PROFISSÃO CARRASCO

Nesta campanha eleitoral de 2010 existem alguns candidatos a deputado que prometem propor a pena de morte, caso eleitos. Evidentemente, isto é um delírio, assim como são delírios tantas outras promessas de candidatos. Felizmente existe uma sábia cláusula pétrea em nossa constituição, que impede o retorno ao obscurantismo da pena de morte. A Comunidade Europeia, no continente europeu da filosofia iluminada, não admite países como membros, enquanto não retirarem de suas constituições condenações capitais. Em toda a Europa, hoje, as guilhotinas, as forcas históricas, os garrotes vis foram deslocados para os museus. Por isto, demonstra atraso humanitário quem hoje pensa em resolver a bandidagem, eliminando radicalmente os marginais. Os séculos históricos da civilização ocidental já demonstraram que a violência da pena de morte não resolve a violência e demais crimes da humanidade.

Mas, imaginemos o que significaria a introdução da pena de morte no Brasil. Esta pena, uma vez aprovada, exigiria, naturalmente, uma detalhada regulamentação. Imagino que teríamos, então, longos debates no Congresso Nacional tratando da matéria. Os debates polêmicos iniciais, certamente, se preocupariam com as formas de execução dos sentenciados. E os discursos dos parlamentares argumentariam com a História para encontrar a forma de execução mais adequada à cultura do povo brasileiro. Evidentemente, o princípio democrático exigiria que também nisto fosse respeitado o desejo e o sentimento da maioria do povo. E isto evocaria uma grande dificuldade, por causa de nossa cultura eclética. Por isto, o debate dos representantes do povo deveria ser bem exaustivo, e exigiria tempo. Talvez, até, uma convocação extraordinária do Congresso Nacional, em período de férias. O que seria caro. Mas os custos de uma tal convocação não deveriam assustar a ninguém, pois estaria em jogo uma questão democrática, com o devido retorno para sociedade. E quando se trata de benefícios para a sociedade, os custos devem ser absorvidos sem questionamentos, mesmo quando há recurso a mensalões.

Imagino algumas considerações que fariam os nobres parlamentares. Alguns argumentariam que a pena de morte deveria ser aplicada sem moleza. Nada de mordomias e banquetes fúnebres, à moda medieval, para os sentenciados. O condenado fez sofrer, por isto também deve sofrer até o fim. Uma das características dos candidatos a carrasco, por este motivo, deveria ser a tara do sadismo. Outros argumentariam que os povos civilizados, nos tempos históricos, humanizaram sucessivamente as formas de execução dos sentenciados à morte. Os concursos públicos para a profissão de carrasco deveriam exigir que os candidatos fossem pessoas bem educadas, pois, na hora do exercício profissional, estariam agindo como representantes da vontade geral do povo brasileiro. De forma alguma nos deveriam envergonhar como cidadãos de um país civilizado. Nada de demorar na execução da sentença, esperando pela presença de alguma autoridade em atraso. Antes da execução o carrasco, ritualmente e de forma gentil, deveria pedir perdão aos sentenciados, desejando-lhes boa viagem em nome da Justiça.

Mas, antes de entrar na ética profissional dos carrascos, e de quem poderia se candidatar a exercer tal profissão, seria necessário um outro debate, mais longo e básico, sobre as formas de execução que o Brasil deveria adotar. Quando os parlamentares fossem votar esta matéria, no meu entender, deveriam fazê-lo nominalmente, e com declaração de voto ao microfone. Pois os eleitores têm direito de conhecer melhor os seus representantes, se são a favor de mordomias e moleza na execução, ou se são machos, capazes de exigir que bandido que cometeu crueldade deve morrer de forma cruel. Quem torturou, que seja torturado também!

As brigas pela forma da sentença capital, certamente, seriam acirradas. Estariam em jogo muitos interesses, e poderosos lobbies exerceriam pressão sobre os parlamentares. Os interesses internacionais não seriam apenas de ordem econômica, mas também de prestígio cultural. Existem países que acumularam vasta experiência em questões de sentenças capitais. Imagino que países árabes fariam pressão para que as execuções brasileiras fossem por decapitação ou apedrejamento. Assim poderiam exportar sabres para o Brasil, e fazer sugestão quanto ao tamanho, mais eficaz e humanitário, das pedras a serem utilizadas pelos cidadãos apedrejadores; os franceses alimentariam esperanças de bons negócios com a exportação de guilhotinas; os ingleses poderiam encontrar mercado com as suas forcas, modelo Torre de Londres; os americanos, provavelmente, alertariam que suas patentes dos “corredores da morte”, das cadeiras elétricas, das substâncias letais injetáveis, etc. fossem respeitadas – caso o Brasil adotasse estes métodos de execução, os devidos royalties deveriam ser pagos; os espanhóis lembrariam o garrote vil; Cuba explicaria a vantagem do paredón; algum nazista remanescente, certamente, proporia as câmaras de gás; os russos nos poderiam ensinar sua ampla experiência com o clássico tiro na nuca; os chineses aconselhariam o tiro no ouvido; os militares argentinos da repressão, mais românticos, aconselhariam, talvez, uma poética viagem para o alto mar, a bordo de um mirage, e um salto das alturas. E por que não introduzir a pena de morte por afogamento? Até o Evangelho diz que é melhor amarrar uma mó (pedra de moinho!) ao pescoço de quem provocar escândalo, jogando-o ao fundo do mar. E as fogueiras da inquisição não seriam uma boa solução? A história antiga relata que os assírios executavam os seus inimigos empalando-os, isto é, espetando um toco agudo no ânus do condenado, e elevando-o da terra; os romanos humanizaram esta pena, concedendo ao condenado a morte na cruz. À moda antiga, a execução também poderia ser mais ecológica, jogando o sentenciado à cova dos leões, ou dos jaguares; Sócrates fechou os olhos suavemente depois que o carrasco lhe trouxera a cicuta; Sêneca se deitou numa banheira com água morna e, por conselho de Nero, cortou os pulsos, morrendo quase sem dor. Mas, para que recorrermos a outros povos e a outros tempos? Também na cultura brasileira há experiências de sentenças capitais: Tiradentes foi enforcado e esquartejado; Frei Caneca, fuzilado; Lampião mandava o cabra correr, ou subir numa árvore somente para ver a careta que fazia ao morrer com um tiro de bacamarte; as sentenças saídas dos porões da repressão de nossa última ditadura mandavam fuzilar, enforcar, torturar até a morte em pau-de-arara, por choques elétricos, por afogamento em vasos sanitários repletos de excrementos, e outros métodos. Mas será que o método mais adequado à nossa cultura não seria ainda o “pingo d’água”, antigamente tão eficaz entre os indígenas?

Como se vê, a instituição e a regulamentação da pena de morte, desejadas alopradamente por alguns candidatos a deputados, exigiriam longos debates no Congresso Nacional. Felizmente isto dificilmente acontecerá, pois as cláusulas pétreas de nossa atual Constituição impedem a proposta de projetos com esta matéria. Mas, num país como o nosso, em que o Presidente, no Dia da Posse, jura observar a Constituição e, no dia seguinte, não a observa e propõe todo tipo de reformas, é possível que cláusulas pétreas, a qualquer momento, sejam despetrificadas pelos representantes do povo. E, se assim acontecer, além da definição sobre as formas de execução da pena de morte, outros detalhes deverão ser discutidos exaustivamente. Dificilmente as lideranças chegariam a um acordo. E, eventualmente, proporiam um plebiscito. Por que, então, não propor a guilhotina ou a forca? Com estes métodos até se poderia possibilitar ao executado uma reabilitação humanitária depois da morte, pois os seus órgãos permaneceriam praticamente intactos e poderiam ser aproveitados para transplante. Assim o homicida, tendo matado em vida, com sua morte salvaria vidas. E tantos necessitam de órgãos para transplante! Não seria uma boa idéia?

Bem. É melhor parar por aqui. A questão está ficando confusa e macabra. E alguém já poderia desconfiar que estou ironizando. Será que programas de educação, políticas de inclusão e de justiça social não nos privariam de discussões que, em vez de solucionar os problemas do Brasil, mais servem para estimular a satisfação de instintos sádicos latentes?

Inácio Strieder é Professor de Filosofia - Recife/PE