ELUCUBRAÇÕES SOBRE A ATUAL CRISE BRASILEIRA -I

O que já se escreveu sobre a atual crise política após o início do segundo mandato da Dilma talvez atinja um número de palavras maior do que o Antigo e o Novo Testamento juntos.

No entanto, poucos textos revelam um olhar mais abrangente da Crise, e descompromissado com as forças que se digladiam neste momento. Ambas estão certas e estão erradas, posto que, movidas por ressentimentos muito fortes, deixaram de ver o todo para ver apenas a parte que serve para realimentar o seu estado de espírito. Na hora das vacas magras as coisas tendem a isto mesmo: “Em casa que falta pão, todos brigam e todos têm razão”.

De alguma forma a atual crise tem aspectos comuns com o que ocorreu no Brasil no governo João Goulart – forte embate político e uma impressão de que a República está sendo arrastada por uma torrente incontrolável, passando para o povo uma ideia de fraqueza e vulnerabilidade do Governo. Naquela época, o golpe militar foi a solução do impasse político; hoje em dia, com o aumento da consciência democrática e a ausência dos militares no confronto, sabe-se que a solução, teoricamente, tem que ser institucional.

O Brasil continuará sangrando? Só Deus sabe. O que nos compete é exigir do Congresso que se alinhe na busca de soluções , dando ao Governo um mínimo de suporte para as questões cruciais, alimentando-o com opções de ação para aquilo que rechaçar, oferecendo alternativas e assegurando a governabilidade. É o óbvio, mas não quer dizer que seja factível. O mundo inteiro considera a guerra da Síria uma calamidade e é óbvio que a opinião pública do mundo inteiro quer que ela acabe. Mas não se consegue implementar o óbvio. Isto só acontecerá quando as diferentes partes em confronto se esgotarem e baixarem as armas. Um dia, entre mortos e feridos, e patrimônios destruídos, as perdas serão de tal ordem, que todos estarão prontos para negociar a paz. Guardadas as proporções - não estamos em guerra! – é o que talvez tenhamos que fazer. Mas quanto Tempo teremos que esperar?

Olhando para trás, buscando no histórico uma compreensão maior dos acontecimentos, vemos que todo o período que vem de Goulart para cá, ou seja, de 64 em diante, nada mais foi do que um capítulo da disputa que , vindo de Vargas, permanece até hoje. Disputa que, em profundidade, é o pano de fundo de tudo o que aconteceu e acontece em nossos dias. Que disputa é essa? A de sempre: a divisão do bolo da renda nacional. Este é o pano de fundo. A disputa entre os que alimentam a vigência de um modelo que realimenta a estratificação social e os que pretendem cruzar esta linha através de políticas de transferência de rendas ou outras mais revolucionárias. O resto , são episódios, mesmo que muito complexos e muito significativos e cheios de consequências. Basta salientarmos que aproximadamente 10% da população detém 60% da riqueza. Comparativamente, somos um dos países de maior desigualdade na distribuição da renda no mundo. Tamanha concentração leva a tensão social e política permanentes. E piora quando uma crise na área econômica diminui o tamanho do bolo. Aí, há ranger de dentes, e a ação dos que aproveitam para manter a sua parte no bolo, vendendo gato por lebre, e a dos que, aproveitando a crise, querem vender a lebre mesmo para aqueles que não a querem comprar. A direita e a esquerda se arrepiam com as brechas abertas pela crise e partem para “vender” a sua visão do mundo e se puderem, para tomar conta do Estado. Isto não é novo.

Há hiper-concentração de riqueza em andamento na quase totalidade dos países ocidentais. Sete em cada dez indivíduos vivem em países onde a desigualdade avançou nas últimas três décadas. A crise financeira detonada em setembro de 2008, aumentou ainda mais a tendência já existente: 1% da população mundial detém hoje metade da riqueza gerada no planeta; 85 bilionários espalhados pelo globo possuem patrimônio equivalente ao da metade mais pobre da população mundial, ou seja, algo em torno de 3,5 bilhões de cidadãos no mundo. Tendência que, infelizmente, tende a aumentar.

Entendo que aspectos estruturais explicam, basicamente, tamanha distorção, e com isto quero dizer que há algo no sistema que propicia, como uma derivada natural de seu funcionamento, a concentração. Admito que é matéria muito controversa, mas não há dúvida que a situação atual , que é extrema, resulta também das opções feitas para enfrentar a crise de 2008, desenhadas de acordo com os interesses dos bilionários, salvando bancos e companhias consideradas “grandes demais para quebrar”, ao mesmo tempo que os gastos públicos eram cortados indiscriminadamente.

O resultado foi uma onda avassaladora de desemprego. Levantamento da Organização Internacional do Trabalho (OIT) contabiliza, em 2013, 202 milhões de desempregados no mundo, 5 milhões a mais do que no fim de 2012. Mantida a tendência, algo bastante provável, serão 215 milhões sem empregos no fim de 2017.

O que devemos considerar é que o problema brasileiro se insere num todo, e que as tendências profundas se manifestam em Nações que adotam uma visão neo-liberal e não só no mundo que resiste à aplicação dos princípios neo-liberais.

Mas, se considerarmos as coisas numa profundidade maior, veremos que componente ético, indispensável em qualquer atividade humana, desagregou-se dramaticamente. Alguns exemplos: a representação popular nos parlamentos viciou-se com a criação de uma verdadeira plutocracia política; o lobby descarado dos grandes interesses econômicos e financeiros minou aos poucos a concorrência nas economias, e de certo modo, fez o que o PT quis fazer, que é o domínio do Estado por dentro. Muitos afirmam que os bancos norte-americanos gastaram 1 bilhão de dólares em lobby nos últimos anos, para enfraquecer e adiar a legislação em discussão para tornar o sistema financeiro mais “ético”, buscando a possibilidade de manter o “statuo quo” favorável às suas artimanhas, como as que levaram, desastrosamente, à chamada “bolha imobiliária” que , ao estourar, nos levou a todos de roldão. Se acrescentarmos a corrupção, a perversidade de sistemas tributários, como no caso do Brasil, que taxa proporcionalmente mais quem tem menos, os subsídios, a redução dos gastos em saúde e educação públicas, a perda de espaço dos sindicatos de trabalhadores e uma rede internacional de paraísos fiscais (em que, se estima que cerca de 18 trilhões de dólares são escondidos para não pagar impostos), temos vários componentes que explicam o processo em andamento.

Andamento que vai do fim da década de 1970 ao início dos anos 80, sob os auspícios da onda neoliberal e da desregulamentação dos mercados, particularmente o financeiro, sob a batuta ideológica da dupla Ronald Reagan e Margaret Thatcher. Esta dupla rezava por uma cartilha que recomendava deliberadamente o corte dos impostos dos mais ricos, em paralelo à redução dos direitos sociais e salários dos mais pobres, com o argumento de que o primeiro movimento garantiria fôlego para o consumo, enquanto o segundo ampliaria a competividade da economia ao reduzir o custo do trabalho. Estas diretrizes atingiram os seus objetivos: a concentração de renda aumentou nos EUA, no Reino Unido e vários outros países do mundo, até em Israel, que por sua formação inicial, dificilmente poderia cair nesta balela.

Estes sintomas se verificam com variações locais em todo mundo. Se o olharmos como um todo, tudo indica que em 2016 , os 1% mais ricos serão detentores de 99% dos recursos. É inacreditável. Existem, provavelmente “n” razões que para que isto ocorra, além das já apontadas. Pessoalmente, fora as distorções enumeradas, vejo na explosão populacional e no aumento da durabilidade da vida um fator determinante. O mundo está saturado de gente, jovens e velhos, e o sistema não tem conseguido suprir emprego para todos e impedir que os excluídos aumentem e aumentem. É evidente que os detentores do Poder, ou seja, os 1% , tudo fazem e, farão, para manter a estrutura do sistema que reforça a concentração de renda.

É da essência do PT a adoção de políticas sociais que lutem contra este modelo e , justiça seja feita, implementaram-na, tirando milhões de brasileiros da pobreza. Parece que este foco é adotado por todos os Partidos – aparentemente todo mundo quer acabar com a pobreza e com a desigualdade extrema , mas não é assim . Há um preço a ser pago, e a maioria da minoria não quer pagar este preço. Esta minoria quer viver num estilo de vida que é incompatível com nossa realidade. A idéia de que precisamos aumentar o bolo para que possamos na frente distribuí-lo é falsa. O bolo aumentou e aumentou nestes últimos cinqüenta anos e a desigualdade permaneceu a mesma ou piorou. Uma política apenas desenvolvimentista, como a da época de JK, não mais atende às necessidades da população. Há que se aumentar o bolo e distribuí-lo simultaneamente. O PT, principalmente nos governos Lula conseguiu, em termos gerais, fazê-lo. Ora, se alguém ganha, alguém perde. É evidente que muitos setores se sentem prejudicados por esta política e o ódio cumulativo contra o PT, seus aliados e os governantes, só aumenta. O governo petista de qualquer maneira pagaria um alto preço por ter conseguido distribuir renda. E como pretendia continuar distribuindo mesmo que se tenha atingido um limite via fiscal, partindo para a tributação dos patrimônios, conseguiu formar uma ampla frente de resistência contra ele. A resistência política seria intensa de qualquer modo. Só que, diante de seus erros, dos descalabros e abusos de toda ordem, o PT enfraqueceu-se. O PT, que se apresentava como o partido da moralidade, foi forçado a tirar a máscara. Desmoralizou-se eticamente com grande parte de seu eleitorado, e com a crise, que em grande parte se lhe atribui, perdeu mais ainda, porque são milhões que a sentem na carne.

O PT cometeu erros calamitosos. Abusou, quando transgrediu a lei ao adotar a corrupção como meio para dominar o processo político; avaliou mal o sistema como um todo, optando por políticas que acentuaram muito os efeitos negativos da crise que eclodiu nos USA em 2008 e que se esparramou mundo afora nos anos seguintes. Lula foi pretensioso quando afirmou que a crise ia bater entre nós como “uma marolinha” mas, num certo sentido, tinha alguma razão; não contava com os efeitos que vieram depois da adoção de medidas econômicas cuja ótica era política, mais especificamente, a eleição presidencial de 2012. O caso da Petrobrás é emblemático: a roubalheira foi espantosa, e a meu ver, as penas dos culpados devem ser severíssimas, mas catastrófica foi a política de preços da empresa, que os congelou em patamares bem abaixo do mercado, para “segurar” a inflação. Imaginava-se um ajuste após as eleições, e em pouco tempo tudo seria como antes no Castelo de Abrantes; acontece que o petróleo estava em torno de 100 dólares o barril, na época destas decisões, e veio a em torno de 40; todo o plano escorreu por água abaixo e a Petrobrás chegou ao ponto de se ver ameaçada como empresa e certamente levará muitos anos para atingir a antiga dimensão, se chegar a atingi-la um dia, porque a importância do petróleo como fonte energética está caindo dia a dia. Como subproduto dessa política, temos que continuar pagando no mercado interno o petróleo e derivados aos preços que deveríamos ter pagado quando estava a 100, ainda com um reajuste necessário para tentar tirar a vaca do brejo, ou seja, a Petrobrás do atoleiro. E se conseguimos “salvar” a Petrobrás, o mesmo teremos que fazer com o álcool , profundamente comprometido por uma política de preços que se mostrou , para dizer o mínimo, irresponsável. Para ser econômico, o álcool deve custar no máximo 70% do preço da gasolina, o que, considerando-se o preço artificialmente baixo da mesma, era inviável. E como o governo não subsidiou o álcool, este perdeu competitividade.

Face a uma crise de tal envergadura gerada em grande parte por uma administração voluntarista e corrupta, o PT deu “cabo ao martelo” para os reacionários e para os de extrema esquerda que viram neste acúmulo de erros e de má fé, e de ilegalidades, a oportunidade de partirem para a sua destruição pura e simples, o que gerou o agravamento do embate político que vem, por sua vez , realimentando a crise econômica, devido à insegurança que enseja.

Os comunistas do passado adotavam a autocrítica. O PT tem condições de fazer o mesmo? Parece que pretende fazê-lo. Se a renovação é seu objetivo, deveria, além da mudança de rumos e posturas, renovar toda a sua direção. Com isto, perderia o anel, mas talvez salvasse os dedos.