Flamengo até morrer (ou me matar…) [parte 1]

Marcos Valle (que fez aniversário na última quinta-feira) tem um álbum que, ao menos em 2023, é enigmático. Me lembro de conversar com minha companheira sobre “Flamengo até morrer” e não chegar a um consenso: crítica ou elogio ao regime militar? Ironia ou niilismo?

Numa primeira vista, “Previsão do tempo” (1976) se filia a uma série de álbuns lançados já após o AI-5: Belchior lançava Alucinação — inaugurando aquilo que Tinhorão excomunguva (em sua sempre muito rígida crítica, o gigante crítico marxista condenava a “substituição da luta de classes por essa coisa de luta geracional”) –. Um Tom Zé já resiliente do seu lugar infeliz após o tropicalismo, diferente de seus semelhantes Gil e Caetano, lançava Estudando o Samba para, depois de esquecido por décadas, ser achado por um gringo que viria a ser responsável pelo relançamento do baiano. E Tim Maia lançava seu Racional vol.2 — já tendo lançado o primeiro volume um ano antes, o “síndico” ainda lançaria mais um outro álbum dedicado aquela, ainda hoje presente na praça da Carioca, estranhíssima religião/seita/qualquer coisa do Universo em Desencanto.

Todos estes, pelo menos em 1976, buscavam, mais do que o manifesto político em forma de arte, uma estética mais acentuada, moderna, pra frente.

Tudo aquilo que foi visto nos anos 60, de Geraldo Vandré, até Chico Buarque e MPB4, etc.etc.etc. (que tinha um conteúdo clara e profundamente politizado envolto em uma estética conscientemente arcaica), perdeu totalmente o sentido: Geraldo Vandré foi, realmente, o maior a realizar esta empreitada; acabou preso e tornou-se um reacionário por inteiro. O possivelmente segundo maior expoente desta empreitada, Taiguara, desistiria após seu disco Imyra, Tayra, Ipy ser recolhido das lojas poucas horas após ser lançado. Imyra…, aliás, é do mesmo ano de 1976. E, assim como Marcos Valle, não possuía mais pretensões políticas (ao menos escancaradamente), mas sim uma nova forma de fazer música popular brasileira.

Em abril de 1976, o Flamengo inaugurava um estádio em Cuiabá. No primeiro jogo do estádio, o presidente Geisel — que era botafoguense — estava presente ao lado dos figurões do time rubro-negro.

No campo, talvez uma centena e meia de músicos (certamente uma banda militar) faziam a abertura. O hino nacional era cantado. Balões verde-e-amarelo eram lançados ao ar, inundando todo o gramado e balançando as redes antes mesmo de iniciar a partida. Uma faixa estendida mentia: “Brasil, 12 anos de paz e tranquilidade”.

(Duas coisas semelhantes: na falta de qualquer coisa que traga orgulho nacional aos pobres, o Futebol e o Samba são sempre a carta na manga dos poderosos. Foi assim com Getúlio Vargas, que, no Estado Novo, se intrometeu tanto no futebol, como no Mundo do Samba — com prisões de sambistas, censuras e desmandos nas escolas de samba. Foi assim com o regime militar, que valeu-se tanto da Copa de 70, como da Bossa Nova — na disputa com o Samba autenticamente Popular, que já se alçava a maior gênero com Samba Canção, Samba de Breque, etc., os gorilas instrumentalizariam a pequena burguesia, que descobriria o Samba através da universidade, forjando um samba falso.)

Dizia eu que “Previsão” era enigmático. A primeira música me é cara por falar do maior e mais querido time do mundo, o Flamengo. Esta canção poderia fazer sentido em qualquer momento histórico do Brasil. A canção, na verdade, desfia deboches, é irônica e ácida. É impossível afirmar que ela é uma crítica contundente. Também que se filia àquela tradição dos cancioneiros populares politizados. Mas… Vejamos:

Parece que finalmente resolvemos o dilema

Darío e Durval jogando juntos sem problema

Pedro, Gabigol e Bruno Henrique juntos… O que Sampaoli tinha na cabeça quando resolveu escalar estes três pela primeira vez justamente na final da Copa do Brasil? Não deu certo… Mas se desse… Ah! Os flamenguistas estariam, hoje, deliciados, e não mordidos, por um xará do Valle.

Eu como um prato a menos, trabalho um dia a mais

E junto um trocadinho pra ver o meu Flamengo

Que sorte eu ter nascido no Brasil

Os ingressos pra essa peleja (uma das piores que eu já vi em mais de 20 anos de estádio, diga-se de passagem) estavam, para um mero mortal que não é “sócio-torcedor”, custando R$ 1.000. A arrecadação passou de R$ 26 milhões. A diretoria não foi poupada…

Até o presidente é Flamengo até morrer

E olha que ele é o presidente do país

Rogério na direita, Paulinho na esquerda

Darío no comando e Fio na reserva

E o resto a gente sabe mais não diz

Nascido nos anos 90, eu mesmo não sei se, de fato, os problemas foram resolvidos com Dario e Durval jogando juntos sem problemas. Mas duas coisas de fato não mudaram: os ingressos caros que o trabalhador não consegue comprar (mesmo “comendo um prato a menos” e “trabalhando um dia a mais”) e um oportunista na presidência querendo surfar na simpatia do time mais popular do país.

(Para minha infelicidade, Lula comparou o Flamengo ao PT, afirmando que “quem não é a favor, é contra”. Mais triste que sofrer na mão de dirigentes esportivos vendidos que tão querendo vender o time pra qualquer gringo safado e ofendem o maior patrimônio de um clube, que é sua torcida, talvez seja ver seu time ser comparado com um governo que tá no colo da Fiesp e também ta querendo vender o Brasil pra algum gringo safado.)

De qualquer jeito, Marcos Valle chancela que: o resto a gente sabe mas não diz.

E o resto é pau, é pedra, águas de março ou de abril

Mas tudo agora é paz, nesse país, nesse Brasil

A gente já cresceu e é tempo de aprender

Que quem nasceu Flamengo é Flamengo até morrer

Talvez seja pura ironia mesmo.

Assim como ocorre com outros nichos de mercado, a música brasileira não encontra um mercado consumidor desenvolvido. É mais fácil exportar Petróleo como mais uma commoditie, tal qual foi com o ouro, o café e a cana-de-açúcar, do que tornar o País autossuficiente. Algo semelhante ocorre com a Música Brasileira. E assim foram ao estrangeiro: Marcos Valle, Edu Lobo, Trio Esperança. E quando o músico não vai para fora, cai no ostracismo e só é descoberto quando há algum gringo querendo relançar, remixar ou se alguém se presta a edita um lofi… Como Arthur Verocai ou Evinha.

Continua…

JPAFerreira
Enviado por JPAFerreira em 22/09/2023
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