A Igreja e o problema fundiário

A IGREJA E O PROBLEMA FUNDIÁRIO NO BRASIL

Antônio Mesquita Galvão

A terra não deve ser objeto de negócios,

mas pertencer a todos os que nela desejam trabalhar,

pois é dom de Deus (João Paulo II, Recife 1979)

As questões de terra são tão antigas quanto o êxodo do povo escolhido, do Egito para Canaã, um movimento migratório seguido de tomada de terra que o-correu no século XIII a.C. Toda a Palestina era habitada. Havia povo, infiel, mas povo, morando lá... A tradição mostra que Deus fez uma “reforma”, tirando a-quela terra dos antigos proprietários, que não a utilizavam de acordo com o pro-jeto divino, dando-a a um povo escolhido, capaz de trabalhar conforme o desejo de Deus.

De lá para cá, a história está cheia dessas “reformas”, umas pacíficas, ou-tras cooptativas, muitas violentas. No Brasil, três episódios próximos, Mucker e Canudos (século XIX) e Contestado (séc. XX) revelam, por detrás da luta do po-der oficial contra a influência dos beatos, uma cobiça surda por terras, até então ociosas, cultivadas pelos “vagabundos”, liderados por Jacobina, Conselheiro e João Maria, respectivamente.

Os neoliberais de hoje, muitos que se apresentam como “cristãos de cartei-rinha” ou pertencentes a esses “movimentos leigos”, tacham a reforma agrária e a mudança de políticas fundiárias de marxismo, subversão, baderna e outros encômios. Até prelados da minha Igreja, infelizmente, pensam e falam assim. Falar em “reforma agrária” em certos ambientes celestiais é cometer heresia. Em fins de 97, a Igreja, através do Pontifício Conselho “Justiça e Paz” lançou um do-cumento, “Para uma melhor distribuição da Terra - O desafio da Reforma Agrá-ria”, que em alguns círculos da elite se tornou letra morta.

O documento até estaria a merecer um estudo mais aprofundado, tama-nha a sua riqueza, da qual respiguei alguns textos: “O modelo de desenvolvi-mento das sociedades industrializadas é capaz de produzir enorme quantidade de riquezas, mas evidencia graves insuficiências quando se trata de redistribuir os frutos e favorecer o crescimento das áreas menos desenvolvidas”

Um dos erros principais foi imaginar que a reforma agrária consiste essen-cialmente na simples repartição e atribuição da terra. E este é o grande erro do Brasil. Há mais de vinte anos, os governos acham que assentar – sem dar as es-truturas devidas – é fazer reforma agrária.

Os governos não se preocuparam suficientemente em dotar as zonas de re-forma com as infra-estruturas e os serviços sociais necessários. Os pequenos agricultores, obrigados a se endividarem, muitas vezes têm de vender seus direi-tos e abandonar a atividade agrícola. Outras duas realidades, enfim, concorrem para desestabilizar sensivelmente o processo de reforma: uma deplorável série de formas de corrupção, servilismo político e conluio que levou a conceder exten-sões enormes de terra aos membros dos grupos dirigentes, e a presença de inte-resses estrangeiros significativos, preocupados com as conseqüências de uma reforma para suas atividades econômicas.

O documento volta a insistir na utilidade social, na hipoteca que existe em toda a propriedade privada: O processo de concentração da terra é julgado um escândalo porque em nítido contraste com a vontade e o desígnio salvífico de Deus, enquanto nega à grande parte da humanidade, o benefício dos frutos da terra. Muitas dessas idéias já haviam sido ditas por teólogos, sociólogos e estu-diosos, e repetidas em meu livro “Terra, dom de Deus” (Ed. Paulinas, 1994). Por fim, há um fecho revelador:

Uma estrutura agrícola caracterizada pela apropriação indébita ou

pela concen-tração de terra no latifúndio prejudica gravemente o

desenvolvimento econômico de um país. Essa concentração, a

longo prazo é causa de pobreza e de estragos que tendem a

perpetuar-se, agravando-se.

Esse não é mais o discurso das “esquerdas marxistas”, mas um desabafo baseado na novidade do evangelho. Na vida humana, muitas vezes, somos leva-dos, como o antigo povo da Palestina, a ver as coisas superficiais, sem notar o essencial. Uma nação que fecha os olhos para a concentração de terras, para a má distribuição de renda e pelo abandono dos agricultores, com e sem-terra, merece todos os percalços sociais que acontecem. Os culpados não são os inva-sores, mas os omissos do Governo, da Sociedade e das Igrejas.

Pouco enxergaram o profeta João Batista – assim como não tem olhos pa-ra os profetas de hoje – e tudo de bom que ele trazia em sua bagagem de denún-cias. As pessoas, em geral, não gostam de denúncias; preferem a concordância. É mais cômodo; desinstala menos. A história bíblica nos revela, por mais para-doxal que possa parecer, que Herodes é o preso e João Batista o homem que go-za de liberdade absoluta. A razão é porque um, embora no cárcere, está na graça de Deus enquanto o outro chafurda em seu pecado, a despeito de morar em pa-lácios e vestir roupas finas.

Jesus envia a João Batista um recado, como uma mensagem em código: “Os cegos enxergam, os coxos andam, os leprosos são purificados, os surdos ou-vem, os mortos ressuscitam e aos pobres e anunciada a boa notícia”. Estes si-nais evidenciam que os tempos do Messias começam a se fazer presentes. O ca-niço e o profeta representam extremos de uma linha de juízos. O caniço agitado pelo vento é o símbolo do homem fraco, que vive de modas, conforme o foro de sua cabeça, sem capacidade de enxergar. O profeta é o autêntico homem de Deus, que não tem medo, que anuncia e denuncia, e não faz questão de posar de bonzinho.

Há um versículo que é o tropeço dos não-iniciados: “Desde os dias de João Batista até agora, o Reino do céu sofre violência, e são os violentos que procu-ram tomá-lo”. Há quem afirme referir-se à violência que o Reino sofre por tentar modificar as estruturas. As correntes mais credenciadas referem-se à violência da conversão e da mudança de atitudes.

Só obtêm o Reino os “violentos”, ou seja, aqueles que praticam contra si mesmo a suprema violência da opção pelo Reino ao invés das fábulas do mundo. O evangelho ora em reflexão retrata as d6uas teses: o homem-caniço, agitado pelo vento, volúvel à moda e às tendências, e o homem-profeta, testemunha au-têntica. A conversão, a opção pelos fracos e a mudança das idéias, tudo pode ser visto como violência. No bom sentido, é claro!

A Bíblia lembra que se deve aceitar os sofrimentos e confiar em Deus. Mais adiante, e os evangelhos no-lo revelam, Jesus Cristo responde desta forma na cruz. Ele aceita o sofrimento, mergulhando no mais profundo do mistério, sabe-dor que lá adiante está o projeto do Pai. Só a causa do sofrimento do inocente, daquele que não concorreu em nada para o efeito danoso, que fica, muitas vezes, sem uma resposta que satisfaça.

Que não se diga, em momento algum, que esse ou aquele evento foi “von-tade de Deus”. Seria a associação de uma blasfêmia com uma heresia. Deus quer o homem feliz. Para isto ele nos deu seu Filho (cf. Jo 3,16). O que, volta-e-meia, foge à compreensão é a questão em que, sendo Deus Todo-Poderoso e ci-ente de tudo, por que ele não impede certos males? Teria o mal sua origem na liberdade? Nem sempre... Será que o sem-terra, o que não tem casa para morar, o endividado estão assim porque Deus quis?

Mesmo que sejamos pessoas de fé, nosso lado filósofo às vezes nos faz pensar. Não se trata de acusar Deus, mas como humanos, colecionamos, com coragem, questões, próprias ou escutadas da boca de terceiros, em geral pessoas inocentes, assoladas pelas tragédias do cotidiano. Às vezes caímos na heresia de questionar Deus sobre o sucesso dos opressores e a desgraça dos oprimidos.

A grande verdade é que o ser humano nunca esteve convenientemente preparado para esse (re)conhecimento. As religiões, as filosofias ou os sistemas de pensamento tentam há séculos mostrar caminhos, colocar limites e impor padrões, nem sempre com a eficácia esperada.

A progressiva escalada do mal, em todos os segmentos da sociedade humana atesta a assertiva. Seduzido pela riqueza e pelo poder o homem de hoje – e aí se perfilam muitos cristãos – busca sua satisfação em termos materiais e de vaidade, esquecendo-se a acolher e de-fender os que sofrem e estão excluídos.

Pela lei moral, a pessoa sabe que nem tudo o que fisicamente pode fazer, eticamente deve ser feito. Os preceitos que integram a lei moral estão contidos: a) na Lei Eterna; b) na Lei Natural; c) na Lei Positiva; d) nas leis humanas. Lei, diz Santo Tomás, na Suma Teológica, é a ordenação da razão dirigida ao bem comum, promulgada por quem tem autoridade.

A lei eterna é “uma ordenação ética pensada e projetada por Deus desde toda a eternidade”. Já lei natural é a própria lei eterna enquanto participada na criatura racional. Dotado de inteligência, o homem é orientado por essa norma natural gravada por Deus em seu coração. Deus não se contentou em gravar sua lei no coração humano, mas decidiu, através de ensinamentos aos patriarcas, aos profetas, de mandamentos, e pelas Escrituras, tornar Positiva essa lei, isto é, uma lei comunicada ao homem por meio de uma revelação divina.

Este assunto, não se trata de filosofia, mas sim de teologia moral, pois en-cerra em si a comunicação recíproca entre Deus e o homem. As leis humanas, são aquelas ditadas por autoridades legislativas, civis ou eclesiásticas, igual-mente em ordem ao bem comum. Para uma boa acolhida das leis eterna, natural e positiva, é indispensável que o ser tenha liberdade de consciência. Deste modo, toda a atitude humana fica sujeita ao juízo da consciência, antes porém, ilumi-nada pela lei moral, que avaliará o suporte ético da conduta.

Hoje, estímulos dos mais variados, conseguem manipular a consciência, levando à absolvição de atitudes, sob as mais diversas excludentes, ao arrepio da lei moral. “Agir na dúvida – já diziam os antigos teólogos moralistas – é peca-do!”. Assim como violar uma lei humana, caracteriza um delito, ir contra a lei eterna ou natural, é um pecattu, isto é, um delito.

Os “pecados que bradam aos céus”, sancionados na teologia moral, se-gundo os clássicos, e com fulcro nas Escrituras, são: o homicídio (e aí se inclui o aborto), a sodomia, a opressão dos fracos e a retenção do salário dos operários. São aqueles cuja influência nefasta na ordem social reclama providências do Al-to.

O problema da terra, a ganância do latifúndio, a corrupção da justiça, a omissão da mídia e a inércia dos governos, tudo configura um pecado contra o humilde, o despossuído, o que sofre, e como tal está clamando, a exigir “provi-dências do Alto”. É lamentável observar que a Igreja no Brasil, historicamente, sempre foi omissa com relação aos problemas da terra. No terreno da sociopolíti-ca também revolta ver que um país como Brasil, com a quantidade de terra dis-ponível, ainda não tem uma política agrária desde as “capitanias hereditárias”.

A natureza nos revela que a seiva é a vida da árvore, escondida dentro da solidez de seu tronco. Assim também o amor é a força, a energia e o dinamismo que movimenta a vida humana, dando-lhe sentido e proporcionando que emir-jam daí os valores mais preciosos para o ser, a sociedade e a natureza humana. Como o fruto contém a semente de uma nova árvore, o amor traz consigo o ger-me de uma vida nova. Trata-se de um germe de transformação.

O autor é Escritor, Filósofo e Doutor em Teologia Moral