Uma história emocional do Hecate Enthroned (Versão em português)

Quando estava na transição entre a pré-adolescência à adolescência, o black metal foi a imprescindível trilha sonora de minha vida. Digam o que disserem, o apreço pelo black metal é uma questão de gosto adquirido: qualquer um que ouvir qualquer banda pode julgá-lo tanto a melhor quanto a pior coisa do mundo. Naquele tempo, onde tudo me era trevas e rebelião, obviamente encontrei sentido naqueles gritos demoníacos, e longe de sentir medo ou asco, a única coisa que enxergava era conforto.

Sendo eu um apaixonado por tudo aquilo que me faz bem, procurei manter contato com meus ídolos e deixá-los cientes de minha adoração por eles, e fico muito feliz de dizer que fui aceito em 9 de 10 casos; ao contrário do que o vulgo supõe, não existem cavalheiros mais bem-educados e prestativos que músicos de black metal. É com muito orgulho que conto, e contei, como amigos Tvangeste, Ebonylake, Hecate Enthroned, just to name a few; mas minha relação com o Hecate foi a que se desenvolveu do modo mais heterodoxo, e conversei pelo menos uma vez com quase todos seus ex-integrantes – em particular da formação de 1998.

Comecemos, porém, desde o começo – e queiram me acompanhar de volta a 2010, ano da minha introdução ao black metal. Burzum e Cradle of Filth foram as primeiras bandas que ouvi. Minha adoração, porém, era dedicada à última, pois a temática lírica apetecia a meus gostos então nascentes pelo assim chamado Romantismo Escuro. Dani Filth era, e ainda o é, um exímio letrista, mas eu – e todo mundo, for that matter – percebi que, musicalmente, o CoF se descaracterizou a partir dos anos 2000, e muito provavelmente jamais veríamos outro “Dusk and her embrace” dadas as circunstâncias. Sonhava que existisse em algum lugar alguma outra banda similar ao CoF, fosse na parte lírica ou musical ao menos, e graças às pesquisas intermitentes que me comprazo em fazer, vejamos o que encontrei: uma banda cujo vocalista havia sido do CoF e que aprendera a cantar com o Sr. Filth! Hecate Enthroned… Muito que bem!

Começo tudo sempre cronologicamente; ouvi o primeiro EP do Hecate, “Upon Promeathean shores”, e fiquei pasmo.era uma versão muito, muito melhor daquilo que o CoF havia desenvolvido em seu début, “The principle of evil made flesh”: vale ressaltar que os dois lançamentos possuem apenas um ano de diferença entre si. Passei então do EP aos dois primeiros álbuns de estúdio – “The slaughter of innocence” e “Dark requiems and unsilent massacre” me fizeram flutuar. Não só devido aos excelentes vocais do meu saudoso amigo Jon Kennedy como também ao ótimo trabalho dos demais músicos, é claro.

Pelos anos subsequentes respirei o Hecate quase que diariamente – não havia outro vocalista de black metal sinfônico tão grandioso e completo como o Sr. Kennedy, e que fazia o mesmo que o Sr. Filth de modo mil vezes melhor. Bem ciente estou de que, por muitos anos, o CoF e o Hecate foram comparados um ao outro, mas o Hecate, em vez de ser um mero plágio do CoF como muitos já tiveram a audácia de proclamar, tão somente aprimorou a fórmula; apesar de Dusk and her embrace já ter saído então, as letras do Sr. Kennedy eram bem mais maduras, e não tão focadas no aspecto “teatral” que o CoF começou a desenvolver. Pode ser que tais acusações tenham contribuído para a eventual demissão do Sr. Kennedy, mas nunca me interessei em me aprofundar nestas questões pessoais.

Os álbuns pós-Kennedy do Hecate continuam sendo exemplos excelentes do black metal sinfônico – os Srs. Dean, Elliot e Joe também são grandes vocalistas, e digo que tive algumas breves, porém muito agradáveis, conversas com o Sr. Dean – mas o Sr. Kennedy foi meu predileto, e tendo em vista seu trágico e precoce falecimento em setembro de 2023, quero aproveitar o ensejo para registrar minha gratidão pelos frutos de nossa amizade.

Por mais que não tenha conhecido ninguém do Hecate pessoalmente (um show no Brasil seria muito bom…!), o Sr. Kennedy sempre foi muito cortês em me responder qualquer pergunta: ele compartilhou comigo algumas histórias sobre seus anos no CoF e, mais importantemente, me apresentou à poesia de Sylvia Plath e me auxiliou a explicar à Internet que Jon Pritchard e Jon Kennedy, ambos ex-baixistas do CoF, não eram a mesma pessoa – quem efetuou tal correção no vasto compêndio da Encyclopaedia Metallum, vale ressaltar, fui eu. Tivemos muitas relações amigáveis comentando nas postagens um do outro, quando ainda tinha eu redes sociais, e era um encanto ver como tinha ele uma família tão bonita e adorável – aquele homem merecia isso e muito mais.

Me arrependi, e muito, de não ter tentado algum outro modo de continuar me correspondendo com o Sr. Kennedy (ou com os demais membros com quem gostava de conversar – o próprio Dean Seddon, por exemplo, e Andy Milnes e Dylan Hughes) após meu desaparecimento das redes sociais – em minha avidez de me desligar de algo que, num período de tempo, vinha me fazendo mais mal do que bem, tomei várias decisões equivocadas e perdi muitas pessoas a quem amava. Também já não era um tão grande fã de black metal em meus últimos anos com um perfil público, então julguei (muito mal) que não sentiria grande falta.

Ledo engano. Com dois anos de atraso, em 2022, descobri sobre a morte do ex-guitarrista Marc Evans por suicídio. Não havia conversado com Marc, pois não sabia se ele tinha redes sociais, mas seu trabalho com os dois primeiros lançamentos do Hecate era estelar, e nunca pude elogiá-lo por isto. No entanto, soube que o Sr. Kennedy finalmente voltara aos palcos com uma nova e promissora banda, o Imperial Genocide, mas isto não foi o suficiente para me motivar a retornar ao Facebook para parabenizá-lo; talvez ele nem se lembraria mais de mim, pensei. Passei os demais meses vivendo a vida como de costume, mas uma estranha pontada, à qual tentava sempre reprimir, me dizia para tentar entrar em contato com o Sr. Kennedy novamente o mais rápido possível. Quando finalmente resolvi ceder… ocorreu a tragédia da qual todos devem estar cientes.

Fiquei horrorizado. Ainda estou horrorizado. Foi o segundo grande amigo que perdi para uma tragédia inesperada, sem poder ter dito a ele tudo aquilo que gostaria de dizer enquanto ainda vivia. Pelos 6 meses que se seguiram à morte do Sr. Kennedy não fiz outra coisa fora me martirizar, e sei que até o fim de minha própria vida sua falta irá me doer, mas para me consolar penso que, afinal de contas, não é aquilo que meu amigo gostaria.

Em seus breves 46 anos de vida ele pôde deixar sua marca numa das mais importantes cenas musicais mundiais, legando à posteridade 3 álbuns do mais alto calibre. Tudo aquilo que ele podia ter feito o fez, trazendo alegria a milhares de pessoas ao redor do mundo (eu entre elas), e se isto não é uma grande conquista, então não sei o que é. O Hecate segue de pé como um grande testemunho de seu nome, e está em muito boas mãos – enquanto houver alguém que ouça o Hecate, Jon e Marc viverão nas lembranças de uma miríade de fãs, o que é, pelo menos para mim, a maior forma de recompensa que alguém pode ganhar, e se digo isto mesmo com meu amigo morto – ora! Antes tarde do que nunca.

(São Carlos, 1º de março de 2024)

[IN MEMORIAM MARC EVANS & JON KENNEDY]

Galaktion Eshmakishvili
Enviado por Galaktion Eshmakishvili em 05/08/2011
Reeditado em 01/03/2024
Código do texto: T3141823
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