Hora de pegar o Sarney

Enfarpelado, esperançado, e desarmado, fui ao Senado. Era o dia de minha sabatina para assumir uma Embaixada no exterior. Minha cara devia ainda trair o tremor agridoce da trepidação diante daquele momento tão crucial e solene de minha vida profissional.

Ia ser argüido pela Comissão de Relações Exteriores, composta por quase uma vintena de nobres Senadores. Ultrapassada a trincheira da segurança, adentrei os umbrais da circunspecta Casa. A primeira providência foi a visita protocolar ao Relator da Mensagem Presidencial que submetia minha indicação ao juízo senatorial. Sentia-me um Pro-Cônsul dos tempos e templos de Caio Júlio César, em meu quinquagésimo ano de existência, justamente naqueles idos de março.

O visitado não estava em seu Gabinete. Deixei-lhe, do próprio punho, grafia caprichada a manifestação de meu apreço e deferência, sem contudo, muito alongar-me, por ciente que era de seus múltiplos e inadiáveis afazeres.

Pelos extensos corredores acarpetados esqueci-me por uns momentos de meus apontamentos e passei a observar as cenas do cotidiano parlamentar. O fato mais marcante, além de ver tanta musa estonteante, foi testemunhar a passagem do ínclito Fernando Collor, em pleno fulgor, seguido de uma multidão de embevecida gente da imprensa. Altivo, o nobre Senador tudo tinha duma abelha-rainha, imperial, em vôo nupcial. Guardo ainda a impressão de que não me percebeu ao nos cruzarmos no corredor. Mas como sob o clima de sucesso do ABBA, pude sentir that there was something in the air, Fernando...

Quando contas me dei, hora era de rumar-me para a sala da arguição, onde seriamos três a ser sabatinados. Dois Paulos e um Appio, como cheguei a comentar, tentando destilar argúcia com algum circunstante. O colega, entretanto, foi mais clínico, ao redargüir:

- Imagine se fosse o contrário...

Vencido no terceiro embate do dia, apressei-me para tomar o elevador. E fui coincidir justamente com a chegada apoteótica do Presidente da Casa, José Sarney, que foi guinado e blindado pelo chefe de sua segurança que se postou entre nós e bradou, impávido, enquanto me cerceava o avanço:

- Presidente do Senado!!! E as portas se cerraram antes que eu pudesse contrabradar:

- Embaixador da República!

E perdi assim a chance de pegar o Sarney e ao menos saudá-lo por seus feitos literários, que até o hiper-crítico Millôr Fernandes apreciara rasgadamente. De lambuja poderia até ter-lhe dito que minha tia Vicentina já quase nonagenária e em acelerado processo de Alzheimer vivia elogiando os seus bigodes e a sua compunção quando com ela flertava pela telinha.

Mas, ato contínuo, refletindo, e feridas lambendo, dei-me contas que poderia ter cometidoum crime de responsabilidade se tivesse materializado aquele alvitre impetuoso: afinal eu ainda teria que ser aprovado na sabatina para jactar-me talmente. Tomei a escada.

Paulo Miranda
Enviado por Paulo Miranda em 20/05/2016
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