Plebiscito, Referendo e Iniciativa Popular

Plebiscito, Referendo e Iniciativa Popular

O parlamento é o órgão por excelência da representação popular. As propostas de plebiscito, referendo e iniciativa popular colocam em questão a legitimidade do parlamento para manter o monopólio da legislação.

O órgão legislativo deve ter legitimidade, isto é, desfrutar do respeito e da confiança do povo ao exercer sua autoridade de parlamento, como substituto legítimo do povo soberano.

Os mecanismos de democracia direta (plebiscito, referendo e iniciativa popular) servem de corretivo à democracia representativa, pois, dada a dinâmica da opinião pública e os novos meios de informação e de interação entre as pessoas, a representação política deixa de exprimir com total fidelidade a vontade popular por causa da multiplicidade de suas manifestações.

Dada a demanda por maior participação política e insatisfação crescente com a representação política, abrem-se dois caminhos: o aperfeiçoamento da representação tradicional (com uma reforma política) e o uso de mecanismos de correção para melhorar exprimir a soberania popular (plebiscito, referendo e iniciativa popular). Estes mecanismos de democracia direta incorporam-se aos direitos políticos já garantidos nas eleições para os cargos executivos e legislativos.

A reflexão sobre o uso dos mecanismos de democracia direta opõem duas correntes de pensamento, o confronto entre ideias liberais, democráticas e partipacionistas, de um lado, e ideias autoritárias, elitistas e corporativas, de outro lado. A falta de consolidação de instituições representativas estáveis e democráticas decorre da privatização do poder político – o estado patrimonialista e oligárquico, assim como o clientelismo e a cooptação política. A democracia como soberania popular deve superar uma visão de artificialismo das leis e de tutela do Estado sobre os indivíduos.

Os principais argumentos contrários aos mecanismos da democracia direta foram elencados em A Cidadania Ativa: Referendo, Plebiscito e Iniciativa Popular (Mesquita Benevides, 1991, pp. 46-47) e são os seguintes:

a) enfraquecimento dos partidos (“pilares da democracia”), das lideranças políticas e do próprio Parlamento, o que pode prejudicar o regime democrático;

b) o risco das “consultas plebiscitárias”, que levam à tirania pela manipulação do “apelo ao povo”;

c) a incapacidade do povo para atuar, com racionalidade e eficiência, no processo legislativo;

d) a provável supremacia dos grupos de pressão, dos segmentos mais organizados ou do poder econômico, na condução das campanhas eleitorais para referendo ou iniciativa popular.

e) a apatia do eleitorado, pressionado por tantos apelos de participação, ou, em sentido contrário, a criação do monstro leviatã, ou “cidadão total”;

f) a irracionalidade de procedimentos que, ao enfraquecerem as autoridades constituídas e diluírem as responsabilidades, implicam lentidão ou paralisia do processo de tomada de decisões e sua implementação.

Os principais argumentos favoráveis aos mecanismos da democracia direta foram elencados em A Cidadania Ativa: Referendo, Plebiscito e Iniciativa Popular (Mesquita Benevides, 1991, p. 47) e são os seguintes:

a) enfrentamento positivo das máquinas partidárias e das “lideranças cristalizadas”, combatendo as tendências à oligarquização e ao autoritarismo das elites;

b) processo permanente de educação para a cidadania; o povo torna-se co-responsável no destino da coisa pública;

c) desbloqueio do Legislativo, favorecendo medidas que, ou não interessam à maioria parlamentar, ou são consideradas temas de “impasse”;

d) dá-se ao povo o direito de decidir questões e problemas, para cuja solução ele se sente mais preparado e legitimado do que os representantes;

e) fortalecimento do regime democrático pelo processo constante de controle e cobrança dos atos emanados dos órgãos públicos (governo e Parlamento);

f) fonte de recuperação da legitimidade e/ou da estabilidade política, no caso de questões que podem dividir a sociedade;

g) forma de associação do cidadão à tarefa de transformação ou aperfeiçoamento do Direito (no caso da intervenção na esfera legislativa e constitucional);

h) criação e fortalecimento de novas lideranças políticas, fora das “oligarquias”;

i) instrumento para aferição da vontade popular, servindo para a expressão tanto de seus desagregados, quanto de suas aspirações; possibilidades de mobilização dos “apáticos”, das “maiorias silenciosas”.

Há vários argumentos históricos, principalmente na França, que comprovam o uso deturpado dos mecanismos de democracia direta: o “apelo ao povo”, no sentido totalitário, imperial, cesarista, demagógico; a chantagem com a ameaça do “caos”; ou seja, a falta de alternativas razoáveis para a solução submetida ao voto popular; a utilização da votação popular como “instrumento legal para o golpe de Estado”; a manipulação da adesão irracional, ou imposta, à pessoa do líder, do chefe, do ditador (Mesquita Benevides, 1991, p. 58).

Há vários argumentos históricos, principalmente na Suíça, que comprovam a importância do uso dos mecanismos de democracia direta: a independência do eleitor, frente aos partidos, nas questões em consulta popular do que nas eleições de candidatos; o sufrágio universal nas eleições não é suficiente para exprimir, com fidelidade, a vontade popular em todas as questões para as quais se impõe o reconhecimento da opinião pública; o referendo não é incompatível com a democracia representativa, nem com o papel dos partidos, pois é um complemento (Mesquita Benevides, 1991, p. 76).

Os mecanismos de democracia direta no Brasil

A Constituição brasileira de 1988 estabeleceu, em seu artigo 15, os mecanismos de democracia direta: o plebiscito, o referendo e a iniciativa popular. O plebiscito é uma votação na qual os eleitores decidem entre diferentes propostas sobre um tema, sendo que depois é elaborado um projeto de lei e este é aprovado. O referendo é uma votação na qual os eleitores aprovam ou rejeitam um projeto de lei já votado e este entra em vigor se for ratificado pelos eleitores.

A proposta de plebiscito deve ser apresentada por um deputado e conseguir a assinatura de 171 deputados. O texto deve ser aprovado pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) e pelo plenário. Se houver apoio de 1/3 dos líderes dos partidos, o projeto não precisa ser votado na CCJ e pode seguir direto para o plenário. Depois da aprovação na Câmara dos Deputados, o projeto segue o mesmo trâmite no Senado, onde passa por votação na CCJ e no plenário.

Depois da aprovação do projeto, a Justiça Eleitoral é convocada para organizar a consulta. Após a votação do plebiscito, tanto a Câmara dos Deputados como o Senado Federal devem transformar as escolhas dos eleitores em projeto de lei e Proposta de Emenda Constitucional (PEC). Qualquer alteração nas regras da eleição deve estar em vigor um ano antes da eleição, por causa do princípio da anualidade previsto na Constituição.

De acordo com a regulamentação do artigo 15 da Constituição feita pela lei 9709/1998: o referendo pode ser convocado no prazo de trinta dias, a contar da promulgação de lei ou adoção de medida administrativa, que se relacione de maneira direta com a consulta popular; a iniciativa popular consiste na apresentação de projeto de lei à Câmara dos Deputados, subscrito por, no mínimo, um por cento do eleitorado nacional, distribuído pelo menos por cinco Estados, com não menos de três décimos por cento dos eleitores de cada um deles. O projeto de lei de iniciativa popular deverá circunscrever-se a um só assunto.

A experiência de plebiscito e referendo no Brasil

Aconteceram várias crises políticas durante a vigência da Constituição de 1946, sendo que a última delas provocou o golpe de Estado em 1964. A crise política resultante da renúncia do presidente Jânio Quadros, em 1961, levou ao “veto” militar à posse do vice-presidente João Goulart que estava em visita à China. Houve um acordo para a posse dele com a condição da implantação do parlamentarismo. Tal condição, entretanto, previa a convocação de um referendo, nove meses antes do fim do mandato presidencial. Entretanto, a pressão popular por reformas infraconstitucionais e reformas constitucionais levou à antecipação do referendo para 06/01/1963. Nesta consulta popular, os eleitores não só votaram por devolver os poderes presidenciais para João Goulart como garantir eleições diretas para presidente. Os desdobramentos políticos e a crise econômica levaram ao golpe de Estado em 1964. As instituições democráticas não eram estáveis o suficiente para reformar-se ao ponto de evitar a ruptura e a implantação de uma nova Constituição em 1967. Os políticos e a mídia impressa não conseguiram controlar o processo político e a imprevisibilidade, pois as eleições tornaram-se indiretas para os cargos executivos como presidente e governador durante duas décadas. Em dezembro de 1968, o AI-5 decretou o fechamento total do regime.

Em 1993, houve a realização de uma consulta popular sobre forma de governo (Monarquia x República) e sistema de governo (Parlamentarismo x Presidencialismo). Sob o impacto do impeachment do presidente Fernando Collor em dezembro de 1992, os políticos e a mídia impressa e televisiva resolveram manter sob controle o processo político e a previsibilidade do resultado. O plebiscito estava marcado para 7 de setembro de 1993. Data do centenário da Revolta da Armada, comandada pelo almirante Saldanha da Gama, que pretendia restabelecer a monarquia no Brasil. Entretanto, não havia nenhum interesse em debater reforma política durante mais de metade de um ano. A antecipação do plebiscito para 21 de abril (dia de Tiradentes), que é uma data cívica e republicana de oposição à monarquia, serviu para garantir o resultado de vitória de República e Presidencialismo e impedir qualquer discussão sobre reforma política. Entre os meses de fevereiro e abril de 1993, a campanha de televisão pela ordem e pela estabilidade da República e do Presidencialismo (que eram conhecidos) mostrou-se mais eficiente do que as campanhas pela Monarquia (havia divisão entre os ramos de Petrópolis e Vassouras) e pelo Parlamentarismo (havia divisão interna sobre a reforma política necessária para implantação deste sistema de governo).

Houve ainda uma terceira consulta popular em 2005, esta não versou sobre temas políticos, mas sobre o desarmamento. O governo visava aumentar o controle sobre as armas, estimular o desarmamento da população, além de reduzir acidentes domésticos e mortes motivadas por impulsos. Entretanto, a maioria da população concordou com o lobby a favor das armas. É um direito ter armas por causa do aumento da violência e da insegurança pública. O governo não conseguiu controlar o resultado, mas continua fazendo suas campanhas de desarmamento. O porte de armas aumentou muito na última década assim como a existência de clubes de tiro em vários estados. Também houve aumento da violência e da insegurança pública no país.

Reforma política: plebiscito ou referendo?

As atuais propostas de reforma política foram abordadas em outro texto - 2014 e a Reforma Política - (ver texto no link: http://www.bookess.com/read/17019-2014-e-a-reforma-politica/). No Brasil, a convocação do plebiscito e autorização de referendo são prerrogativas do Congresso Nacional (Legislativo) e não do Presidente da República (Executivo). O envio de sugestões por parte do Executivo para o Legislativo colocou a reforma política na pauta do Congresso Nacional. Entretanto, as enormes divisões internas dentro dos partidos inviabiliza qualquer proposta coerente de reforma política. Não há interesse em convocação de plebiscito, pois os políticos não poderiam controlar o processo e estariam diante de uma imprevisibilidade que certamente contrariaria seus interesses políticos. Se houver autorização para referendo, a reforma política será tão consensual que provavelmente não provocará qualquer mudança significativa na relação entre os representantes e os representados. A pressão da sociedade por meio de iniciativa popular parece ser a única solução para forçar mudanças como foi a Lei da Ficha Limpa (uma das quatro leis de iniciativa popular que entraram em vigor no Brasil).