As garradas de guaraná

AS GARRAFAS DE GUARANÁ

Na semana passada os noticiários da televisão mostraram imagens de um caminhão que virou no rodoanel de São Paulo, acidente que deixou toda a carga, mais de mil garrafas pet de guaraná, atirada na pista.

O que se viu em seguida do sinistro, que felizmente não teve vítimas, foi o povo da vizinhança, uma populosa favela paulistana, saqueando a carga. No princípio eram apenas crianças sorvendo o gostoso líquido, mesmo sem gelo, das garrafas de dois litros. Em seguida, o saque se avolumou, com uma ponderável quantidade de pessoas avançando sobre o indefeso espólio.

Já não eram apenas crianças bebendo o refrigerante, mas adultos carregando dezenas de garrafas, em sacolas e caixas, para depois levarem os guaranás nos fardos plásticos. Em poucos minutos a carga sumiu; só ficaram embalagens no chão. Quando a polícia chegou não havia nem sombra dos artigos nem dos infratores.

O curioso é que as pessoas que avançaram nas garrafas de guaraná, deslumbradas pela quantidade disponível de refrigerante, não se limitavam a bebê-lo, mas faziam “guerra”, molhando os outros e até derramavam sobre a própria cabeça. O evento apareceu na Internet e um amigo deu ênfase àquelas conhecidas sinistroses das elites, do tipo “é coisa típica de brasileiro!”, como se em outros países, ditos desenvolvidos não acontecessem fatos semelhantes. Eu respondi ao amigo – e ele não apreciou muito a minha manifestação – que o povão estava no direito de fazer aquele tipo de saque.

O povo brasileiro sofre agressões, saques e achaques de toda ordem, vindos das mais variadas fontes, sem poder reclamar, sem boca para protestar e sem um palanque para manifestar sua indignação. O ataque do poviléu é um ato de desagravo contra a ferocidade dos bancos que só lucram e não remuneram seu pessoal, a justiça que prova que nem todos são iguais perante a lei, o hospital que não atende como devia, o médico que cobra um plus pela cirurgia, os impostos que são imorais e avançam no nosso bolso, o político que se vende e corrompe, as empreiteiras que fazem negócios espúrios, o Congresso que vota contra o povo, as vorazes mensalidades escolares, os patrões que exploram e a elite dá voz aos ricos e bem nascidos, rejeitando a pobreza e condenando os movimentos de organização popular.

São essas elites que avançam na doçura do nosso guaraná diário, e depois condenam quem pega meia-dúzia de garrafas pet que estavam dando sopa.

Eu sei que isto não é ético. Eu e talvez você que me lê, sejamos éticos. Nessa crise, algumas garrafas de guaraná não é que vai fazer a diferença. E cabe perguntar, quem no Brasil de hoje tem ética?

Filósofo, Escritor e Doutor em Teologia Moral