1 - HISTÓRICO SOBRE A BOSSA NOVA

Ernani Maller

A Bossa Nova hoje é um estilo musical consagrado mundialmente, e seu estudo pode nos ajudar a entender um importante período de nossa história. Vale ressaltar que, as raízes deste movimento são bem antigas, e suas manifestações puderam ser identificadas ainda nas décadas de 1930 e 1940 com o aparecimento de cantores de estilo intimista como Lúcio Alves e Dick Farney1 Outro fator a ser destacado foi a criação do Sinatra-Farney Fan Club, sendo esse o primeiro fã clube do Brasil, seguido pela criação de vários outros fã clubes, o que eram estimulados pelos programas de Luiz Serrano, na rádio Globo e Paulo Santos, com o seu programa Hit-Parade, na Rádio Guanabara. O surgimento do Sinatra-Farney Fan Club, deu-se em um porão na Tijuca, no Rio de Janeiro, sendo criado pelas adolescentes: Joca, Didi, e Teresa Queirós, que utilizavam para decoração, capas de LPs, recorte de revistas Life e Cruzeiro, fotos e tudo que estivesse relacionado aos seus ídolos, Frank Sinatra e Dick Farney. Nesse local, jovens compositores, instrumentistas e cantores intelectualizados, amantes do jazz americano e da música erudita, como Johnny Alf,

João Donato, Paulo Moura, Doris Monteiro e outros passaram a se reunir para ouvirem discos com os mais recentes sucessos nacionais e internacionais esses trazidos

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1 - Farnésio Dutra (1921-1987)

principalmente pelas Lojas Marly, localizada no centro do Rio de Janeiro que servindo também como ponto de reunião, nas quais aconteciam discussões acirradas entre os adeptos das diversas tendências das inovações musicais.

A antecipação mais evidente dessa nova tendência ocorreu com a gravação da música “Copacabana”, por Dick Farney, sendo composição de Carlos Alberto Ferreira Braga2 e Carlos Alberto Ribeiro, com arranjos de Radamés Gnatalli, no ano de 1946. Tais momentos em que várias manifestações foram observadas, foram de suma importância para o surgimento do novo gênero musical, que reuniria o mais popular ritmo brasileiro, o samba, a descontração carioca e as sofisticadas harmonias do jazz americano.

Em relação a esses anos de maturação da Bossa Nova, Sérgio Cabral deu o seguinte depoimento.

A bossa Nova foi o clímax que já vem acentuando a muito tempo na música desde a década de trinta, que é uma coisa de modernização. Nesse esforço você pega aí uma música do Ari Barroso chamada “Inquietação” que é de 1933, aquela harmonia, não tinha antes, não existia antes se você pegar a letra de Noel Rosa, aquela letra não existia antes, tem harmonia de Custódio Mesquita da década de quarenta, que são de amanhã. No início da década de cinqüenta, Garoto, grande músico e grande compositor, a obra dele era uma coisa moderna. Primeiro que a influência da música americana sobre a música brasileira já era uma coisa antiqüíssima, desde a década de vinte. Você vai ver Pixinguinha escrevendo fox-trot, que era um gênero americano, e evidentemente a Bossa Nova também teve essa influência. ( CAMARGOS, 2005.)

Em 1958, a música “Chega de Saudade”, foi gravada por Eliseth Cardoso, no disco “Canção

do Amor Demais”, tendo a participação de João Gilberto ao violão, é a primeira vez que se ouve gravada em disco a “batida” da Bossa Nova, criada por ele. Esse disco foi todo dedicado as canções de Tom Jobim3 e Vinícius de Moraes4 sendo o primeiro gravado exclusivamente com músicas da Bossa Nova.

Ainda em 1958, João Gilberto também gravou “Chega de Saudade” em um 78 rpm. tendo do

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2 – Conhecido por João de Barro e também por Braguinha (1906-2006)

3 – Antônio Carlos Brasileiro de Almeida Jobim (1913-1980)

4 – Vinícius de Moraes (1913-1980), foi batizado como Vinitius, do latim.

outro lado “Brigas Nunca Mais”.

Não se deve confundir essa gravação com o primeiro disco solo de João, pois sua gravação primeira foi em 1952, com dois sambas-canções, “Quando Ela Sai” (Alberto Jesus e Roberto Penteado) e “Meia Luz” (Hiato de Almeida e João Luiz).

No ano de, 1959, ele lança pela gravadora Odeon, o LP, “Chega de Saudade” (Odeon, MOBF 3073), também contendo a música homônima ao disco. Esse LP é considerado o marco inicial do movimento Bossa Nova. Nele aparecem também os três artistas que seriam considerados por muitos os mais importantes dessa fase da música brasileira. O próprio João Gilberto como cantor e violonista, Tom Jobim como compositor, arranjador e pianista e ainda Vinícius de Moraes como letrista. Esse disco teria na contracapa as seguintes palavras de Tom Jobim: “João Gilberto é um baiano bossa nova de vinte e sete anos. Em pouquíssimo tempo influenciou toda uma geração de arranjadores, guitarristas, músicos e cantores”.

A música “Chega de Saudade”, que havia sido composta a mais de um ano, por Tom e Vinícius, foi retirada de uma pilha de outras músicas guardadas pelo próprio Tom, no momento em que João Gilberto lhe mostra a nova batida. Pois Tom vê as possibilidades da nova base rítmica. “... a batida simplificava o ritmo do samba e deixava muito espaço para as harmonias ultra modernas que ele próprio estava inventando” ( CASTRO, 1990, p.167).

Elizete Cardoso não foi considerada uma autêntica cantora de Bossa Nova, pois sempre utilizou os gestos e as eloqüências consideradas ultrapassadas e renegadas pelo movimento. Certamente por esse fato o LP de João é considerado o marco inaugural do movimento e não o de Elizete, embora em ambos se encontre a batida de violão de João Gilberto, as melodias e arranjos de Tom Jobim e as letras de Vinícius e Moraes. Mesmo sendo o seu disco o primeiro contendo exclusivamente músicas do novo gênero, a parte orquestral do mesmo também estava atrelada a antigos conceitos musicais.

Na gravação original de Elizete Cardoso, no LP Canções do amor de mais, de 1958, “Chega de saudade” tinha um tratamento orquestral ainda atado às concepções musicais dos anos 40, com violinos ao fundo. Além disso a música recebeu de Elizete uma interpretação dramática, despida da leveza da sensibilidade bossa-novista. (Naves, 2004, p. 15 )

Gerada no seio da classe média carioca, a Bossa Nova surge como reflexos de um contexto de mudança do país, ela vem definir novos rumos da estética musical brasileira, justamente em um momento em que o Rio de Janeiro vive um florescimento artístico como poucas vezes se viu na história da cultura nacional. Parece que tudo conspirava para que alguma grande mudança se processasse. Em termos musicais, havia naquele momento uma busca por algo novo, um certo esgotamento com os conceitos musicais estabelecidos. “Naquela gravação de “Chega de saudade” se concentravam, de maneira mais rigorosa os elementos renovadores essenciais que a música brasileira buscava no momento” (ARAÚJO, 2006, p.378 ).

Esse período entrou para história como os "Anos Dourados" por ter sido uma época de grande crescimento econômico, de otimismo e de autoconfiança. Na literatura o mineiro Guimarães Rosa, que foi diplomata e ministro do governo de Juscelino Kubitschek, lançou em 1956 seu único romance, Grande Sertão: Veredas, uma das maiores obras da literatura brasileira.

Nosso futebol o Brasil tornou-se campeão do mundo na Suécia, em 29 de junho de 1958. Apesar de terem ficado no banco de reservas até o terceiro jogo, Pelé e Garrincha encantam o mundo.

Surge a poesia concreta, esta com tanta afinidade com a Bossa Nova, pois uma assim como a outra repudiam os arroubos românticos e apresentam uma estética de concisão, objetividade e racionalidade. Promovem uma ruptura com o excesso ( NAVES, 2004, p.18-19).

No cinema, além do aparecimento do “Cinema novo” 5, o sucesso de “Orfeu da Conceição”, escrita por Vinícius de Moraes, sendo levada ao cinema pelo cineasta francês Marcel Camus, com o título de “Orfeu do Carnaval”, ganhando a Palma de Ouro e o Oscar de melhor filme estrangeiro de 1958. Surgiram filmes com uma preocupação social como “Rio Quarenta Graus” de Nelson Pereira dos Santos, quando pela primeira vez foi levado às telas a problemática do trabalho infantil. Também em “Rio Zona Norte”, no qual o cineasta discute a relação entre a favela e a cidade, com a história de um compositor do morro que tem suas composições roubadas, este filme protagonizado por Grande Otelo, com música de Zé Kéti, trouxe ao cinema nacional princípios do neo-realismo.

Em 22 de fevereiro de 1958, no Teatro de Arena, estreou a peça “Eles não usam black-tie”, escrita e dirigida por Gianfrancesco Guarnieri. Tendo como foco o proletariado, tendo levado ao teatro, o operário como protagonista. Pela primeira vez os problemas das classes operárias

como greve, salário e toda envolvimento dos movimentos sindicais, foram levados ao palco,

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5 – Corrente do cinema brasileiro de temática nacional iniciado no fim da década de 1950, os diretores mais representativos foram Nelson Pereira dos Santos, Paulo César Saraceni, Glauber Rocha, Joaquim Pedro de Andrade, Ruy Guerra, Leon Hirzman, Walter Lima Jr. e Carlos Diegues. (DANTAS, 1991, p.81).

sendo uma novidade para a época, pois se ver retratado em peças reatrais, era um privilégio da burguesia. Nesse momento o teatro brasileiro começa deixar de lado as influências européias,

para lidar com questões sociais brasileiras A peça foi um enorme sucesso ficando mais de um ano em cartaz.

Na arquitetura, Oscar Niemeyer inovava dando curvas ao concreto. Ele que já havia trabalhado com JK, em 1942 ao projetar o conjunto arquitetônico do bairro da Panpulha, em Belo Horizonte, ficou responsável pelos projetos dos edifícios públicos da nova capital. Também teve destaque, o arquiteto e urbanista Lúcio Costa, nascido em Toulon, na França porém trazido para o Brasil ainda recém-nascido. Já havia projetado o prédio modernista do Ministério da Educação e Cultura (MEC). Trabalhou em parceria com Niemeyer no projeto do pavilhão do Brasil, na Feira Mundial de Nova Iorque em 1938, sendo vencedor no concurso nacional, sugerido pelo próprio Niemeyer, para a escolha do projeto do plano piloto da cidade de Brasília. Com traçado simples, Lúcio “indica a disposição dos principais elementos da estrutura urbana, a localização e a interligação dos diversos setores, instalações e serviços” (Lassance, 2003, p.75). São dele também os projetos da Esplanada dos Ministérios, Praça dos Três Poderes, Rodoviária e Asas Sul e Norte.

Essa onda de otimismo e o bom momento vivido pela classe média teve boa retratação pela Bossa-Nova, o que demonstrava bem o quanto as questões políticas e sociais refletem nas artes. Os anos de mansidão política do governo JK, geraram a Bossa Nova com seu alto astral, sua narrativa de exaltação da beleza carioca, sol mar e mulheres bonitas. Já, no pós 64, alguns dos fundadores desse movimento se tornaram artistas engajados, criticando além de o momento político, o próprio movimento do qual outrora fizera parte, como diz Nara Leão.

Nara em entrevista à imprensa, faz uma espécie de autocrítica, ao se referir aos aspectos “alienados” da estética bossa-novista que, por meio de um lirismo subjetivista voltado para as situações banais da Zona Sul do Rio de Janeiro, ignorava frontalmente as massas populares e seus dilemas. (NAVES, 2004, p.39 )

O fechamento do mercado europeu, causado pela Segunda Guerra Mundial, levou o presidente Franklin Roosevelt, a abandonar o “Isolacionismo”6 e, em 1942, às véspera de os

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6 - Política de não interferência em outros países, adotada pelos americanos desde o fim da Primeira Guerra Mundial.

Estados Unidos entrarem na Segunda Guerra, visando conquistar a simpatia dos países latinos americanos. Uma dotação de cento e quarenta milhões de dólares foi destinada à divulgação do “American Way of life”, o estilo de vida americano, sob o comando do magnata do petróleo, Nelson Rockefeller.

Essa nova política em relação à América Latina foi decisiva para a transformação do pensamento da classe média brasileira, que era seduzida pelas inovações vindas da América do Norte, mostradas ao mundo principalmente através dos filmes.

O Cinema se torna o mais importante veículo de divulgação, uma questão de estado, de tamanha importância, que o escritório responsável pelo controle de toda produção cinematográfica americana precisou ser instalado na Casa Branca.

A divulgação no Brasil do modo de vida americano, dos seus produtos e da modernidade por eles alcançada, criou uma tendência à desvalorização de tudo o que era nacional, uma noção totalmente oposta ao choque de brasilidade6 proposto nos anos de 1920, com a Semana de Arte Moderna7, em 1922, quando artistas brasileiros começaram a lutar em prol do reconhecimento dos nossos valores, nossa mestiçagem, cultura e arte, até então tidas como de segunda categoria, por não seguir os padrões europeus trazidos e inseridos no Brasil pela Missão Artística Francesa a partir do decreto de 12 de agosto de 1816, assinado por D. João VI, que criou a Academia de Belas-Artes. O objetivo dessa instituição não era somente a “educação artística” e sim abrir um campo cultural mais abrangente, pois seu primeiro nome foi “Escola Real das Ciências, Arte e Ofícios”. Nesse momento o Brasil romperia com todo um passado de arte barroca do século XVIII, relegando ao esquecimento artistas como Aleijadinho, Antônio Vieira Servas e Mestre Piranga; além do nosso folclore e várias outras manifestações culturais.

... a idéia era suprir a colônia americana, “carente de boa arte”. Com os componentes chegavam, portanto o desejo de montar todo um aparato laico com relação às artes e a intenção de impor uma “nova cultura artística”, mais afinada com as vogas européias. ( SCHWARCZ, 2002, P. 310 )

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6 - BRASILIDADE - amor ao Brasil ( Ferreira, 1999, p.329 )

7 - A Semana de Arte Moderna de 1922 foi o principal acontecimento do movimento modernista (Ferreira, 1999, p. 1373)

Alguns autores, como José Ramos Tinhorão, defendiam a hipótese de que as idéias de valorização do produto americano, perduraram até os anos cinqüenta, período em que eram evidente a preferência musical das classes média e alta, que davam prioridade absoluta às músicas americanas. Tinhorão vê uma correlação entre a dependência econômica e a dependência cultural.

Acontece que nas nações em que a capacidade de decisão econômica não pertence inteiramente aos detentores políticos do poder, como é o caso de países de economia capitalista dependente _ e entre eles o Brasil em estudo _ , a própria cultura dominante revela-se uma cultura dominada.

Em resultado, a cultura das camadas pobres acabam sendo submetidas a uma dupla dominação: em primeiro lugar, por que se situa em posição de desvantagem em relação à cultura das elites dirigentes do país; e, em segundo lugar, porque essa cultura dominante não é sequer nacional, mas importada e, por isso mesmo, dominada. (TINHORÃO, 1998, p. 10 )

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Na busca da conquista de parte do mercado fonográfico, grupos vocais cariocas imitavam os arranjos dos conjuntos americanos e muitas versões eram feitas para o português, uma forma de, segundo alguns críticos da avalanche de músicas estrangeiras em nosso mercado, compensarem a falta de cultura da maior parte da população, que não entendia as letras das músicas originais cantadas geralmente em inglês.

É nesse contexto, de grande massificação cultural americana, que classe média brasileira reclama o fato de a nossa música, principalmente o samba, desde anos de 1930 elevados à categoria de “Ritmo Nacional”, por Getúlio Vargas, não evoluir, continuar estática diante de toda modernidade que aqui chegavam através dos discos e cinema.

Estavam tais jovens de nível universitário nessa preocupação de encontrar uma “saída” para o samba, que acusavam de “quadrado” e de, parado em sua evolução, “só saber falar de morro e barracão”. – Quando surgiu na Boite Plaza, em Copacabana, um estranho violonista que balançava o ritmo em uma combinação de acordes compactos, que acabava por estabelecer uma clara bitonalidade em relação ao fundo instrumental. Pois ao experimentarem a novidade em suas reuniões, os jovens amadores descobriram estar diante do suporte rítmico ideal para a superposição dos esquemas harmônicos da música norte-americana que os fascinava. (TINHORÃO, 1998, p. 312).

A palavra “bossa” era apenas mais uma das muitas gírias do vocabulário carioca dos anos cinqüenta, e queria dizer, jeito, maneira. Uma pessoa que tivesse certa habilidade para alguma coisa, ou fosse bom tecnicamente em algo, dizia-se que essa pessoa tinha “bossa”. A havia aparecido em um samba de Noel Rosa na década de 1930, no samba “São coisas nossas”: “O samba, a prontidão/ e outra bossas/ são nossas coisas/ são coisas nossas”. A expressão “bossa-nova” designava algo novo, uma nova moda, um novo comportamento, podia-se por exemplo anunciar-se uma geladeira “bossa-nova”, para exaltar modernidade do produto. Por isso, por ocasião de um show no Grupo Universitário Hebraico do Brasil, alguém, possivelmente um aluno, ao perceber que tratava da apresentação de um grupo de músicos que interpretava um tipo de samba diferente, escreveu no quadro: “Hoje, Silvinha Telles, João Gilberto e um grupo bossa-nova”, (MILLARCH, 1990, p.16), tudo indica que aí foi batizado o movimento e, consequentemente, o ritmo. A expressão acabou sendo adotada pois definia bem o seu caráter moderno e inovador. Mas, quem percebeu em todo esse processo um novo movimento foi Ronaldo Bôscoli. Como afirma Tárik de Souza:

O Ronaldo Bôscoli é o grande ideólogo da Bossa Nova, ele que viu aquilo como um movimento e ele era jornalista, ele colocou na mídia, ele organizou aqueles festivais nas universidades e tal, ele achou que aquela turma toda devia se reunir e a partir de um rótulo, que foi Bossa Nova, transformar aquilo numa coisa una. (Camargos, 2005)

O Rio de Janeiro foi o cenário ideal para o surgimento da Bossa Nova, o jeito carioca, e a beleza natural da cidade eram sempre exaltados nos versos desse novo jeito de compor. O perfil extremamente otimista refletia a fase desenvolvimentista vivida pelo país.

“... o ponto de máxima intensidade da valorização foi a Copacabana dos anos cinqüenta. Nesse momento o Rio não era Paris tropical, não era cópia de nada, era simplesmente o Rio, a afirmação não arrogante de que nós, brasileiros, éramos especiais. Mesmo sem ameaçar nenhuma outra região do país, o Rio era o laboratório da brasilidade. Era o momento em que a auto-estima brasileira estava no máximo. Era a época em que achava que podia tudo. A história nos condenava, o presente era incômodo, mas o Brasil era o país do futuro, dotado de imensa ousadia. O pessoal brincava dizendo que Deus era brasileiro e tinha carteira de identidade do instituto Félix Pacheco. (COUTO, 2006, p. 189 e 190).

Inspirada em temas como o mar, o amor e a flor, a Bossa Nova nasce da busca de algo novo e do rompimento com um tipo de orquestração a algumas décadas estabelecidas em nossa música, como as concepções orquestrais criadas por Pixinguinha8 e Radamés Gnattali ao atuarem na Victor Talking Machine Company of Brasil, onde desenvolveram arranjos ricos e suntuosos, utilizando muitos instrumentos de corda e metais para acompanhar cantores que por sua vez, recorriam à interpretações carregadas de excessos e dramaticidade, não só na voz mas também nos gestos, uma clara herança da ópera. Nessa época deixa-se de utilizar os acompanhamentos simplórios que não interagiam com a melodia, destinados apenas a garantirem que o cantor se mantivesse o ritmo e a tonalidade da música.

Os jovens da zona sul carioca se oporiam a esses modelos orquestrais melancólicos, de ritmos simples e repetitivos e de letras triste e cheias de desesperança, onde geralmente exaltava-se os amores perdidos. O bolero e o samba-canção, interpretados por grandes cantores da época como, Silvio Caldas, Orlando Silva, Carlos Galhardo, Nelson Gonçalves e outros, não correspondiam aos anseios dessa juventude e “algo tinha que ser feito”, era preciso romper com todo esse passado musical. Foi o que sentiram aqueles jovens que se concentravam na zona sul do Rio de Janeiro, principalmente no apartamento de Nara Leão, a musa do movimento. Nara promovia em Copacabana encontros de jovens músicos e compositores como, Roberto Menescal, Sérgio Ricardo e Carlos Lyra, que com suas harmonias para violão cheias de acordes de jazz mostravam sua insatisfação com a mesmice da nossa música, procurando modernizá-la, por sentir que faltava algo, mas o que?

Faltava a batida, não bastava mudar somente as harmonias. Porém, alguém já havia pensado nisto. Depois de ir da Bahia para o Rio de Janeiro para se integrar aos Garotos da Lua, conjunto em que atuou por pouco mais de um ano, João Gilberto perambulou sem rumo no Rio de Janeiro, sem dinheiro e sem opção de trabalho. Seu temperamento difícil lhe fechava

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8 - Alfredo da Rocha Viana Filho ( 1898-1973).

muitas portas. Não via saída para sua situação, chegando inclusive a cogitar a possibilidade de voltar para Bahia, mas isso só em último caso, pois voltar seria admitir a derrota. Acabou aceitando o convite do amigo e admirador, o gaúcho Luís Telles, líder do conjunto Quitandinha Serenaders, para passar uma temporada no Rio Grande do Sul. Ali João teve bons momentos de sua vida, mas chega a hora de voltar ao Rio de Janeiro, Luís Telles, sabia que João tinha uma irmão em Diamantina9, sugeriu ao mesmo que fosse passar um tempo por lá, para surpresa de Telles, João aceita de pronto sua sugestão, e em poucos dias, sem se dar ao trabalho de avisar à irmã sobre sua viagem, chega à casa de Dadainha e do cunhado Péricles.

Em Diamantina, finalmente teve paz e sossego para estudar novas concepções rítmicas. Ele não era introspectivo o tempo todo. Às vezes

invadia a sala com arroubos de entusiasmo, para exibir um efeito que

arrancava do violão – algo que depois ficou conhecido como “a batida da

Bossa Nova” – e isso os deixava ainda mais preocupados. ( CASTRO, 1990,

p. 148)

Devido a esse retiro de João Gilberto o ritmo (a batida) da Bossa Nova não nasceu no Rio de Janeiro, berço do movimento, mas sim na cidade mineira de Diamantina.

João Gilberto foi o primeiro a perceber a necessidade de se definir uma nova batida para suporte das inovações musicais que se processavam, sendo primeiro a procurar conscientemente por ela, pois tocar de forma sincopada não era novidade, porém era algo tido como uma forma pessoal de se interpretar um instrumento, não havia a preocupação com uma nova base rítmica definida. “A batida sincopada de Alf ao piano e, principalmente, a de Donato ao acordeão – como ficaria aquilo no violão? O novo João Gilberto estava nascendo daquelas experiências”. ( CASTRO, 1990, p. 148)

João passou 8 meses enclausurado em Diamantina, sendo depois levado novamente à terra natal, Juazeiro, pois a irmã e o cunhado pretendiam mostrar a filha recém nascida, Marta Maria, aos avós maternos e não cogitavam a possibilidade de deixar João sozinho na cidade mineira. Na volta a Juazeiro ele não se adaptou, sentindo-se totalmente deslocado, sua nova batida de violão não foi entendida, seu pai diz: “isso não é música. Isso é nhém- nhém nhém”.

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9 - DIAMANTINA - fundada por Jerônimo Gouveia em 1713, na região do Alto do Jequitinhonha, já havia se chamado Arraial do Tijucano, e é tido como local onde nasce a extração de pedras preciosas em Minas Gerais.

(CASTRO, 1990, p.149). A mando da família vai a Salvador onde é consultado por um médico psiquiatra do Hospital das Clínicas, depois de uma semana no ambulatório sai o diagnóstico: João não estava louco. Retornou à Juazeiro, e pouco tempo depois, sentindo-se musicalmente preparado, voltou para o Rio de Janeiro e, mais uma vez, bateu à porta do gaúcho Luiz Telles. Durante todo o ano de 1957, perambulou pelo Rio, fazendo contatos, tentando mostrar que realmente tinha algo novo: um novo jeito de cantar e uma nova e revolucionária batida de violão. Era hora de buscar uma oportunidade de gravar seu primeiro disco.

As portas começariam se abrir quando João Gilberto se encontrou o amigo Edinho, do Trio Irakitan, que o manda à casa de Roberto Menescal, pois este estava montando um conjunto.

Menescal ficou impressionado com a forma de tocar de João e, saiu na noite o apresentando-o a vários colegas, inclusive Carlos Lyra. Através dos dois conheceu o fotógrafo da gravadora Odeon, Chico Pereira, que também impressionado com João Gilberto, achava que esse tinha de gravar imediatamente. Chico então convenceu João a bater à porta de Tom Jobim na Rua Nascimento e Silva 107. João, que já conhecia Tom, de sua outra estada no Rio, momento no qual era apenas um bom pianista da noite, naquele momento, porém, já era um famoso como compositor, tornando-se conhecido justamente no período em que João esteve ausente do Rio. Com os sucessos “Foi a noite”, “Solidão” e “Se todos fossem iguais a você”. Além disso, era arranjador da gravadora Odeon, onde tinha alguma influência .

Tom, que conhecia João Gilberto apenas como cantor, discípulo de Orlando Silva, teria uma surpresa.

O susto de Tom ficou reservado para o momento em que João Gilberto pegou o violão e o apresentou a “Bim-bom” e “Hô-ba-la-lá”. Aquela batida era uma coisa nova. Produzia um tipo de ritmo em que cabia todas as liberdades que se quisesse tomar. Era possível escrever para aquela batida. Com ela adeus à ditadura do samba quadrado, do qual a única saída até então era o samba-canção, que já estava levando as pessoas a um estado de narcolepsia - tanto quem ouvia, como quem tocava. ( CASTRO, 1990, p. 167 )

Tom fez todo o possível para gravar um 78 rpm com João Gilberto, mas este só foi possível em 10 de julho de 1958, com o apoio do também baiano Dorival Caymmi, que já conhecia João da Rádio Tupi, o levou ao apartamento de Aluyzio de Oliveira, diretor artístico da gravadora Odeon, sendo que este comprou a idéia, dando carta branca a Tom e João, colocando à disposição o estúdio da gravadora.

Aluyzio de Oliveira, ex-lider do grupo musical Bando da Lua, que acompanhava Carmem Miranda nos Estados Unidos, após a morte da cantora volta para o Brasil e torna-se locutor oficial dos filmes de Walt Disney, de quem era amigo (VILLELA, 2003, p.17). Depois Aluyzio se tornaria diretor da Odeon. Também dirigiu em 1963 a peça “Pobre menina rica” na qual Nara Leão faz sua estréia como cantora ( Naves, 2001, p.33). Nesse mesmo ano fundou a gravadora Elenco, que seria uma grande incentivadora da Bossa Nova, responsável pela gravação da maior parte dos discos do movimento Bossa Nova.

São comuns as menções ao jazz quando se fala de Bossa Nova, pois são evidentes os empréstimos do estilo musical americano ao ritmo brasileiro. Principalmente no que se refere a harmonia10. Até esse momento quase não se utilizava no Brasil harmonias mais rebuscadas com acordes dissonantes, tão freqüentes no jazz, principalmente no bebop11. A forma “cool”12, de cantar, lançada aqui por João Gilberto, também é outro aspecto que fica evidente ser importado do jazz, o canto sem emoção o canto quase que falado, também se contrapondo aos interpretes tradicionais dos sambas-canção e boleros, uma forma muito mais comedida de cantar e se apresentar.

As críticas e as polêmicas em torno da Bossa Nova não tardariam. Seus criadores e seguidores seriam acusados de estarem americanizando o samba, de renegar as tradições desse que é, segundo os nacionalistas, único ritmo verdadeiramente oriundo das classes sociais menos favorecidas, segundo Pixinguinha:

O choro tinha mais prestígio naquele tempo. O samba, você sabe, era mais cantado nos terreiros pelas pessoas muito humildes. Se havia uma festa, o choro era tocado na sala de visitas e o samba, só no quintal, para os empregados. (LOPES, 1992, p. 47).

As críticas a essa influência estrangeira, de subserviência a uma cultura superior e alienação quanto a problemas sociais, serão uma constante, e perseguirão a Bossa Nova, principalmente durante a sua primeira fase, enquanto ela é novidade, o que na verdade é natural, pois estava

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10 - HARMONIA - Seqüência de acordes elaborada para o acompanhamento da melodia ou para servir de base para um tema instrumental.

11 – BEBOP - Estilo de jazz que surge na década de 1940 nos Estados Unidos, se contrapondo às antigas orquestrações do swing. permitindo novas harmonias e improvisações.

12 – COOL - frio em inglês, diz-se do jazz mais tranqüilo, desprovido de grandes emoções que teve Cole Porter como principal representante. (GRAMMOND, 1992, p. 31)

havendo nesse momento, um rompimento com toda um passado musical.

Lúcio Alves e Dick Farney, já em meados dos anos quarenta, foram acusados de americanizarem e desvirtuarem o samba. Ambos tinham formas suaves de cantar, sendo estes excelentes interpretes e, não escondiam a admiração pela música americana, tendo um ídolo em comum: Bing Croby.

...foram decisivos para arejar a música brasileira: sopraram-lhe oxigênio numa época, fins dos anos 40, em que ela ameaçava sufocar, engasgada com um bolero. Os dois tornaram clássico quase tudo que gravaram, inspiraram seguidores sofisticados, abriram o caminho para a Bossa Nova. ( CASTRO, 2001, p. 171 )

Lúcio era violonista e arranjador, fazia arranjos principalmente para seu grupo vocal, “Os Namorados da Lua”. Dick pianista e arranjador, também fundou seu grupo “O Swing Maníacos”. Ambos tiveram experiências nos Estados Unidos, depois de já serem sucesso por aqui. Dick teve o primeiro, fã-clube do Brasil, o Sinatra-Farney Fan Club, mas os fãs de Lúcio em resposta o criariam Haymes-Lúcio.

O que eles, Dick, Lúcio, Tito e João Donato Faziam já era “uma bossa nova” – de que seus amigos Tom Jobim, Newton Mendonça, Carlinhos Lyra, João Gilberto e outros se serviram em parte para fazer a Bossa Nova. (CASTRO, 2001, p. 171).

Lucio Alves e Dick Farney eram considerados rivais, mas se uniram para gravar “Tereza da praia”, primeiro sucesso de Tom Jobim, composta em parceria com Billy Blanco, essa música feita sob encomenda para os dois interpretes, que nunca abandonaram o jeito intimista de cantar, mesmo quando o mercado já não respondia a esse tipo de interpretação. Os dois morreram aos 66 anos.

A Bossa Nova nos trouxe muitos aspectos diferentes, uma poesia diferente, um novo tipo de cantores que em tempos anteriores não teriam nenhuma oportunidade, pois nada tinham a ver com os interpretes tradicionais. João Donato interrogou: “Depois que o João Gilberto gravou e abril as portas, qualquer um pode cantar hoje em dia, né? Cantar com uma voizinha baixinha estilo Nara Leão, estilo Chet Baker.( CAMARGOS, 2005) . Tárik de Souza deu o seguinte depoimento para o filme “Coisa mais linda”:

A Bossa Nova trás uma coisa coloquial, João Gilberto tem muito essa preocupação de cantar como se fala, em vez de gritar, em vez de prolongar, as notas, entendeu? Ele prefere que as palavras sejam, ditas como se fala, só que dentro de uma música. Então essa modificação inclusive possibilitou artistas que sob a cartilha antiga da música brasileira não poderiam ser cantores, possibilitou que esses artistas virassem cantores. Entre eles a Nara Leão, uma coisa sem impostação, a Bossa Nova tirou a gravata, tirou o smook da música brasileira. ( CAMARGOS, 2005).

As novas e refinada harmonia, o canto intimista, a batida de violão, a menor preocupação com o visual artístico marcaram profundamente o novo estilo, mais dois aspectos foram primordiais para sua formatação, o banquinho e o violão, essas seriam duas marcas da Bossa Nova, dando ao músico uma nova postura diante do público. Com certeza o banquinho facilitou a inclusão nos shows de artistas desprovidos de dinâmica de palco, o que acarretaria também um outro fenômeno, que foi o fim da era dos interpretes. Os próprios compositores passaram a cantar e gravar suas composições. A ponto de o historiador Paulo Cesar Araújo citar o exemplo de Emílio Santiago, um interprete de renome nacional, não ter lançado uma única música inédita de sucesso, apesar da sua imensa discografia, praticamente todo composta de regravações.

O produtor musical Luis Carlos Miele, atribui a si a introdução do banquinho na Bossa Nova, diz ele:

Os irmãos Bernardo abriram uma emissora de televisão no Rio, chamada TV Continental, e me pediram um programa de entrevista com essa turma dessa tal da Bossa Nova. Nesse encontro da TV que eles foram fazer essa primeira apresentação e, o Mesnescal disse que eu fiquei responsável pela maldição do banquinho. Por que Nara e “Menesca” sentaram-se num sofá, que é muito incomodo pra tocar o violão e cantar, eu falei: “péra aí! péra aí! contra-regra vê lá uns banquinhos aqui, botei os banquinhos para eles e depois isso virou uma marca, né? Um cantinho, um banquinho e um violão. O Menescal falou: maldito Mielle podia ter pensado em outra coisa que até hoje a gente sofre, por que é desconfortável também ficar no banquinho. (CAMARGOS, 2005).

O violão é um instrumento de origem muito discutida, chegou à Espanha através dos árabes e tornou-se popular na Europa a partir do século XIV, sua introdução no Brasil é atribuem aos jesuítas, que se utilizavam desse instrumento como ferramenta de catequese, outros atribuem aos ciganos, que aqui chegaram deportados pela inquisição portuguesa no século XVI. A má fama instrumento também não tem uma origem bem definida, pode ter surgiu no bojo da má fama dos ciganos ou pelo fato do violão ter se popularizado entre os boêmios, seresteiros, festas populares e ambientes mais humildes. Já que podia ser adquirido a preços baixos, (embora existam violões de preços elevados, principalmente os fabricados por grandes luthier), e com isso ter se tornado um verdadeiro símbolo de malandragem, em contra partida ao piano, símbolo de status, utilizado nos saraus das elites, que com o aparecimento dos prédios de apartamento tornaram-se mais raros, porém, com o novo modismo lançado pela Bossa Nova o violão vence o preconceito das elites e ganha seu espaço em todas as classes sociais.

Segundo Maria Luiza Kfouri, no seu livro “Violões do Brasil”, o termo “violão” é usado exclusivamente na língua portuguesa, já que na Espanha usa-se a expressão “guittern”, de origem árabe, que nós traduzimos como “guitarra” usado no Brasil para instrumento elétrico, sem a caixa de ressonância, de 6 cordas e que utiliza a mesma afinação do violão. Também há a palavra “vihuela” 13, usada para instrumento de arco 7,5cm maior que o violino, a palavra pode ter sido traduzida para o português como viola e daí ter vindo a palavra violão devido as grandes dimensões das “violas” dos jesuítas. Com poucas peças escritas exclusivamente para

o violão no Brasil, os doze estudos de Heitor Villa Lobos, continuam sendo o que há de mais conhecido, uma obra pequena porém de excelente qualidade.

Vale destacar também a obra de João Pernambuco, recém resgatada pelo violonista Turíbio Santos, entre as músicas mais conhecidas de João Pernambuco estão “Sons de Carrilhões”, e “Luar do Sertão”, esta em parceria com Catulo da Paixão Cearense.

A nova postura diante do público, estava também nas roupas. Os bossa-novistas usavam no palco roupas do dia-a-dia, não havia mais a preocupação de roupas específicas para show, como ainda se observava no palco da Rádio Nacional “...era comum o cantor construir uma persona exuberante, recorrendo a trajes reluzentes e a uma postura teatral”. (Naves, 2004, p11)

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13 - A afinação do antecessor do violão, o guittern, é: mi, si, sol, ré com cordas duplas. Na sua evolução as cordas do violão tornaram-se únicas, porém, ganhando mais duas, ficando: mi, si, sol, ré, lá, mi.

É na verdade uma noção de contracultura14.

O canto baixinho, também foi introduzido conscientemente por João Gilberto, já que ele tinha grande potencial vocal, pois veio da Bahia substituir Jonas Silva nos Namorados da Lua, justamente por que este cantava “baixinho”, o que limitava todo o grupo a manter um volume de voz a baixo de suas possibilidades, criando problema com os diretores da Rádio Nacional, que achavam que o grupo cantava muito baixo. João Gilberto resolveu esse problema, embora devido ao seu temperamento difícil fosse criar muitos outros.

A música “Garota de Ipanema”, criada em 1962, durante o movimento da Bossa Nova, tornou-se uma das músicas brasileiras de maior êxito no exterior todos os tempos. Entretanto, o contrato da música com a editora americana rendeu menos de um centavo de dólar por gravação.

Lançada no histórico show no Au Bom Gourmet, em 2 de agosto de 1962, quando Vinícius de Moraes estréia como cantor, o show também reuniria João Gilberto, Tom Jobim e Os Cariocas. A primeira gravação de “Garota de Ipanema” foi em 1963, por Pery Ribeiro e depois por nomes como Sara Vaughan, Stan Gestz, Frank Sinatra e Ella Fitzgerald. Nela há todos os ingredientes próprios da Bossa Nova: o sol, o mar, a garota bonita, o alto astral, a cidade do Rio de Janeiro, todos os temas recorrentes na temática do movimento bossanovista.

Com toda certeza essa música é uma das responsáveis por tornar Tom Jobim o segundo compositor estrangeiro mais executado nos Estados Unidos de todos os tempos ficando atrás

apenas dos Beatles. Que levou Tom a indagar a seguinte questão: “Mas eles são quatro né?”

No disco Getz/Gilberto, a música foi gravada em inglês “The girl from Ipanema”. Esse disco,

que teve a participação de Astrud Gilberto, superou a marca de milhão de cópias. Tom Jobim apesar de participar como compositor, arranjador e pianista, recebeu apenas 1% da venda desse disco.

Embora a aparente descontração e espontaneidade, “Garota de Ipanema” não foi composta no Bar Velloso como é comum se pensar.

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14 – De contra + cultura – Forma de negativo de cultura com o fim de combater os valores culturais vigentes; arremedo de cultura. ( FERREIRA, 1999, P.1384)

Em 1963, Tom Jobin e Vinícius de Moraes, sentados a uma mesa do bar Velloso, na Rua Montenegro, em Ipanema, homenageiam com

uma canção uma criatura bronzeada que ondula displicentemente em direção à praia. (ENDERS, 2002, p. 274 )

Ali os autores observavam a musa da canção, a então normalista Heloisa Eneida de Menezes Paes Pinto, 18 anos, 1,68m, que morava nas proximidades. Mas na verdade a composição da canção em si é outra coisa. Tecnicamente muito bem elaborada, foi composta ao piano por Tom Jobim em sua casa, na Rua Barão da Torre, e a letra, que ficou a cargo de Vinicius de Moraes que depois de três tentativas, que não o agradaram, teve sua ensolarada e definitiva versão criada na fria e serrana cidade de Petrópolis. Eis aqui uma das versões de Garota de Ipanema que não foi utilizada pelo autor:

“Vinha cansado de tudo/ de tantos caminhos/ tão sem poesia/ tão sem passarinho/ com medo da vida/ com medo do amor/ quando na noite vazia/ tão linda no espaço/ eu vi a menina/ que vinha num passo/ cheia de balanço/ caminho do mar/ vem de pressa agora/ que ela vem vindo/ e ela vem sorrindo/ o mundo está sorrindo/ o mundo está rindo por causa do amor/ Ah, por que estou tão sozinho...” ( Souza, 1995, p. 163).

Tom Jobim sempre foi muito cuidadoso com sua obra, até o fim da vida sempre trabalhou suas músicas, mesmo aquelas há muito tempo compostas e por várias vezes gravadas, sempre eram trabalhadas pelo artista, que procurava enriquecê-las com novas harmonias, novos arranjos, enfim, sempre algo novo poderia ser acrescentado a qualquer música de sua imensa obra. Essa dedicação e competência, podem ser percebidas nas palavras de Vinicius de Moraes referindo-se a “Garota de Ipanema”:

“... O ar ficava mais volátil como para facilitar-lhe o divino balanço do andar. E lá ia ela toda linda, a garota de Ipanema, desenvolvendo no percurso a geometria espacial do seu balanceio quase samba, e cuja fórmula teria escapado ao próprio Einstein; seria preciso um Antônio Carlos Jobim para pedir ao piano, em grande e religiosa intimidade, a revelação do seu segredo. Para ela fizemos, com todo o respeito e mudo encantamento, o samba que a colocou nas manchetes do mundo inteiro e fez de nossa querida Ipanema uma palavra mágica para os ouvintes estrangeiros...” ( MORAES, 1965).

Nascido na Tijuca, Zona Norte do Rio de Janeiro, na Rua Conde de Bonfim No 634, Antônio Carlos Brasileiro de Almeida Jobim, teve o parto feito pelo mesmo obstetra José Rodrigues da Graça Mello, o mesmo que há 17 anos antes havia feito o parto de Noel Rosa. Poucos meses depois de seu nascimento a família mudou-se para Ipanema, seu pai faleceu quando ele tinha 7 anos, tendo no padrasto, o funcionário público Celso Frota Pessoa, um amigo e incentivador, que com muito esforço deu-lhe primeiro piano.

Tom estudou em vários colégios: Mallet Soares, Mello e Souza, Juruema e Andrews onde faz o científico. Por mais de um ano fez faculdade de arquitetura. Estudou música com Hans Joachim Koellreuter, Lucia Branco, Tomás Terán, Alceu Bochino, Paulo Silva e Láo Perachi (Souza, 1995, p.158). Em 1949 casou-se com Thereza Hermanny, no ano seguinte nasceu Paulo Jobim. Seu primeiro parceiro foi Newton Mendonça. Com Billy Blanco compôs a “Sinfonia do Rio de Janeiro” em 1954. Musicou a peça “Orfeu da Conseição”, de Vinicius de Moraes com cenário de Orcar Niemeyer. Teve influências de grandes compositores clássicos como Heitor Villa Lobos, Claude Debussy, Maurice Ravel, Frèdèric Francois Chopin, Igor Stravinsky e Johann Sebastian Bach. Sem dúvida foi o maior compositor da Bossa Nova, além de “Garota de Ipanema” ( com 5 milhões de execuções nos EUA, rivalizando com Yesterday, de Lennon & McCarteney ).

Compôs ainda clássicos como: “Chega de saudade”, “Dindi”, “ Só em teus braços”, “A felicidade”, “Ela é carioca”, “Esse teu olhar”, “Samba do avião”, “Só danço samba”, “Inútil paisagem”, “Eu sei que vou te amar”, “Anos Dourados”, ”Se todos fossem iguais a você”. E com mais de um milhão de execuções também nos Estados Unidos as músicas: “Águas de março”, “Insensatez”, “Dasafinado”, “Wave”, “Meditação”, “Corcovado” e “Samba de uma nota só”. Sua musicografia gira entorno dos 250 títulos, compostos com parceiros diversos ou individualmente, mostrando-se inclusive ser um excelente letrista. Como arranjador, parte para um estilo econômico em notas, chegava inclusive a dizer que “usava mais a borracha do que o lápis”, e define. “A grande dificuldade do fazedor de música é limpar, jogar fora o rebuscado...” (Souza, 1995, p.153). Tom morreu em 8 de dezembro de 1994 nos Estados Unidos, onde foi operar um câncer na bexiga.