ELUCUBRAÇÕES SOBRE A CRISE ATUAL DO BRASIL - II

O enfraquecimento do Governo é muito nocivo para o País. Não há como salvar a nave se não pode ser pilotada. Prender-se a aspectos menores neste momento é postura de alto risco, podendo levar a um rompimento institucional ou do tecido social. Com estas coisas não se brinca.

Se me perguntassem o que deseja a maioria do povo brasileiro, diria: segurança, condições mínimas para tocar a vida para a frente, educação e saúde. Estes são os ingredientes, mas se perguntassem sobre a prioridade, repetiria: segurança, o que inclui não só paz social e eficiência contra a bandidagem, mas emprego em condições benéficas para trabalhar e sustentar a família. O resto é perfumaria.

Ameaçada em sua segurança, a sociedade ruge. Considerado o esgotamento que se verifica no processo político e o seu reflexo na economia impõe-se uma reação, com a adoção de medidas que superem os antigamente chamados de “pontos de estrangulamento”, seja na área jurídica, seja na área econômica e política.

Comecemos pela chamada Operação Lava Jato e as que lhe seguem. No que diz respeito à corrupção, a chamada Operação Lava Jato ficará na História. Seu mérito: a Lei vale para todos, o que todo mundo sabe, mas nunca se praticou. Valia o princípio, bem arraigado : “Para os amigos tudo, para os inimigos a Lei”. Isto acabou. Lúcio Flávio, famoso criminoso, dizia: “polícia é polícia, bandido é bandido”. Percebeu com clareza o que nossas elites políticas esqueceram: há que ter um Norte divisor de águas, senão se instala o pior dos mundos, ninguém mais sabe quem é o “bandido” e quem é o “mocinho”. A bússola enlouquece. Prevalece o cinza. A figura do policial bandido é emblemática deste estado de coisas.

O alto custo das campanhas políticas condicionou a corrupção. Mas a corrupção vem de muito mais longe do que isto e está profundamente arraigada. Nada anda sem que “se molhe a mão”. O “pixuleco” vem na frente. O custo desta prática é incalculável. O que sustenta este hábito, é a excessiva burocracia, que realimenta a corrupção. São irmãs siamesas. Mas, além disso, há subjacente, uma questão cultural. Historicamente sempre dependemos do Rei. Há também uma dissolução de valores que é sinal dos tempos: a sociedade de consumo exacerbou a necessidade de “ter” em detrimento do “ser”, ou seja, só posso “ser”, “tendo”. Isto, levado ao delírio, leva aos ladrões da Petrobrás. “Ter” tornou-se um valor absoluto. O ladrão milionário sente-se um semideus e por isto acha que não irá para a cadeia. O dinheiro “que eu tenho” compra tudo. Imagino o seu espanto nesta hora em que está por detrás das grades , sabendo que as penas serão altas. Fora o pior dos castigos, que é a execração pública.

A Lava Jato é , por isto, um divisor de águas. A corrupção não é só um problema do Brasil. E nem só do PT. A questão controversa da Lava Jato é que, para ter eficiência, teve que quebrar certos padrões. “Mafioso não escreve carta, não manda E-Mail, não fala ao telefone, não deixa rastros.” Foi mais ou menos o que disse o Ministério Público no início do processo do “Mensalão”. Entende-se; mas o cerceamento dos advogados, em sua tarefa de zelar pelo devido processo legal, as notícias seletivas para a mídia, a prisão sem culpa formada e sem prazo determinado são péssimos indícios. Conciliar o direito com a dinâmica imposta pelos novos tempos é tarefa bem ingrata. É difícil o pinto nascer sem quebrar a casca do ovo. E a casca do ovo terá que ser quebrada para que possamos, superando a crise, que é muito mais que a crise política, ou econômica ou política – é uma crise de confiança, sobretudo em nós mesmos - colocar o Brasil em outro patamar de consciência e de valores, sem os quais, todo o esforço será em vão.

A grande maioria da população vê a Lava Jato e as congêneres com os olhos da Esperança. Há algo de novo no Reino da Dinamarca. Mas há o risco de, como na Itália, depois da Operação Mãos Limpas, cairmos nas mãos de um Berlusconi. Torço para que entre nós dê coisa melhor.

A questão do déficit fiscal tem sido propositadamente muito desfigurada. Antes de mais nada saliente-se que o equilíbrio fiscal é condição necessária para todo o resto. Todo mundo está de acordo neste ponto. A questão é: Quem deve pagar a maior conta? Aí entra de novo a subjacente questão da divisão do bolo ou melhor, dizendo, pela ótica contrária, da divisão do sacrifício. Se não formos eficientes e justos nesta questão crucial, estaremos marchando, inexoravelmente, e pelo caminho mais curto, para mais descrédito, mais inflação, mais empobrecimento. Observar certas regras hoje universalmente aceitas assegura a captação de bilhões de dólares que rondam o mundo na busca de investimentos. Mas contrariá-las de modo sistemático, irá empurrando o país para o “ranking” dos subdesenvolvidos, que não é só uma condição econômica, mas uma marginalização. Uma dessas regras, a mais elementar, é o pleno domínio da situação financeira do Estado, com a devida liquidez, a clareza na demonstração de suas contas e uma ideologia de absoluto respeito aos contratos, que são os alicerces, digamos assim, para a credibilidade. Sem isto, todo mundo se recolhe, e espera...é o que está acontecendo com o Brasil. Naturalmente, no meio disto tudo, há milhares de interesses em jogo, inclusive os dos ratos magros contra os ratos gordos, e também o contrário, os dos ratos gordos contra os ratos magros. Uma permanente queda de braço, cada um tentando puxar mais brasa para a sua sardinha.

A dimensão do déficit fiscal, considerando-se apenas o problema de Caixa, é teoricamente simples. Ele atinge mais ou menos de 5% a 6% do Orçamento da União. Hora, ainda teoricamente falando , se o Governo pudesse cortar horizontalmente todas as despesas do Estado num montante equivalente, o problema de Caixa estaria muito bem encaminhado. A grande vantagem de uma atitude deste tipo seria que todos seriam igualmente atingidos, numa proporção absolutamente suportável. Mas infelizmente, o Governo não pode fazer isto, porque a parte maior do Orçamento está vinculada a despesas obrigatórias: parece incrível, mas algo em torno de 93% do orçamento é vinculado, restando apenas em torno de 7% como despesa discricionária. Em português claro: o Governo só dispõe destes 7% para controlar os 100%. Em outras palavras: não há instrumentos para superar o deficit a curto ou médio prazo, dentro das atuais regras do jogo.

O Governo mexe de um lado, mexe de outro, e no final patina no mesmo lugar. Só que com a crise, que se auto alimenta, o déficit cresce cada vez mais.

Dentro do atual quadro político, em que prevalece um jogo viciado, o chamado Presidencialismo de Coalizão, o Governo fica limitado pelos pleitos daqueles que detém o poder de veto e que impedem a formação de uma sólida maioria para poderem continuar pleiteando...conclusão: é difícil desinflar um orçamento no qual estão embutidas centenas de pleitos, e executar este mesmo orçamento que é furado cada vez que o Governo precisa de uma maioria...que cilada armou a Constituição contra o País: uma Constituição moldada para o parlamentarismo mas que optou por um forte presidencialismo.

Quando o Presidente, qualquer que seja a razão, se enfraquece, o Congresso se fortalece. Estabelece-se a crise política porque o Executivo fica cerceado pelo Legislativo. É bem verdade que as Medidas Provisórias atenuam um pouco este confronto, mas a base para que ele ocorra permanece.

O enfraquecimento da Presidência leva, como tentativa de resolver o impasse, à aventura do “empeachement”, que é uma aventura, quando proposto fundado em razões discutíveis. O PT fez isto contra o Fernando Henrique, o PSDB contra a Dilma. Vira golpismo. E quando o “empeachement” não anda, porque a maioria não permite ( não vamos aqui fantasiar quais as razões), começa um outro jogo, muito nefasto: sob o pretexto de esclarecimento de situações jurídicas, de interpretação da Constituição e coisas do gênero, como por exemplo, a interpretação do regimento interno da Câmara, o Judiciário, via Supremo, é chamado a se manifestar sobre matérias que no fundo não são de sua competência. O risco é do Congresso não aceitar, por alguma razão, a decisão do Supremo, estabelecendo-se assim uma crise institucional.

Isto quer dizer que precisamos de uma reforma constitucional para corrigir esta situação. Há alternativas que levam a um melhor desempenho institucional. Ocorre-me, olhando para o passado, o chamado Poder Moderador , do Império . Este Poder, que dava ao Imperador poder de dissolver a Câmara e convocar novas eleições , assegurou quarenta anos de governabilidade, digamos assim, sob a égide de D.Pedro II. Mas há soluções mais modernas, já que vivemos num tempo em que o passado, por si só, é considerado ruim. O chamado Presidencialismo de Gabinete é uma delas. A Constituição da V República da França é, a meu ver, uma boa solução. O Presidente é o Chefe de Estado, eleito pelo voto direto, e encarna o Estado e a vontade popular; tem poderes específicos, como a representação externa, a chefia das forças armadas, o poder de abrir as legislaturas anuais, e de dissolver a Câmera e de convocar novas eleições, nos casos de desconfiança em relação ao Chefe do Governo, o Primeiro Ministro, eleito pelo Congresso.

No caso da França, a V República foi criada para ampliar os poderes presidenciais face a um regime parlamentarista incapaz de resolver a crise da Argélia ; no caso do Brasil, seria o oposto, aumentar o Poder do Congresso, mas buscar um mecanismo em que o Presidente tivesse um anteparo institucional para exercer plenamente o seu mandato. A questão é de grande complexidade. Os políticos e juristas têm que quebrar um pouco a cabeça para assegurar que o Governo governe e o Legislativo legisle, diminuindo as margens de barganha para que isto aconteça. É complicado, porque o mal é mais dos homens, do que do sistema. Fossem mais comedidos, o que está acontecendo não aconteceria, mas como deles não podemos esperar muito, como é o caso dos banqueiros nos EUA, faça-se mais uma lei.

Nos EUA, em que o poder do Presidente é imperial, como o nosso, o conflito entre a Presidência e o Congresso é enorme, quando o Presidente eleito é de um Partido e a maioria do Congresso é de outro. O Obama que o diga. Mas lá, só há dois partidos; as barganhas existem, mas menos pulverizadas. E o presidente dispõe de meios para fortalecer a sua posição.

Não podemos esperar muito do Congresso atual, que está como o diabo gosta. Mudar para que? Por isto a ideia de convocação de uma Constituinte com fins específicos não é má, ainda que inovadora, pois Constituinte se convoca quando mudou o regime, não para elaborar emendas constitucionais. Mas o caso é tão especial que merece ampla consulta popular. E como estamos numa época de grandes transformações jurídicas, porque a História já não caminha, galopa, se bem encaminhada a consulta, seria a meu ver muito salutar. A ideia, proposta de maneira inadequada e na hora errada pelo Governo, foi sabotada, mas em si tem méritos, entre outros, o de, em matéria de tamanha importância – como queremos governar o Brasil – recomendar que se ouça diretamente o povo, cuja vontade é a única e verdadeira fonte do Poder. O fato de vir de um partido que está na berlinda não compromete a sua validade . Há uma distancia muito grande entre os representantes e os representados. Soluções só de cúpula não terão a densidade do apoio popular. Um arremedo de democracia é pior que uma ditadura, porque na ditadura se corporifica o inimigo comum, mas numa democracia minada pelos que nela descreem, o inimigo não é facilmente identificável. Dizem que são democratas, mas subestimam o povo.

A descrença também se estende ao Judiciário. A demora para o julgamento dos processos é a principal. Mas há outras que impressionam: agora, recentemente, um juiz singular mandou arrestar receitas do Estado do Rio, inclusive destinadas à saúde, para assegurar o pagamento “em dia” dos seus vencimentos, quando todo o resto do funcionalismo teve seus vencimentos atrasados e postergados para o dia sete de cada mês. Bateu muito mal na opinião pública – um julgamento destes não honra o Judiciário. Uma das coisas que mais me impressionam é o sentimento de casta dos membros do Poder Judiciário. A tal ponto, que fazem o seu Orçamento e dele não prestam contas a ninguém. Isto em nome da não interferência de outros poderes. Sofisma puro...

A grande despesa, que torna todas as outras irrisórias, e que neutraliza qualquer esforço fiscal – o que se economiza de um lado, sai do outro – é o pagamento dos juros da Dívida Pública . Em 2015 ficarão em torno de 200 bilhões de Reais, 20% do valor total do Orçamento. Dificilmente, se não enfrentarmos este problema a contento, sairemos do buraco. Num momento em que os juros estão indo para o negativo, há condições e se enfrentar este dragão. Tudo dependerá da capacidade e credibilidade do negociador. Há que se reconhecer: as coisas estão do jeito que estão nesta área unicamente por decisão do Governo. Resulta do fato de ter que empurrar uma série de coisas com a barriga , como a Reforma da Previdência, por exemplo.Então, para enfrentar de modo eficaz esta questão os credores terão que estar convencidos que no final sempre vão receber. Este fator fica claro quando se compara o Brasil com o Japão: eles devem algo parecido com 230% do PIB, o Brasil, 70%. O Japão toma dinheiro nos mercados a juros negativos ou próximos de zero, o Brasil capta pagando em torno de 16% ao ano. Porque, considerada a brutal diferença de juros e menor dose de endividamento relativo, os investidores não deixam de investir no Japão, onde pagam para investir, e jogam tudo o que for possível no Brasil, onde ganhariam muito mais? Por uma questão muito simples, mas decisiva: Confiança.

O perigo na tentativa de uma renegociação como esta é de se perder a pouca confiança que já se tem. Esta confiança não se alicerça tanto nos fatores econômicos, apesar do seu peso, naturalmente; se alicerça nos fatores políticos. A impressão que se passa é essencial. O Brasil é ou não visto como um país sério?

A confiança se sedimenta na “perfomance” como um todo. Isto não quer dizer que sejamos obrigados a dançar a música dos investidores. Temos margens de manobra, podemos mudar o ritmo sem mudar a melodia. Temos uma isca muito forte, que são os juros: se os reduzíssemos à metade, ainda estaríamos pagando juros altíssimos. Há que se negociar a partir de uma posição consistente.

O Brasil, com seu imenso potencial, e com uma economia que se situa entre as dez maiores do mundo, tem tudo para sair da armadilha em que caiu. Há que se fazer um grande acordo em torno do interesse nacional, refazendo conceitos e enfrentando problemas. Há certo contrassenso em se investigar, de modo pouco respeitoso, para se dizer o mínimo, um grande número de expressivas lideranças políticas e esperar apoio delas no plano político. A chamada Operação Lava Jato, apesar dos méritos, atrapalha mais do que ajuda. O Governo, por estar enfraquecido, quer mostrar isenção, no que está certo. Mas pode e deve exigir que a Operação caminhe em outros padrões para poder formar uma maioria estável que lhe permita enfrentar os graves problemas estruturais que aí estão. E a oposição precisa abandonar esta ideia raivosa do “empeachement”, e partir para uma ação concreta , negociada , para a solução dos problemas que a todos afligem. Ficar na posição atual não levará a nada de bom e, na melhor das hipóteses, a uma vitória de Pirro. A aliança que forma a maioria continuaria a mesma, só que o Presidente não seria do PT, mas do PMDB, que a meu ver, não representa avanço algum, pois só acrescentará retalhos à colcha de retalhos que hoje compõe a maioria de sustentação do Governo.

Joao Milva
Enviado por Joao Milva em 11/02/2016
Código do texto: T5540435
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