O Réquiem de um Gênio

Estamos no ano de 1791. Em Viena, a terra da boa música, vive o personagem que motiva este breve relato. O encontramos em casa, trabalhando em uma nova composição, conduzindo sua pena em admirável constância, sem vacilar por um só momento na harmonia pretendida para cordas, sopros, madeiras e todas as demais "ferramentas" necessárias à sua precípua finalidade: exaltar ao Deus Único e Verdadeiro através da música! A mente lúcida, entretanto, já não encontra a mesma resposta de seu organismo enfermo. Apesar de sua pouca idade (conta agora com 35 primaveras), parece sentir nos ombros o peso da existência, tornando-se cada dia mais debilitado e pesaroso sobre o seu futuro.

Motivado ou não por estas angústias pessoais, o fato é que nosso personagem atrasa a entrega (talvez propositalmente) de uma inusitada encomenda: uma Missa Réquiem, prometida a um misterioso ser*. Batendo-lhe certa vez a porta (e ladeado por dois acólitos) encomenda o Réquiem, tendo urgência em sua finalização...

O ainda jovem mas já enfermo compositor é o tipo raro cuja obra é capaz de elevar a consciência humana ao estado de Beatitude; de integração plena com aquilo que de mais caro existe em cada um de nós: a centelha que ilumina a existência, impulsionando o caminhar do Édipo peregrino em sua jornada ao encontro de si mesmo! Sua arte, como deve acontecer com todo verdadeiro artista, fala diretamente ao nosso âmago, sem intermediações ou pontes. É uma espécie de iniciação direta que projeta a alma humana, fazendo-a beijar sua Luz Originária na mais excelsa das eucaristias. Na arte da vida, entretanto, nosso ilustre personagem defronta-se uma vez mais com sua inexorável realidade: dívidas originárias de seus desregramentos financeiros, saúde extremamente combalida e confiança em poucos amigos e admiradores, que o auxiliam naquilo que é possível. Entre uma nova composição e outra, volta a concentrar-se no fatídico e ao mesmo tempo maravilhoso Réquiem que ele mesmo dizia: "seria executado em seu próprio funeral".

Diz a lenda que, ao morrer, teria deixado incompleto o Lacrimosa, uma parte constante do réquiem, e que teria deixado também instruções expressas ao discípulo mais próximo para que concluísse a obra. Eis os dizeres do Lacrimosa, seguidos da envolvente e enigmática composição:

Lacrimosa, dies illa, Qua resurget ex favilla. Judicandus homo reus: Huic ergo parce, Deus. Pie Jesu Domine, Dona eis requiem. Amen.

O Lacrimosa inicia-se com uma atmosfera de profunda resignação. A música torna-se cada vez mais intensa e, ao mesmo tempo, bela; um ar solene parece nos transporta ao limiar existente entre a vida e a morte. Gradativamente, porém, a atmosfera musical quase ameaçadora cede lugar a uma doce e irresistível ternura, advinda da certeza de que este ainda não é o último ato; de que a peça prosseguirá certamente numa nova "oitava", embalada graciosamente pela sublime lira de nossa tonalidade pessoal... O Lacrimosa então é concluído, solenemente.

Sim, nosso personagem deixa a face da Terra naquele mesmo ano de 1791, tornando-se imortal através de sua Obra, que possui expressividade única no mundo.

Todos os que ficaram extasiados com sua magnitude musical reconhecem nele o ser que, não satisfeito em 'Amar a Deus', tornou-se seu porta voz musical no mundo, um verdadeiro prodígio entre os prodígios.

*De acordo com os alguns historiadores, tratava-se do Conde Walsegg-Stuppach, que encomendara a obra para sua esposa falecida. Dizem ainda que o conde apresentaria o Réquiem na condição de autor