Uma nova forma de ativismo?

Disse um dia Paulo Francis que se o brasileiro se importasse com política dez por cento do que liga para futebol, teríamos um país diferente e melhor. Claro que ele não foi o único a falar esse tipo de coisa. Todos um dia disseram ou ouviram algo assim, que se o amor ao futebol migrasse para política, estaríamos noutro patamar.

O que poucos imaginavam era um dia ver isso acontecendo, ver centenas, milhares, milhões de pessoas em diferentes partes da nação se mobilizando em prol de questões civis no momento em que o país da bola sedia um torneio da magnitude da Copa das Confederações, e isso em tempos que boa parte dos brasileiros via passeata como um gesto infrutífero, abafado pela individualidade e pelo descaso da mídia.

Mas a revolução digital não nos cansa de aprontar. O mundo do intercâmbio instantâneo é uma caixinha de surpresas, quase sempre frívolas, é verdade. Imediatistas, emburrecedoras, ao ponto de vermos tablets, smartphones, micro-câmeras e computadores como símbolos de um mundo narcisista e indiferente, e não como ferramentas para causas nobres. Pois bem. A exemplo do que ocorreu na Europa, Oriente Médio, Estados Unidos e, recentemente, Turquia, a maré mudou de lado. Redes sociais emprestaram sua comunicação e velocidade para multiplicar o poder mobilizador dos protestos. Neste mês, dias após o aumento nacional das passagens em vinte centavos, o Movimento Passe Livre (MPL), fundado há dez anos, e que conta hoje com núcleos em diversas capitais do Brasil, iniciou manifestações em diferentes estados, como fizera em anos anteriores. Dessa vez, no entanto, elas cresceram de foram surpreendente, simultânea, viral, o que intensificou a visibilidade das excessos da polícia, atraindo simpatia e adesão de milhares fora do MPL. A mídia, como sempre, quis tratar tudo como vandalismo, mas o poder da net não deixou que fait divers sufocassem os fatos. Entre esconder e explorar, a imprensa ficou com a alternativa mais segura e lucrativa.

Então, colegas, nos vemos diante de um momento inédito, histórico e, por enquanto, imprevisível. Se o parentesco com as mobilizações dos anos 60, com as "Diretas Já" e o "Fora Collor" é inegável, diferenças profundas também o são. Não há centros de poder dessa vez. Partidos ficaram em segundo plano. O movimento não pertence a uma entidade e não possui líderes no sentido convencional do termo. É do povo, ou melhor, do cidadão. Sim, há conselhos e figuras representativas como o professor de história Lucas Monteiro de Oliveira em São Paulo, mas nenhuma delas responde integralmente pelo MPL e tampouco imaginou vê-lo ganhando atenção no país a ponto de virar algo novo e maior. Vinte centavos e o transporte viraram estopim, não causa única. Fala-se agora em PEC 37, saúde, Copa do Mundo e educação. Virou o "gota d´água", o "Acorda Brasil". Jovens, jovens e mais jovens, precursores e multiplicadores da iniciativa, perceberam que não são impotentes, que podem fazer o país parar para ouvi-los e apoiá-los. O Brasil cordial entendeu que "não precisa ser assim" e que o coma pode ser interrompido se, de fato, quisermos. Cá estamos, pois, em meio a uma profusão de passeatas como não se via há quase meio século e uma mobilização digital que suspendeu parte de sua banalidade em nome de uma causa. Jingles e imagens de anúncios são reapropriados e reciclados em prol desse clamor num show de civismo e criatividade. Quando que o cantor Falcão imaginou ver seu tema da Fiat para a copa transformado em hino de um movimento? E o Gigante da Johnny Walker, "acordando" para reivindicar? É irônico ver as armas da indiferença do capital trabalhando para desconstruí-la. O próprio Facebook... Quando que Mr. Zuckerberg, Yuppie modelo do Silicon Valley, imaginaria ver seu brinquedo de milhões a serviço de direitos mundo afora? Teria ele um dia idealizado, sido movido por isso, se imaginado nesse papel? Duvido. Talvez nem agora, ciente do que ajuda a fazer, se importe. Em breve aparecerá tirando foto em apoio aos brasileiros com aquele sorrisão forçado e depois "voltemos aos negócios porque filantropia é com o tio Bill". Irônico sim, caros leitores, deliciosamente irônico. Público, mídia, governantes, formadores de opinião, todo mundo ainda tenta entender e sintonizar uma frequência em relação ao que ocorre. Há empolgação no ar, há medo, uma luz tremula no fim do túnel e um ponto de interrogação flutua sobre nossos cocurutos.

Fala-se em tudo, desde Pizza até a volta da ditadura. O movimento se diz pacífico e, de fato, é pacífico em suas intenções hegemônicas, como constatei na marcha que levou 100 mil (creio que mais até) da Candelária à Cinelândia, centro do Rio, parecendo uma reedição do movimento "cara-pintadas", com direito a coreografia, papel picado e um clima Woodstock ao qual toda geração deveria ter direito. O lado ruim é que quando se reúne milhares de jovens num mesmo lugar, vindos de diferentes procedências com diferentes objetivos, riscos são inevitáveis. Pequenos grupos infiltrados tentam manchar a imagem do movimento. Saqueiam, depredam, picham... talvez por pensar que mudanças demandem destruição, talvez para tirar vantagem do contexto. A verdade é que "acordar o Brasil" também significa suspender a lei de cordialidade que nos torna mansos e subservientes. O rancor da vida urbana e das valas sociais eclodirá para algum lugar de algum modo. Dissidências ideológicas, não só as político-partidárias, mas religiosas e habituais, podem sim desembocar em confrontos, verbais, físicos, como vemos em nações ditas civilizadas. Por enquanto, o movimento segue meio desfocado em uma direção. Amanhã, pode seguir em várias, o que não necessariamente significa caos, mas cidadãos acordados, que é o que uma verdadeira democracia exige. E nossas roupas sujas precisam ser lavadas. Nossa polícia precisa aprender a lidar com esses fenômenos; nossos representantes, nossa estrutura política falida devem se adaptar a uma sociedade plural, viva, dinâmica e menos refém de interesses privados.

Mas não, o ponto de interrogação não sumirá tão cedo. A faca da net é matreira. Memes crescem e morrem. Na ausência de líderes contundentes, na era dos modismos e em meio a brados como "abaixo a corrupção" e "fora Dilma", tudo pode acabar num carnaval ou numa volta às origens. Há euforia de sobra, jovens repletos de vontade que carecem de politização, que precisam se aprofundar nos mecanismos democráticos, porque mudar o país não é só ir às ruas (como também não é só ir às urnas), e que precisam ser bem representados na mesa de entendimentos. O movimento tem núcleos, como já foi dito, conselhos deliberativos em grandes capitais. Já triunfa em questões matriciais como o aumento da passagem, revogado em vários estados, e pode ir muito, muito além. Os meios estão aí. Não somos impotentes. Temos uma arma poderosa que permite ao cidadão brigar com os donos do poder. A pergunta é: E depois, quando a euforia passar, ao retomarmos nossas rotinas, estaremos assim tão dispostos a dar os próximos passos ou tudo não terá sido um modismo, uma micareta, uma moda da estação, com os velhos ativistas de sempre e os donos do poder rindo de nossa ingenuidade que pensou que mudaria o país? Daqui a 5, 10, 20 anos, quando esses jovens e todos nós lembrarmos do "Acorda Brasil", como o veremos? Saudades de um sonho bom ou orgulho do dever cumprido?