o propósito de obter prazer ou evitar a dor. E é nesse sentido que tudo funciona.

      Saramago sempre foi um inconformista que não se quis se amoldar a padrões. Quer os padrões da religião, quer à moral social que ela incute na cabeça das pessoas. Essa inconformidade ele espelha em sua própria obra literária. Por isso ela não se amolda às regras gramaticais, que utiliza diversos sinais gráficos, como pontos, virgulas, travessões, colchetes, letras maiúsculas e minúsculas etc. para separar as ideias e conformá-las à lógica que deve presidir os nossos pensamentos. Saramago não usa esses recursos. Deixa as ideias escorrerem como as águas de um rio. Perene, contínua, sem intervalos, como são os nossos próprios pensamentos quando deixamos que eles corram livremente.

      Saramago criou um estilo que o notabilizou como escritor no mundo inteiro. Foi mais esse estilo, leve, solto, sarcástico e iconoclasta que fez dele o mais respeitado escritor da língua portuguesa em nossos tempos, conferindo-lhe a maior honraria literária mundial, que é o Prêmio Nobel em literatura.

     Saramago nasceu em 16 de novembro de 1922, na aldeia de Azinhaga, Portugal e morreu em 18 de junho de 2010, em Lazaronte, na Espanha.