TEREZA CRISTINA: DA CONSTRUÇÃO DO ESPAÇO À EXPRESSÃO DE PODER DO TERRITÓRIO

TEREZA CRISTINA: DA CONSTRUÇÃO DO ESPAÇO À EXPRESSÃO DE PODER DO TERRITÓRIO

Resumo: O presente artigo terá por objeto de trabalho a bagagem histórica de construção de uma comunidade que nasceu de uma das primeiras experiências de socialismo utópico e cooperativismo no Brasil. E que talvez seja a mais próxima de uma “experiência socialista” realizada até hoje nos limites desse, dado que essa experiência data o ano de 1840. Jean-Maurice, seu idealizador morreu em 1858, mas deixando 11 anos de empreendimento, que mostraria ao mundo o caminho fácil da felicidade, baseado no trabalho em favor ao próximo. Impregnado de intencionalidades, esse território foi (e ainda é) delineado a partir de diversas expressões de poder que foram mudando substancialmente sua lógica e seu arranjo espacial. Esta discussão permitira o estudo dessa experiência em termos de conceitos e categorias geográficas de análise espacial, mas também como veremos, em categorias que são filosóficas, sociológicas e históricas.

Palavras-chaves: Tereza Cristina, Território, Poder, Socialismo Utópico.

INTRODUÇÃO

A proposta deste trabalho, como já referida, é fazer uma aproximação entre uma experiência de socialismo utópico com as noções de espaço e a construção do território.

Tereza Cristina – localizada ainda hoje no município de Cândido de Abreu, que por sua vez se localiza no centro do território do Estado do Paraná – faz parte de um processo imigratório e colonizador que culminou na primeira experiência de cooperativismo no Brasil. Por meio de uma comunidade fundada no final do século XIX pelo médico francês Jean-Maurice Faivre , guiado por princípios iluministas e que desejava implementar uma comunidade sem fins lucrativos, onde não existisse nem rico nem pobre, constitui-se assim a primeira experiência de cooperativismo no país.

Pretende-se reafirmar com este trabalho que, uma significativa mudança de paradigma do que se pensou para esse espaço e como é nos dias atuais, elucidando que tal mudança só ocorre e se perpetua a partir das relações de poder que o território e a territorialidade emanam, mudando constantemente a organização no espaço para demonstrar poder sobre ele.

Entende-se este artigo como algo que vai além de um estudo geográfico sobre os conceitos de territorialidade, mas que também trás elementos históricos, antropológicos, sociológicos e, porque não, filosóficos. Visto que se trata de uma experiência francesa guiada por princípios iluministas da época, baseada principalmente no teórico humanista inglês Thomas More, que apresenta em uma de suas principais obras, “A Utopia”, a ideia de uma ilha que seria o Estado perfeito para se viver, baseado na liberdade e cooperação entre seus habitantes.

O desenvolvimento deste trabalho também se baseia no estudo de Marcelo Lopes de Souza (2001). Para ele:

O território será um campo de forças, uma teia ou rede de relações sociais que, a par de sua complexidade interna, define, ao mesmo tempo, um limite, uma alteridade: a diferença entre “nós” (o grupo, os membros da coletividade ou “comunidade”, os insiders) e os “outros” (os de fora, os estranhos, os outsiders). (SOUZA, 2001, p. 86)

E também como se demonstra nas contribuições teóricas de Hannah Arendet (1985, p. 23-24) que ilustra a questão do território enfatizando “que a questão política mais crucial é, a questão: Quem governa quem?”, sendo o território um instrumento de poder e daquele que governa.

ESPAÇO E TERRITÓRIO: ALGUMAS CONCEPÇÕES

O espaço é algo inerente e existe antes do território, sendo este, qualquer porção de terra apenas com seus elementos naturais. Já o território começa a se delinear a partir do espaço, conduzido por atores que vão lhe impregnar de sentido e de intencionalidades. De acordo com Raffestin, (1993) “O território [...] é um espaço onde se projetou um trabalho [...] e que por consequência, revela relações marcadas pelo poder. O espaço é a ‘prisão original’, o território é a prisão que os homens constroem para si”. Nesse sentido, o espaço seria apenas um espaço, como se fosse um “vazio”, reduzido praticamente ao espaço natural. E o território demandaria certa interferência e/ou atores para significá-lo em termos de território.

Já para alguns autores, o território tem ligação com certa identidade, projeção e produção por parte de seus atores. Como demonstra Santos (2004), espaço é o habitado, um espaço socialmente construído no qual os homens, através do seu “estar no mundo”, produzem suas relações sociais, econômicas, políticas, introduzindo no espaço “marcas” que caracterizam a ação humana sobre ele.

TEREZA CRISTINA; UM PROJETO TERRITORIAL

Faivre, empenhado em construir o que, como de acordo com Thomas More, influenciou fortemente suas concepções e aspirações, seriam

“As terras foram tão bem distribuídas aos habitantes que à distância de cada cidade até a extremidade de seu território não é nunca inferior a doze milhas; às vezes pode ser superior, dependendo da distância das cidades entre si. Nenhuma delas deseja aumentar seu território, pois os utopienses consideram que as terras são mais para serem cultivadas do que para serem objeto de posse.” (MORE, p.49)

E a seguir, contempla Fernandes (2006, p. 238) com o croquis da Vila Agrícola Thereza Christina, elaborado por Faivre e arquivado no Museu Nacional de Paris:

Figura 1 – Croquis da Vila Agrícola Thereza Christina

Diante dessas duas informações, tanto o que More explana em seu livro como o desenho arquitetônico do território produzido por Faivre, demonstra-se a relação intrínseca que a fundação dessa Comunidade estabelece com as teorias do socialismo utópico de More. De acordo com Fernandes (2006), Faivre

“Em seu poder, guarda o esboço do que imagina venha a ser a Vila Agrícola Thereza: casa de dois andares, onde deverão residir por volta de vinte famílias, localizadas em lotes cercados, com ampla horta nos fundos e rodeado de árvores frutíferas. Dez unidades dessas habitações coletivas constituem o núcleo da Colônia.” (FERNANDES, 2006, p. 62)

E continua ainda Fernandes (2006, p. 62) “E ao longe, enlaçando a povoação, as terras destinadas à agricultura, cortadas pelo serpejante Ivaí. Ao fundo, próximo as barrancas do Rio Ivaí, os demais estabelecimentos: a serraria, o moinho de cereais, a casa de fiação e a olaria. Mais à esquerda, a ampla área reservada ao cemitério.”

O território sugerido por Faivre era bem distribuído, harmônica e geograficamente pensado em forma de pequenos lotes, casa comunitária com biblioteca, onde não haveria centro nem periferias, mas um espaço comum que seria ocupado por todos de maneira igual, com as plantações no entorno, preferencialmente, próximas ao rio, onde ficariam também as pequenas indústrias como os moinhos, serraria, olaria, estabelecimento para tecelagem e etc.

Faivre, após retornar da França com cerca de 63 famílias, das quais haviam várias pessoas habilitadas e úteis em diversas áreas que levariam ao desenvolvimento da “Vila Agrícola Thereza”, chega ao local onde daria início ao seu ambicioso projeto.

Jean-Maurice, enfim, ao cabo de quase dois meses de viagem marítima, retornava ao Brasil, trazendo aqueles que o ajudariam a desbravar os sertões fechados da Comarca de Curitiba, abrindo-lhes as primeiras clareiras da civilização na exuberante mesopotâmia plantada entre os Rios Paraná, Ivaí e Tibagi. (FERNANDES, 2006, p. 72)

A história também demonstra que naquela época, segunda metade do século XIX, período do Governo de Dom. Pedro II, havia também uma intencionalidade no governo Imperial em permitir e mesmo financiar esse tipo de experiência imigratória, a fim de desenvolver o país em termos de modernização e mecanização do campo, até então ocupado apenas por índios. Para o governo a fundação dessas colônias agrícolas, formadas e administradas por europeus, seria um bom exemplo e estímulo para a mudança dos padrões produtivos no país.

Já intencionalidade do projeto de Faivre nunca foi expandir significativamente o território de sua sonhada “Thérèsville”, que aos olhos das cidades vizinhas mais desenvolvidas como Guarapuava e Ponta Grossa, como alega Bigg-Wither (1974 apud LEITE, 2010, p. 197) “não passa de uma colônia um pouco mais adiantada que a aldeia dos índios no lado oposto do rio”.

O SONHO SOCIALISTA HOJE

Essa experiência demonstrar os diversos agentes que participaram dessa experiência e impregnaram seus objetivos, a fim de utilizar o território como expressão de poder, e a enorme diferença que existe entre o que se foi pensado, no projeto inicial, e os dias atuais. Onde a lógica nem se aproxima mais da posse comum, mas sim da expropriação deste território como instrumento da manutenção do poder dos políticos. E partindo do que Raffestin pondera sobre as imagens territoriais, onde sempre

[…] haverá uma ruptura entre a imagem territorial projetada e o território real. Primeiro, porque uma imagem nunca é transcrita tal e qual a partir do plano, mas isso é banal. […] pois não existe somente um único ator. De fato se introduzirmos um segundo ator A’ no esquema, haverá uma outra representação mesmo que os objetivos sejam congruentes. Institui-se então uma relação entre A e A’, uma relação de poder, sem nenhuma dúvida.” (RAFFESTIN, 1980, p. 148)

Considerando essa premissa citada, na qual se elucida para os vários atores que projetam e “moldam” o território manifestando seu poder, mesmo que implicitamente, os elementos do sistema territorial pensado e atribuído ao território de Tereza Cristina por Faivre e o grupo de famílias que o seguiu, mudaram consideravelmente ao longo dos anos até chegar no que se tem hoje.

O território, outrora organizado de forma proporcional, sem um arranjo que permitisse distinguir as classes sociais ali existentes, levando em conta o centro, onde se localizariam toda a população moradora, passa a se delinear de forma diferente, como vemos na imagem a seguir:

Imagem 2 – Tereza Cristina - PR

Hoje, aquele projeto idealista, fruto do socialismo utópico francês está diminuído a uma simples vila rural, praticamente isolada e cercada de fazendas que deram origem a intermináveis latifúndios. O contexto sociopolítico revelava o descaso e o abandono das ações governamentais em Tereza Cristina. Marx (1848) também nos lembra de como

Os sistemas socialistas e comunistas propriamente ditos, os de Saint-Simon, Fourier, Owen e etc. (e também de Thomas More), aparecem no primeiro período da luta entre o proletariado e a burguesia, período anteriormente descrito. Os fundadores desses sistemas compreendem bem o antagonismo das classes, assim como a ação dos elementos dissolventes na própria sociedade dominante. Mas não percebem no próprio proletariado nenhuma iniciativa histórica, nenhum movimento político que lhes seja peculiar. (MARX, 1848, p. 58)

Ou seja, o movimento de socialismo utópico em si não visava a construção de outra sociedade, muito menos com o protagonismo das classes menos favorecidas. Para esses teóricos, a massa pobre “despossuída não teria capacidade de governar”. Em contrapartida, mas sem conhecer o novo socialismo que se propagava pela a Europa por Karl Marx e Friedrich Engels, em 1848, Faivre certamente buscou levar a cabo uma experiência socialista. Sendo assim, buscou construir um espaço que nas próprias palavras dele objeta “onde seremos iguais, não haverá entre nós nem primeiro nem último”.

A partir da imagem acima exposta também é possível perceber a centralidade dos recursos e onde o certo “desenvolvimento” se localiza, especialmente nas áreas onde as elites regionais se concentram. Enquanto nas áreas das extremidades já é possível identificar as possíveis periferias, onde as condições físicas são precárias, há falta de saneamento, de energia, de internet, enfim, onde a população pobre mora.

Hannah Arendt, em seus escritos sobre a relação entre poder e política diferencia sua aplicação entre os termos da violência e da coerção. A violência é sempre um instrumento do poder, mas não necessariamente se expressa pela força, mas sim pela coerção. Para ela,

O poder corresponde à habilidade humana de não apenas agir em uníssono, em comum acordo. O poder jamais é propriedade de um indivíduo; pertence a um grupo e existe apenas enquanto o grupo se mantiver unido. Quando dizemos que alguém está no poder estamos na realidade nos referindo ao fato de encontrar-se esta pessoa investida de poder, por um certo número de pessoas, para atuar em seu nome. (ARENDT, 1985, p. 24)

Hannah sintetiza bem o que acontece também na comunidade, como um poder ser levado e mantido pela coerção silenciosa. É a expressão de poder do território, até hoje muito utilizado para se referir ao território nacional, mas que pode estar incumbidas também nas relativas pequenas porções deste. Onde aquele que domina a política, também possui as terras, o poder e o domínio de um povo.

CONCLUSÃO

A intenção da autora do presente artigo é desenvolver conhecimento teórico e prático. A linha de pesquisa visa a construção de diálogos com a comunidade e por está coloca-se a inserção deste trabalho como ferramenta da sintaxe. É ainda um tema amplo para participação e engajamento de outros pesquisadores, sem direcionamento específico, mas é este o caminho com certeza. Principalmente salientar com que objetivos se fundou essa comunidade e o que ela se tornou com o passar dos anos e sob a influência sociopolítica regional.

Espera-se ter destrinchado com objetividade o referenciado estudo e pesquisa que foi orquestrado a cerca do território de Tereza Cristina, construindo assim esta pauta e orientando os caminhos corretos e coerentes a se seguir em termos de conceitos e temas geográficos para a análise deste.

Plantada no mesmo lugar escolhido por Faivre – em uma das regiões mais afastadas do Município de Cândido de Abreu, PR – esquecida pelas autoridades governamentais e praticamente isolada do resto do mundo, Tereza Cristina nem sempre tem o devido reconhecimento que merece, mas sua rica história de construção demonstra que ainda temos um longo caminho a percorrer, no qual nem beiramos a ''utopia'', assim como também sonhava Thomas More, principal referência de Jean Maurice Faivre. Mas que está mais próxima da expressão de Lefebvre (1991) sobre as “utopias experimentais”: utopia não como “fantasia irrealizável”, mas sim como metas testáveis e aprimoráveis por meio da práxis. Territórios, enfim, de experimentação anti-heterônoma. Autênticos “laboratórios” da autonomia.

REFERÊNCIAS

ARENDET, Hannah. (1985/1969): Da violência. Brasília, Editora da Universidade de Brasília.

CASTRO, I. et al. Geografia: conceitos e temas. São Paulo: Bertrand Brasil, 1995.

FERNANDES, Josué Corrêa, 1947. Saga da Esperança: socialismo Utópico à beira do Ivaí – Curitiba: Imprensa Oficial, 2006.

GOOGLE MAPS. [Tereza Cristina-PR]. [2017]. Disponível em: <https://www.google.com.br/maps/place/Tereza+Cristina,+C%C3%A2ndido+de+Abreu+-+PR/@-24.8331839,-51.1405251,1752a,35y,270h/data=!3m1!1e3!4m5!3m4!1s0x94e93b409de94895:0x29d3a93fb156f479!8m2!3d-24.8252764!4d-51.1341479>. Acesso em: 14 jun. 2017

LEITE, Rosângela Ferreira. Nos limites da exclusão: Ocupação territorial, organização econômica e populações livres pobres (Guarapuava, 1808-1878) – São Paulo: Alameda, 2010.

MARX, Karl & ENGELS, Friedrich. Manifesto do Partido Comunista, 1848. Edição eletrônica: Ed. Ridendo Castigat More, 1999.

MORE, Thomas – A Utopia. São Paulo: L&PM, 1997.

RAFFESTIN, Claude. Por uma geografia do poder. São Paulo: Editora Ática, 1993.

SOUZA, M. J. L. O território: sobre espaço e poder, autonomia e desenvolvimento. In: CASTRO, I. E.; GOMES, P. C. C.; CORRÊA, R. L. (Orgs.). Geografia: conceitos e temas. Rio de Janeiro: Bertrand, 1995. p.77-116.