Cidadão ou contribuinte?

A Constituição Federal de 1988 consagra o princípio da cidadania. O indivíduo, após a concepção, por inclusão na raça humana, goza da proteção da sociedade e do Estado. Independente de qualquer determinante de ordem subjetiva ou prática, o indivíduo converte-se em cidadão a partir da concepção e atrai para si todos os diretos atinentes à dignidade humana, criminalizando atitudes que degradam essa humanização e opondo-se automaticamente à exploração, à violência e ao descaso.

Desde então, aqui e ali esse princípio vem sendo contestado. Sempre sob argumentos economicistas, a proteção à cidadania vem sendo denunciada por ser muito onerosa, um peso para o contribuinte, que passa a ser visto como vítima de uma extorsão cuja finalidade é alimentar “um bando de parasitas”.

O discurso do contribuinte, que se opõe ao do cidadão, amplamente divulgado na mídia, incentivado por impostômetros e outros mensuradores, preconiza a valorização do indivíduo por sua produtividade formal e não por sua especificidade. Sempre caracterizado com vítima de um sistema que canaliza o melhor de si para custear benesses sociais injustificáveis e um Estado ineficiente dominado por salteadores de toda a ordem, o contribuinte seria um cavalo que arrasta pesada carroça.

Óbvio que o discurso não parte do vazio, que existem inúmeras anomalias em programas sociais importantes, como o cadastro “frouxo” do Bolsa Família, que comprovadamente beneficia um número muito grande de indivíduos oportunistas, que não deveriam fazer parte do programa; que existem mesmo salteadores dominando amplos setores da administração pública, como aliás sempre ocorreu no país; que processos obsoletos, manchados pela burocracia, corrupção e preguiça, ainda predominam na prática cotidiana das instituições públicas. Esses elementos do discurso servem, entretanto, apenas para construir a superfície do debate. Nas camadas mais profundas é que vamos encontrar as motivações reais para a contestação do cidadão constitucional e sua conseqüente substituição pelo conceito acabado de contribuinte.

O primeiro ponto importante a ser considerado no conceito de contribuinte, é que por si só já possui caráter excludente, opondo contribuinte a não-contribuinte. Essa abordagem formal encerra por sua vez um juízo de valor, notadamente maniqueísta, uma vez que opõe uma parcela produtiva, útil, a uma improdutiva, inútil. Logo, há uma parcela que produz e gera impostos “extorsivos” para sustentar uma outra parcela de parasitas, que mamam nas tetas gordas do Estado as custas do sangue, suor e lágrimas dos primeiros.

Outro ponto relevante é que o próprio contribuinte pode ser categorizado, de acordo com a sua “capacidade produtiva”. Grandes contribuintes sempre podem utilizar sua capacidade de gerar empregos e impostos para barganhar com o Estado melhores contrapartidas na forma de financiamentos, formação de mão-de-obra e criação e infra-estrutura. Um exemplo clássico dessa capacidade é o do “Império X”, do empresário Eike Batista, que completamente desmoralizado pelo mercado, apega-se às benesses conseguidas junto ao Estado para sobreviver. O próprio contribuinte é, como se percebe, refém dessa categorização, uma vez que os médios e pequenos desfrutam de pouco poder de barganha e ficam de fora do “esquema”.

O centro da contestação ao princípio de cidadania que emana da CF, apesar dos argumentos de ordem econômica, está, portanto, no campo filosófico, na concepção de humanidade. Ao tomarmos os argumentos contestadores, teríamos que o Estado deve considerar o indivíduo pela sua capacidade produtiva formal, que intervenções sociais são mero populismo, incentivam o parasitismo e utilizam recursos de quem produz para quem não produz nada. Recentemente os defensores dessas idéias chegaram a propor o retorno do “ Voto Censitário” ao sistema político brasileiro, com a exclusão da base de eleitores daqueles que são beneficiários de programas sociais, notadamente do Bolsa Família. Em suma, tomar o cidadão pela sua humanidade como pressuposto para justificar o merecimento de direitos seria uma inversão de valores, uma apologia à preguiça e à estagnação, uma manobra alienante destinada a manter os beneficiários em eterna situação de dependência social e de dominação política.

Na camada mais profunda desse debate está então a velha questão do tamanho e do papel do Estado. A tradição histórica de “Estado Forte”, oriunda da experiência de séculos de regimes autoritários, curiosamente desponta agora como principal empecilho à dita modernização proposta pelos ideólogos do contribuinte, que não toleram a idéia de ver seus impostos “torrados” em programas que consideram assistencialistas, propiciando “boa vida” a indivíduos que imaginam não ter o mínimo de merecimento, uma vez que desconhecem completamente o conceito de humanidade impresso na Constituição. Essa ignorância humanista move os defensores do contribuinte na direção do ataque sistemático ao que chamam de “direitos absurdos”, tanto no campo ideológico, quanto na esfera política.

Conclusivamente, temos que se trava no Brasil uma intensa luta política e ideológica em torno da noção de intervenção social do Estado na sociedade. Está sob ataque o conceito constitucional de cidadania embasada no pressuposto de humanidade enquanto fato gerador de direito. Se esse ataque lograr êxito, é possível que o texto Constitucional consagre um princípio diverso, onde o indivíduo seja considerado na sua dimensão de contribuinte, passando o gerador de direitos a ser a produtividade formal. Na prática, a alteração significaria redesenhar o Estado brasileiro, diminuindo seu papel social, retirando da sociedade a obrigação de promover o bem-estar social e remetendo ao indivíduo isolado essa obrigação.