Para entender (um pouco) a dialética neoliberal que começaremos a ouvir com frequência nesta fase pós-golpe que se inaugura.

Pierre Bourdieu, falando na Universidade de Freiburg, Alemanha, sobre integração social como problema cultural, em palestra proferida nos Encontros Culturais Franco-Alemães, em outubro de 1996, deixou-nos um texto lapidar sobre a ideologia forjada pelo neoliberalismo.

Usando como referência uma entrevista de Hans Tietmeyer, então presidente do Banco da Alemanha, em que o banqueiro repercutia o discurso reacionário de que a classe trabalhadora precisa “fazer um esforço de flexibilização do mercado de trabalho e aceitar reformas nos sistemas de proteção social dos trabalhadores, de modo a recuperar a confiança dos investidores para que uma nova fase de crescimento seja atingida” o pensador francês produziu uma análise hermenêutica em que contrapõe que “frequentemente se espera dos sociólogos que consertem os vasos quebrados pelos economistas” e lembrou que essa mesma retórica se poderia aplicar em sentido contrário, ou seja, pensar em ‘desmantelar a rigidez dos mercados financeiros” ou “fazer um esforço de flexibilização dos mercados financeiros.” Bourdieu disse que essa é a ‘lógica bem conhecida dos trabalhadores’ sempre sendo chamados para abrir mão de direitos em nome de um crescimento que se dará no futuro, e lembrou a velha blague: ‘Você me dá seu relógio que eu lhe digo as horas.’

O texto integral desta fala de Bourdieu está reproduzido em Contrafogos, Editora Zahar, 1998, RJ.

A seguir uma sinopse em forma de epígrafe sob o titulo de O pensamento Tietmeyer:

“[...] Eis o que diz o ‘sumo sacerdote do marco alemão’: “A questão, hoje, é criar as condições favoráveis para um crescimento duradouro e a confiança dos investidores. É preciso, portanto controlar os orçamentos públicos.” Isto é [...] enterrar o mais depressa possível o Estado social, e, entre outras coisas, as suas dispendiosas políticas sociais e culturais, para tranquilizar os investidores, que prefeririam se encarregar eles próprios de seus investimentos culturais. [...] Continuo citando: “É preciso, portanto controlar os orçamentos públicos, baixar o nível das taxas e impostos até chegarem a um nível suportável no longo prazo.” Entenda-se: baixar o nível das taxas e impostos sobre os investidores até torná-los suportáveis no longo prazo por esses mesmos investidores, evitando assim desestimulá-los ou encorajá-los a fazer em outro lugar os seus investimentos [...] reformar o sistema de proteção social.” Isto é, enterrar o welfare state e suas políticas de proteção social, feitas para arruinar a confiança dos investidores, para provocar a sua legítima desconfiança, certos como estão de que [...] seus capitais não são compatíveis com as conquistas sociais dos trabalhadores [...] Hans Tietmeyer está convencido de que os ganhos sociais dos investidores, isto é, seus ganhos econômicos, não sobreviveriam a uma perpetuação do sistema de proteção social. [...] É preciso, portanto controlar os orçamentos públicos, baixar o nível das taxas e impostos até chegarem a um nível suportável no longo prazo, reformar o sistema de proteção social, desmantelar a rigidez do mercado de trabalho, de modo que uma nova fase de crescimento só será atingida outra vez se nós fizermos um esforço

[...] Esse discurso de aparência econômica só pode circular além do círculo de seus promotores com a colaboração de uma multidão de pessoas, políticos, jornalistas, simples cidadãos que têm um verniz de economia suficiente para poder participar da circulação generalizada dos termos canhestros de uma vulgata econômica. [...] É através de tais cumplicidades passivas que foi, pouco a pouco, se impondo uma visão dita neoliberal, na verdade conservadora, repousando sobre uma fé de outra era na inevitabilidade histórica fundada na primazia das forças produtivas, sem outra regulação a não ser as vontades concorrentes dos produtores individuais. [...] O que pode surpreender é o fato de essa mensagem fatalista assumir ares de mensagem de liberação, por toda uma série de jogos léxicos em torno da ideia de liberdade, de liberação, de desregulamentação etc., por toda uma série de eufemismos, ou de jogos duplos com as palavras – a palavra ‘reforma’, por exemplo – visando apresentar uma restauração como uma revolução, segundo uma lógica que é a de todas as revoluções conservadoras.

[...] Mas a política que visa preservar a confiança dos mercados corre o risco de perder a confiança do povo. [...] Caso se relacione a confiança dos mercados financeiros, que se deseja salvar a qualquer preço, com a desconfiança dos cidadãos, vê-se talvez melhor onde está a raiz da doença. A economia é, com raras exceções, uma ciência abstrata fundada no corte, absolutamente injustificável, entre o econômico e o social, que define o economicismo. Esse corte está na raiz do fracasso de toda política que não tenha outro fim senão a salvaguarda da ‘ordem e da estabilidade econômicas [...] fracasso “a que leva a cegueira política de alguns e pelo qual todos nós pagamos”.

Qualquer semelhança com a conjuntura política que neste momento vive-se no Brasil certamente não será mera coincidência.